Tigre

Âncora entre marés. Palavra-chave

Podemos pensar e até devanear acerca da possibilidade de tudo ser irresolúvel, assumir um olhar niilista e nele descansar porque mais fácil. Podemos ser selvagens e retroceder à pureza dos instintos básicos de egocentrismo que vai muito além, ou fica aquém dos desígnios estruturais em cada comunidade animal, que visam proteger a espécie, o grupo, a alcateia, mas também podemos depurar custosamente este balanço entre razão emoção e experiência e dormir sobre a convicção de que já cá não estaremos dentro em pouco, no mínimo à escala do universo. Uma verdade. E pousarmos as peças estratégicas a evoluir no tabuleiro. O que somos e gostamos, o que achamos belo, bem, ou bom, o conforto de termos critérios que arrumam a mente, mesmo se não nos trazem o retorno que pensávamos dever ser inevitável. E deixar que a memória nos traga ao convívio aquele tu outro que nos faz reviver ou rebrilhar, ampliados para além dos defraudados sinais de que a vida é ela própria soberana nas suas dispersas e múltiplas ramificações. Improdutiva e inútil. Mas o retorno a coisas simples de sentir, verdades sobre as quais nos construímos, não tem preço nem está à venda. Um tu outro. Que sinto. Um tu, que não está ao alcance dos critérios pode ser essencial e é. Aí, nessa zona inalcançável do paraíso. Sem mais, para além do que me é dado poder. Uma palavra. Como a cavilha retida e retirada abruptamente. Numa granada de mão que voa no destino que não se vê. A explodir. Sem cuidado, o estilhaçar irrecuperável da memória. Ou um enorme fragmento que voa do lugar e poisa inusitado sabe-se lá onde, no dia de alguém. Ou, não dita. Nós e os outros. Sem conversar. Tigres em extinção.

 

 

Tigre de água, seriedade e maresia

levanta-se cedo e pinta as unhas de vermelho

como retrato do fogo

e fantasia

 

às vezes os olhos crus perdidos no ar

bicho em extinção

pressentimento de um futuro abalar

as candidatas do partido, evitam cuidadosas o batom na fotografia

tristes tigres

estamos

 

rodeados de bichos que lavam os dentes ao espelho da manhã

mas com uma condição:

mamíferos sim, répteis não

insectos sim, vermes não

porque a falar

enquanto comem

já não nos dizem nada.

 

3 Fev 2022

Nunca montes o dorso do tigre

[dropcap]N[/dropcap]um dos meus últimos artigos, mencionei que a RAE de Hong Kong tem escolhido sistematicamente mal os seus Chefes do Executivo. E, infelizmente, a minha opinião acabou por revelar-se absolutamente certa face à realidade que vivemos e que ninguém teria imaginado possível.

Existem muitas pessoas a montar cavalos e vacas por esse mundo fora. Mas já alguém viu um tigre a ser montado? Há um velho ditado chinês que diz “quando uma pessoa monta um tigre é muito difícil apear-se”, o que é uma forma de nos aconselhar a nunca embarcar em projectos que não estão ao nosso alcance.

A Chefe do Executivo de Hong Kong, Carrie Lam, tem 40 anos de serviço público, um excelente curriculum académico e notabilizou-se pela sua extraordinária determinação. Para ela, a palavra “dificuldade” não consta do dicionário. Desde que acredite que qualquer coisa está “certa”, defende-a até ao fim. Este tipo de atitude faz dela o exemplo perfeito do servidor público, mas, como líder, este traço de personalidade não ajuda. Devido ao seu espírito autocrático, os subordinados têm dificuldade em expressar os seus pontos de vista e acabam por permanecer em silêncio. Os sábios da antiga China afirmaram que quando temos a certeza de estar a agir correctamente devemos lutar pelas nossas convicções, mesmo que seja preciso enfrentar milhares de opositores, mas esta atitude só deve ser tomada depois de muita introspeção e na posse de um total auto-conhecimento. Se um líder faz orelhas moucas aos conselhos de terceiros, incluindo aos dos peritos, e age de acordo com simpatias pessoais ou a partir de uma perspectiva meramente legalista, o desfecho pode ser desastroso. As duas últimas manifestações massivas em Hong Kong foram em muito desencadeadas pela personalidade de Carrie Lam e pela sua forma de lidar com as situações. Ela é sem dúvida uma pessoa bem-intencionada, mas de boas intenções está o Inferno cheio.

A obra, “As Viagens de Lao Can”, do escritor Liu E (劉鶚), que viveu durante a Dinastia Qing, parece falar apenas sobre os vários locais da China e sobre os costumes locais, mas de facto reflecte sobre o período final da administração Qing. Num dos capítulos, o autor escreve, “os oficiais corruptos, embora abomináveis, são reconhecidos por todos; os oficiais incorruptos, mas não menos desagradáveis, são reconhecidos apenas por alguns. Os oficiais corruptos, conscientes de que as suas acções podem ser denunciadas, não se atrevem a mostrá-las em público; os oficiais incorruptos, que não se deixam influenciar por subornos, tornam-se imparáveis. Determinados e convencidos da sua razão, os oficiais incorruptos matam pessoas e, em situações extremas, colocam em perigo o País. Já conheci demasiados exemplares desta espécie”.

Afirmar que os antigos Chefes do Executivo preferiram “esconder a cabeça como a avestruz” em relação à questão da lei dos condenados em fuga, revela falta de sensatez política e vaidade pessoal. O que está a acontecer actualmente em Hong Kong deita por terra os esforços desenvolvidos nos últimos dois anos e abre as portas a uma dissenção social irreversível. A polícia foi apanhada no meio do caos, os jovens tornaram-se descartáveis e apoiantes e detractores do projecto de lei tornaram-se inimigos. Um pequeno movimento provocou uma reacção em cadeia!

Ninguém duvida que os criminosos devem ser condenados em nome da justiça. Mas também ninguém vai engolir pesticida porque tem parasitas no estômago. Por isso, as pessoas devem abordar as questões de forma correcta, com bom senso e sensibilidade.

Na entrevista que deu à televisão a 12 de Junho, Carrie Lam apelou aos sentimentos dos espectadores para explicar as suas acções. No entanto, este momento emocional foi secundado, nesse mesmo dia, pela operação em larga escala contra os manifestantes. As duas acções combinadas colocaram a Chefe do Executivo num patamar de fama nada invejável. Mas a responsabilidade não é só dela, deve ser partilhada com todos aqueles que lhe ocultaram a verdade.

A insubordinação social em Hong Kong tinha decrescido imenso após o Movimento dos Chapéus de Chuva. Os activistas que desafiaram a legislatura da cidade foram sucessivamente presos, vários deputados do campo pró-democracia foram afastados do Parlamento e o campo pró-governamental ganhou as eleições. Parecia que a ordem estava estabelecida. No entanto, o excesso de confiança e a falta de atenção à opinião e às queixas das pessoas criaram um clima que proporcionou a mudança do autoritarismo para o totalitarismo. Ninguém é invencível quando existe uma multidão de opositores.

Qualquer acção que venha a afectar o desenvolvimento político de Taiwan, a negociação comercial sino-americana ou o interesse nacional da China está interdito. Sobre a reeleição dos deputados do campo pró-governamental, só avançarei uma previsão quando eles se decidirem a descer do dorso do tigre.

21 Jun 2019