Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO modelo de Xiong’an “A smart city is an intelligent town that provides enormous possibilities for human growth through art, culture, social, architectural, economic, political, environmental, and scientific flowering with the optimal mix of nature, technology, humanity, and arts.” Amit Ray Peace Bliss Beauty and Truth: Living with Positivity [dropcap]A[/dropcap] entrada dos escritórios da Terminus, em Pequim é feita com reconhecimento facial. O átrio é completamente branco, assim como as cortinas, as janelas, balcões de recepção e duas poltronas de forma futurista. O corte em ziguezague das portas que permitem as entradas em espaços abertos é o que recordamos nos filmes de ficção científica e nas populares séries da Guerra das Estrelas. A ideia a transmitir é a de “futuro” mais ou menos imaginado e conhecido, porque a Terminus, fundada em 2015, é uma das muitas das estrelas chinesas que rapidamente se tornaram notadas para além dos mil milhões de dólares do seu valor e o futuro está a manipulá-la para a tornar extremamente “presente”. O seu objectivo é, de facto, fornecer em nome do governo a gestão “inteligente” de compostos e bairros inteiros, reunindo tanto como o actual menu em Inteligência artificial e Internet das Coisas (IoT) permite. Os distritos da cidade conseguiram pela Terminus fornecer todo o tipo de informações sobre os residentes e transeuntes e todos os dados que provêm do silêncio e incessante trabalho de câmaras inteligentes, através de sistemas de reconhecimento de impressões faciais, geolocalização e de voz, impressões digitais de áudio em que a união de toda esta informação flui em frente de ecrãs controlados. A China está a projectar e aperfeiçoar a vida das cidades inteligentes que estão em construção. Este é um mercado próspero. A Terminus já teria completado cerca de sete mil projectos de cidades inteligentes na China. As suas soluções cobririam uma área total de quinhentos e cinquenta milhões de metros quadrados para uma população de mais de oito milhões de pessoas. O esforço explicado nos escritórios da Terminus é o de poder aplicar conceitos “inteligentes” aos edifícios residenciais. Mas o que é uma cidade inteligente? Existe uma extensa literatura sobre o assunto, bem como exemplos de cidades inteligentes, ou distritos “inteligentes”, também na Europa. A “cidade inteligente” é a “expressão actualmente utilizada para estratégias de planeamento urbano relacionadas com a inovação e em particular com as oportunidades oferecidas pelas novas tecnologias de comunicação para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos”. Na China pode-se observar alguns projectos de cidades inteligentes. Olhando para slides e renderings, vêm-se lugares de clareza tranquilizadora. Os projectos descrevem territórios com ruas limpas, pontes estilizadas sobre cursos de água, árvores por todo o lado e imensos espaços verdes, dentro dos quais os complexos residenciais parecem ser muito eficientes. Olhando para os desenhos dos projectos, é de imaginar os carros eléctricos a percorrer as ruas sem a sombra de buracos, e que há uma pessoa dentro dos veículos, porque os carros são semi-autónomos. Ainda é necessário um ser humano dentro do veículo para lidar com situações onde o bom senso é necessário, um elemento que emergiu de um mapa mental humano que os carros são actualmente incapazes de processar. Observando os projectos é de imaginar cidades silenciosas, ritmadas pelo zumbido dos motores eléctricos, sulcadas por edifícios precisos e serviços do mais alto nível, escolas, hospitais e serviços públicos. Todos os projectos de cidades inteligentes são eco-sustentáveis onde não se encontrará sequer o mais pequeno vestígio de carvão, nem mesmo no canto mais remoto de um edifício. As cidades inteligentes representam a ideia de um mundo eficiente, belo e sustentável. Mas quantas pessoas poderão desfrutar destes paraísos terrestres ultra-tecnológicos? E quais serão os parâmetros que lhes permitirão viver nesses locais? Quem poderá viver ali e quem não o poderá fazer? Para além dos tecno-entusiastas ou governantes fascinados pela possibilidade de ter cidades totalmente “sob controlo”, as cidades inteligentes correm o risco de se tornarem um dispositivo de desigualdade. Na China, estão a imaginar cidades de 2,5 milhões de pessoas. O que irá acontecer ao resto da população? Em que tipo de cidade irão viver? No Ocidente, o número destas cidades está a diminuir. O risco é que apenas algumas pessoas possam habitar em cidades inteligentes, presumivelmente suficientemente ricas para poderem viver e utilizar recursos que não estarão disponíveis a todos. A série de televisão brasileira “3%” dá-nos um exemplo perturbador do que uma cidade inteligente pode vir a ser. Nos seus episódios são-nos apresentados dois lugares; um chama-se Maralto, o outro chama-se Entroterra. O primeiro é uma espécie de lugar perfeito com natureza e espaços verdes por todo o lado, tecnologia eficiente e de alto nível, uma perspectiva vertiginosamente elevada da vida, a possibilidade de cura de possíveis doenças com tratamentos futuristas. No segundo vivem os marginais, que estão completamente atrasados em termos de tecnologia e recursos. Todos os anos o Maralto organiza o Proceso, uma espécie de grande exame que permite aos jovens de vinte anos do interior serem seleccionados, pelos seus méritos, para viverem no Maralto. Apenas “3%” poderão “merecê-lo”. E uma vez no paraíso, os mais merecedores terão de se esterilizar. No Maralto não há lugar para todos e acima de tudo o paraíso não pode ser herdado, deve ser merecido. Para além da crítica que a série também coloca ao conceito de meritocracia, o Maralto é uma transfiguração distópica do que poderia tornar-se as nossas cidades futuras, ou melhor, as cidades inteligentes para aqueles que as podem pagar. Maralto, de facto, é, para todos os efeitos, o que entendemos por cidades inteligentes. Para além dos aspectos mais distópicos, ou talvez simplesmente mais pessimistas, existem duas ordens de raciocínio que mantêm unidos os fios invisíveis que ligam os projectos de cidades inteligentes chinesas aos ocidentais; a escassez de recursos que permitirão a vida nas cidades inteligentes e a conveniência nos mercados mundiais de todas aquelas ferramentas tecnológicas que permitirão a sua realização. Em ambos os casos, a China é favorecida; em primeiro lugar porque os recursos necessários para desenvolver cidades inteligentes estão principalmente em território chinês; em segundo lugar porque toda a tecnologia que fará funcionar as cidades inteligentes, mesmo na Europa e nos Estados Unidos, já existe na China, está testada e é competitiva nos mercados mundiais. Os projectos de cidades inteligentes ocidentais, todos baseados num futuro eco-sustentável, dependerão cada vez mais da utilização e eficiência de certos elementos. Por exemplo, as baterias bem como a maioria dos bens tecnológicos necessários para gerir uma cidade inteligente, precisam das chamadas “terras raras” para serem construídas e que país tem mais recursos para as terras raras? A China tem quase o monopólio de todos aqueles metais raros essenciais para a energia com baixo teor de carbono e tudo o que está relacionado com o digital. A chamada “guerra dos metais” ou a corrida para encontrar estas terras raras dá-se sempre que possível, basta pensar na nova corrida à Gronelândia que se desenvolveu na última década e que mostra como o destino das tecnologias verdes e digitais do Ocidente está nas mãos de um único país, a China. Além disso, os metais raros são essenciais para a criação das nossas cidades do futuro, verdes e sustentáveis, mas a extracção destes metais, incrustados na rocha, é um processo complicado. E não é um processo “limpo”, pelo contrário, porque a refinação, como os peritos salientam, requer a trituração de pedras e depois a utilização de uma série de reagentes químicos, tais como ácido sulfúrico e nítrico, para não mencionar que para purificar cada tonelada de terras raras são necessários pelo menos duzentos metros cúbicos de água. Além disso, a água é poluída pela presença de ácidos e metais pesados. Uma minoria viverá em cidades sustentáveis, a grande maioria em locais poluídos. O segundo ponto que liga as cidades inteligentes da China ao nosso mundo diz respeito ao desenvolvimento de cidades inteligentes na China, pois desenvolveu tantos projectos de cidades inteligentes e tão à frente do Ocidente que tem a possibilidade de vender os produtos tecnológicos necessários para criar cidades inteligentes a preços competitivos nos mercados internacionais, incluindo os mercados ocidentais. A este respeito, deve recordar-se que as origens do projecto chinês datam de meados da década de 1990. Nessa altura, foi lançado um mega plano urbano; depois, em 2011, as iniciativas da cidade inteligente foram incluídas no então décimo segundo plano quinquenal. Em 2018, a China desenvolveu cerca de quinhentas experiências e tudo isto é mais do que todos os outros países juntos. Um elemento do passado, o desenvolvimento económico e a poluição que originou, e um do futuro, a corrida tecnológica que dura há anos, obrigaram basicamente a China a repensar o seu desenvolvimento urbano, perseguindo o modelo de cidade inteligente, capaz de desenvolver ao máximo a IoT e permitir qualquer tipo de controlo. O objectivo do governo chinês é entregar cidades seguras à sua população de dois pontos de vista que são a sustentabilidade ambiental, em nome do novo mantra da “civilização ecológica”, e segurança pessoal. O documento sobre o plano de construção da cidade inteligente de Xangai 2011-2013 afirma que o desenvolvimento inovador e transformador requer um sistema de infra-estruturas de informação avançado internacionalmente, um sistema de informação e inteligência eficaz, uma indústria de TI de próxima geração e um sistema de segurança de informação regional fiável. Para desempenhar plenamente o papel do mercado, e seguindo a orientação do governo, uma cidade inteligente deve ter as características chave da digitalização, do trabalho em rede e da inteligência para elevar o nível de modernização global da cidade e permitir aos cidadãos partilhar os benefícios. Esta abordagem, também confirmada por vários documentos governamentais produzidos a partir de 2014, visa, portanto, a construção de cidades de média dimensão, hiperligadas e capazes de tirar partido das novas tecnologias para controlar questões ambientais, de tráfego e populacionais, justificadas pela necessidade de erradicar a criminalidade nas cidades chinesas. Este último elemento é amplamente tido em conta pela população, por exemplo, em Longgang, um distrito de Shenzhen bastante famoso em todo o país pelas suas elevadas taxas de criminalidade, casos de roubo e furto que caíram mais de metade graças a sete mil novas câmaras de alta definição, equipadas com inteligência artificial, em todo o distrito. Mas entre estes pressupostos benéficos, surge uma preocupação de como podem os cidadãos proteger a sua privacidade quando os sensores recolhem dados sobre tudo o que os rodeia? Claro que tudo isto tem um impacto e terá também nas nossas futuras cidades inteligentes em questões relacionadas com os dados pessoais dos cidadãos. E alguns casos também deveriam ser um aviso para o Ocidente. Em Março de 2019, a declaração de Robin Li, CEO da Baidu, o mais importante motor de busca chinês, sobre a protecção de dados e privacidade dos cidadãos chineses lançou um alarme de que os chineses são relativamente mais abertos e menos sensíveis à utilização de dados pessoais. Se tiverem a capacidade de trocar privacidade por segurança, conveniência ou eficiência, em muitos casos estão dispostos a fazê-lo. A lei de 2017 sobre cibersegurança chinesa também tem a sua importância, que anuncia que quer proteger os dados dos cidadãos. É preciso esclarecer qual o papel dos governos ou o que acontece aos dados recolhidos pelo cruzamento de diferentes tecnologias. A questão da privacidade colocada pela recolha e processamento dos dados dos cidadãos extraídos em cidades inteligentes parece estar a anos-luz da Europa. Mas em breve se tornará muito actual, especialmente se pensarmos que a China já está a finalizar o que deveria ser o “projecto dos projectos”. O Presidente Xi Jinping indicou o local e a hora para fazer de Xiong’an, a cerca de cem quilómetros de Pequim, o modelo global de cidade inteligente em que existirão dois milhões e meio de habitantes para uma área que deveria tornar-se o farol, guia, exemplo para todo o planeta, do que se entende por cidade inteligente. Tudo começou em 2017, quando chegou o primeiro anúncio apresentando Xiong’an como uma nova cidade, o fulcro da “estratégia para um novo milénio”, uma área capaz de demonstrar um modelo urbano sustentável, moderno e inovador não só à China, mas a toda a Ásia (que hoje é o continente mais avançado e em breve aquele onde será produzida a maior riqueza do mundo). Em Junho de 2017, o Presidente Xi Jinping presidiu a uma reunião do Partido Comunista sobre planeamento urbano em Pequim, na qual afirmou que enquanto a capital deveria permanecer o centro da política nacional, cultural, intercâmbios internacionais e inovação científica, todas as outras funções deveriam ser transferidas para outros lugares, como Xiong’an. Entretanto, o presidente Xi promoveu uma série de funcionários experientes para este desiderato, em particular, o presidente da Câmara Municipal de Shenzhen de 2010 a 2017, que foi nomeado governador de Hebei, a região que irá acolher a nova cidade. O tecnocrata, Chen Gang, que supervisionou as indústrias de alta tecnologia de Pequim, tornou-se o primeiro líder da Nova Área de Xiong’an. Então, como será Xiong’an? Será arrumada, limpa, terá mobilidade sob controlo constante em termos de transporte público eléctrico e algoritmos prontos para organizar melhor o tráfego, que será escasso. Será uma cidade hiper-controlada. Além disso, e isto é de grande interesse, não será apenas o resultado da investigação chinesa pois os países europeus e a própria União Europeia também participarão no projecto “cidade inteligente das cidades inteligentes”. Na China, de facto, está-se a trabalhar para construir uma cidade ideal, para ser adaptada também às características ocidentais. Uma cidade que custa, mas a China não pretende poupar esforços pois estima-se que serão necessários quinhentos e oitenta mil milhões de dólares para construir a nova cidade, enquanto outros noventa e um mil milhões de dólares serão gastos para criar a imensa quantidade de infra-estruturas necessárias para o transporte (dentro e fora da cidade). O objectivo é transformar Xiong’an num novo pólo tecnológico financeiro em que 80 por cento do crescimento económico na nova área dependerá em grande parte das indústrias de ponta, com prioridade dada ao investimento em biotecnologia e ao estudo de novos materiais. Não serão perdidos os mais importantes gigantes chineses de alta tecnologia, tais como o Baidu, Alibaba e Tencent, que anunciaram a sua intenção de estabelecer ali as suas filiais. Da mesma forma, as principais empresas chinesas de telecomunicações, incluindo a China Mobile, Unicom e Telecom, irão testar as novas redes sem fios 5G em Xiong’an. A cidade de Xiong’an será “verde e inteligente” e estará concluída em 2035. Mas há também alguns problemas relacionados com tecnologia e controlo, segurança e mobilidade. O que é que falta? A arte, a cultura, o sonho, a experiência. Xiong’an, como muitas outras “novas” cidades chinesas, arrisca o seu destino habitual, ter necessário espaço, limpo, organizado mas desabitado. Ou, se for habitado, como será o projecto se alguma vez se tornar realidade? A ideia é animar a futura cidade inteligente com inserções, hotspots de natureza artística, capazes de transmitir interacção e informação, e para prenunciar uma ligação com o resto do país e do mundo através daquilo que hoje, na China, parece por vezes um fetiche que é a herança cultural.