Uma respiração sustenta-se

[dropcap]A[/dropcap]onde ides nessa lesta ligeireza? Ainda agora aqui estáveis, mas em piscando os olhos, já vos ides? Vinde cá, meu tão certo secretário, que não vos faço testemunha de queixumes ou lamentos, outras penas, mas desta admiração franca que sempre aqui venho escrevendo. Vinde cá, papel, em que as minhas leituras desafogo, para que vos diga que o livro se chama «Um quarto em Atenas» e que o escreveu Tatiana Faia; sim, meu tão certo secretário: é bem a prova de que a poesia encarrilha em regras próprias, muito suas, nem sempre facilmente apreensíveis. Encarreira em percursos que nem sonhais, quando faz do «mapa do mundo» «a sua miniatura». Tal como se diz da personagem/mulher que habita um dos mais fortes e densos poemas do livro (e por que não dizer belo, se de impressões de leitura, somente, aqui se trata?) intitulado «Cinco Visões de Paraíso», torna-se, também, ao correr do livro, indistinta «a fronteira entre a mente e o corpo», quando nos poemas se anota, a cada verso, «a distância/ entre lacuna e entendimento». São estas as manhas da grande poesia: provocar tensão entre o nosso modo de reconhecimento e a percepção da linguagem do poema, dos mundos que ele resgata e recupera, num mapeamento de percursos, em profunda irrequietude.

No final de «Um quarto em Atenas», num texto dedicado a agradecimentos que se tornam numa arte poética, breve, desinteressada, diz-nos Tatiana: «Nunca se sabe bem onde um poema começa, a barreira entre pensar sobre literatura e escrever é sem dúvida uma ténue parede através da qual se pode conversar.». Assim também ler: há certos poemas cuja leitura torna indivisa a barreira entre ler e pensar sobre que coisa é um poema; de que modo produz a poesia os seus significados, melhor, o seu assombramento: aquela força quase física de uma tensão que começa a balancear o texto e que abala o leitor, o perturba, desinquieta.

É equilibrado na barreira ténue entre «lacuna e entendimento» que o leitor reconhece, estranhando, os espaços do poema (uns físicos, outros mentais), as referências, os autores convocados, poemas, filmes, pessoas, personagens, tempos que se perpassam. E, essencialmente, um ponto de vista: os sítios de onde se olha («esses lugares todos/onde para lá do acidente convergimos») para o lugar que se olha. Este é um livro feito de territórios, locais de vigia sobre o mundo: janelas, afinal, para outros lugares, que se observa, com a nostalgia irónica de quem analisa em distância e explode nas suas inquietações e nervosismos. Um processo em tudo similar ao que se diz do grito de Munch, que, afinal, não representa, simplesmente, um homem a gritar, mas «um homem a tentar conter/como as barreiras de um rio/ o grito de tudo o que o rodeia». Será isto. A tensão do grito desta poesia resiste na busca de contenção de tudo o que a rodeia, também.Sim, meu tão certo secretário, tendes razão: estou a roubar versos, tão somente, para dizer dos poemas aquilo que quereria dizer; uma forma, eu sei, de os canibalizar.

Mas canibalizar o verso alheio é o mínimo que podemos fazer a um poema, deformando-o, torcendo-o, até que ele nos diga aquilo, meu secretário, que gostaríamos de ter dito. Que mais podemos fazer com os poemas, se não isso: usar-lhes os versos, como um canivete suiço, para esventrarmos um pouco o caroço do nosso próprio pensamento de leitura?

Nesse texto no final do livro, Tatiana diz que uma vez tentou «explicar a um crítico que [mantinha] o hábito questionável de usar pessoas que são parte da [sua] vida para escrever.».

Enumera-as e são várias; assim como as diversas referências, modernas atravessando as clássicas, que falam nestes poemas sempre longos, a desafiar a tensão que pode atingir a língua de um poema; escrever assim é canibalizar, incorporar, absorver pessoas, textos, vidas. Até os locais e datas (paratexto que acompanha muitos dos poemas) se tornam, no livro, itinerários, não dos lugares onde a autora esteve, e onde escreveu (isso pouco nos interessa), mas dos ângulos de onde se olha a parte do mundo em que não se está, sublinhando a errância — nostalgicamente irónica –, como um fio condutor destes poemas. Como se diz, a dado momento: «a mais absoluta nostalgia/tem determinado todos os poemas.».

Duas referências assombram o livro, acima de todas as outras: Jorge de Sena e Ruy Belo assomam não só como autores citados, expressamente ou camuflados ou aglutinados, mas essencialmente como um ângulo de visão, um ponto de vista: o ponto de vista da distância, seja nas perspectivas sobre o tempo detergente (sempre o nosso), onde nunca foi possível o puro pássaro, seja pela ditosa pátria amada, em que ninguém merece ter nascido. O longo poema «Retorno, 2016», de que cito o final, é bem o exemplo desta errância de onde se olha, por exemplo, para o país:

[…]
« e um poeta com menos discernimento
neste país tão europeu que se enche
de painéis de publicidade em inglês
como selvas se enchem de vegetação
e certos quadros da renascença italiana
se enchem de cabeças cortadas

alinharia aqui os três fs e concluiria
que não tem sido fácil calcular a distância certa
que nos pode salvar do orgulho de estar sós
sem grande artifício há no coração desta
bela cidade uma enorme praça de touros
a ternura desarmante e sem dentes
de todos os empregados de mesa
um falo gigante num dos parques principais
e a ruína esfomeada de tudo o que cresce ou não cresce à volta

e o poeta que esta noite fechar a sua janela sobre o tejo
sabe que só é preciso fechar os olhos a metade
ou mesmo olhar para tudo com um olho a menos
para poder continuar a amar em paz o resto

Este prima de onde se olha para a realidade, como se se estivesse à janela de um quarto distante também absorve a visão crítica e irónica sobre o acto de escrita e o papel (não tu, meu tão certo secretário, outro) tão amarrotado, já, do poeta, bem evidente em textos como «Como reconhecer o seu autor feliz», «O grande fardo de palha do poeta comprometido» ou «Literatura para Falcões», imenso poema.

É de esguelha, de vários cantos, num percurso nómada, que se vê Europa como espaço e tempo e os seus horrores, presentes e passados (a perseguição acossada do nazismo é uma sombra do livro ainda, como uma memória de que se quer ainda sentir a culpa): «sábio/ deve ser só quem se consegue lembrar/depois de tudo roubado/do dever da própria memória», lê-se no poema, justamente intitulado « O filho de Saul».

Ler «Um quarto em Atena» é tentar a decifração de espanto a cada verso; espécie de vertigem, que sente as palavras em tensão. Não é a língua, a história literária ou cultural que nos dá o melhor diapasão para avaliarmos um livro de poesia. Não, meu tão certo secretário. É como vos digo: as leis da física oferecem instrumentos bem mais adequados. Um bom poema é aquele que põe a língua, as certezas, os leitores, a lógica do discurso, as referências, o dizer, num equilíbrio tenso, em tensão: esta medida de grandeza que avalia a força de tracção a um objecto. Ou ele se quebra ou se deforma ou volta ao seu intacto estado inicial (quase nunca).

Sim, meu tão certo secretário, é esta tensão, sem mais explicações, que parece definir a poesia de Tatiana Faia; a expectativa, o espanto, de ver algo a quebrar-se no poema, ou simplesmente ( e não é de somenos) assistir à força, à velocidade, à inquietação de sentir as palavras da poesia retomarem a forma original. No texto final de «Agradecimentos», a poeta lembra de passagem Ruy Belo, «autor de poemas longos e inesperados, […] onde se pode sublinhar muitos versos». É o que se espera de um leitor perante um bom livro de poesia: que lhe sublinhe os versos, tomando-os para si, levando-os no bolso, que há-de surgir o dia em que esses versos nos possam valer. É, no fundo, meu tão certo secretário, esta certeza que fica da escrita de Tatiana Faia: «enquanto ela escrevinhar/uma respiração sustenta-se e é tudo».

Tatiana Faia, Um quarto em Atenas, Lisboa, Tinta da China, 2019</h4
15 Jul 2019