Tribunal virtual II

[dropcap]A[/dropcap] semana passada, analisámos a introdução de uma novidade no sistema jurídico da China continental – o Tribunal Virtual. O Tribunal Virtual é uma aplicação que liga todos os tribunais do país e que permite a interacção de juízes, procuradores, advogados de defesa, queixosos e réus e possibilita o julgamento online. Hoje, vamos tentar perceber o tipo de problemas que este sistema pode implicar.

Os tribunais online surgiram nos Estados Unidos nos anos 90. Embora nessa altura os telemóveis fossem muito diferentes do que são hoje, já existia internet. Inicialmente destinavam-se apenas a resolver conflitos relacionados com o comércio online. Com o passar do tempo o campo de acção destes tribunais foi-se alargando aos servidores de email e de serviços móveis e ainda a outras áreas, como dívidas e crédito mal parado, desde que o delito em causa fosse de gravidade menor.

Desde de Novembro de 2019 que o Reino Unido tem em funcionamento um tribunal online para julgar casos de dívidas inferiores a 10.000 libras. No Canadá, o Tribunal Cível online julga casos de dívidas até 5.000 dólares canadianos. Na Turquia o departamento jurídico está totalmente informatizado, permitindo aos advogados descarregar ficheiros, pagá-los e submeter os documentos online.

Com base nesta experiência, podemos ver que muitos países e regiões têm tribunais online, mas nenhum deles possui um programa que dê assistência às partes em litígio. O Tele Tribunal da China é de facto o primeiro a nível mundial a integrar todo o processo e toda a documentação jurídica, tendo em vista uma maior eficácia. É fácil de perceber e de utilizar e é da maior conveniência para os litigantes e para as instituições jurídicas. Esta plataforma é algo de que nos podemos orgulhar.

Na medida em que as partes e os funcionários não se deslocam ao Tribunal, o julgamento só começa depois do programa efectuar o reconhecimento facial. E aqui surge a primeira questão. E se alguém forjar ou obtiver por meios ilícitos os dados que permitem o reconhecimento facial? Como é que o tribunal se pode proteger desta eventualidade? Na abertura do processo, deverá perguntar-se se é vontade expressa dos litigantes recorrer ao julgamento online? Se ambas as partes concordarem, será aconselhável deslocarem-se pelo menos uma vez ao tribunal para que se faça um reconhecimento presencial antes do julgamento?

Pela mesma lógica, neste sistema é impossível fazer uma verificação física das provas. As partes têm de aceitar as provas incondicionalmente antes do julgamento. Se pensarmos que os litigantes se devem deslocar ao tribunal para se proceder ao reconhecimento facial, deve também considerar-se a possibilidade de, nessa altura, fazerem o reconhecimento das provas. É a solução mais adequada.

Os tribunais online utilizam ferramentas electrónicas com câmaras integradas. Se uma das partes fizer um vídeo do julgamento, pode usá-lo contra o juiz, na eventualidade de perder o caso, tornado-se desta forma numa arma de retaliação. Esta situação agrava-se nos países ou regiões onde o resultado do julgamento depende do júri. Se os rostos dos jurados aparecerem na gravação, as suas vidas podem correr risco. Terá de ser pensada uma forma de impedir estas gravações.

A segurança das pessoas é um factor determinante para decidir que casos podem ser julgados desta forma. Claro que um caso de dívida não levanta problemas. Podem também ser elegíveis, assuntos familiares como divórcios e heranças. Só podem ser julgados online réus que não arrisquem pena de prisão; esta é também a prática britânica. Se estivesse em causa uma pena de prisão, não haveria maneira de evitar o risco de fuga após o pronunciamento da sentença.

Quer o julgamento se realize num tribunal físico ou num tribunal online, as partes são obrigadas a juramento sobre a veracidade das suas declarações. O juramento é uma cerimónia solene. Será que o juramento online pode ter a mesma solenidade e criar o impacto pretendido? Ou seja, deixar bem claro o aviso que, caso as declarações sejam falsas, o declarante arrisca pena de prisão? Poderá o tribunal assegurar que as partes compreendem as consequências de declarações incorrectas?

Na situação de pandemia que vivemos, é necessário o distanciamento social e, como tal, reduzir o número de julgamentos presenciais. Por isso, é adequado optar pelos julgamentos online. A lei define os padrões básicos dos nossos comportamentos. Os procedimentos jurídicos garentem que a lei é correctamente aplicada. Os procedimentos jurídicos não podem falhar, caso contrário a justiça não será feita. Por isto, a implementação dos interrogatórios online deve assegurar que os procedimentos são respeitados, não podem ser apressados e cada passo deve ser verificado, de outra forma os interesses dos envolvidos não serão respeitados. Não nos esqueçamos que estes interrogatórios são feitos através de telemóveis e de computadores. Se os juizes e os advogados não tiverem suficiente preparação informática e as partes envolvidas não tiverem computadores pessoais, pode ocorrer um grande número de problemas técnicos que conduzirão a deficiências nos interrogatórios. Só quando todas estas questões tiverem resposta, poderemos considerar a próxima pergunta – Macau tem condições para implementar julgamentos online?

 

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
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18 Ago 2020