A senhora – 3

Havia um amor combinado, um casamento. Entre famílias respeitáveis e para a vida. A dele com cultura, o teatrinho de marionetas delicadas e livros. A outra, com terra. Das três cartas de tradição, só a primeira foi entregue. A de noivado, com o contrato entre famílias. As datas de nascimento dos noivos, analisadas e estudadas por quem sabia, compatíveis e auspiciosas. As famílias contentes. Segurança e idoneidade. Ele menos jovem. Ela, muito.

Não lhe conhecera o olhar e poucas vezes se avistaram. Seria talvez entregue – o olhar baixo, de modéstia combinada – contra a carta do dote, ou ela no seu todo, com a terceira e última carta de contrato entre famílias, a do casamento em si. Que a levaria a sua casa para sempre. Chegaria de olhar novo nunca desvendado, para a cerimónia de união entre estranhos e desconhecidos. Não se sabe o que lhe voaria por detrás dos olhos. Dos dele, uma suave tristeza quase invisível, ante tamanha submissão.

Mas nunca chegou a ser. Sem anúncio, o fragor da revolução quebrou o contrato, como um puzzle desmanchado. Liberto, só percebeu a nova dimensão das coisas, quando poisou os olhos pela primeira vez noutra face, rubra, aveludada e sorridente. Uma curva particular da nuca, que rodara para ele um rosto, um fervor e uma energia em que nada fora combinado. Iluminados por um mundo desconhecido e nunca imaginado – uma janela sobre a paisagem – aqueles olhos vivos e directos. Pura ilusão, deixarem-se conhecer.

O desafio do futuro, num olhar. A tornar-se duro com o tempo.

Casaram. Um entusiasmo juvenil. Uma réstia de esperança. Na cumplicidade do amor. Na confiança, no desabafo. E, um dia, um baque surdo, interior e definitivo. Muito mais tarde, rever antigos cartazes da revolução, em traseiras de lojas de amigos, era como encontrar de novo aquela face em muitas outras. Rosadas e frescas, queixos levantados e ideias em uníssono. Mas cada vez menos com as dele. Uma espécie de esplendor e declínio da fé na revolução. Na sua intuição honesta dos direitos atropelados mortalmente. Era o que o homem pensava. A perder o norte. A pensar, fora do pensamento único. A murchar por dentro ainda novo. No campo de trabalho, afastado do ofício. Como se dele fosse arrogantemente vaidoso e não de forma poética ou sonhadora, dependente.

As proibições e tudo o que despoletavam de revolta em si. E um dia, mesmo, de ter mais filhos. O nó final. Na garganta.

E foi. Quando se quebrou o resto da amarra. E passou a ter uma alma mais velha do que os anos. Para sempre. Talvez o velho tivesse sido no silêncio, como uma janela sobre a cegueira e os direitos atropelados. Humanos. Mortalmente humanos. Sobre as proibições e a revolta em si. Pensamentos cruzados sobre os ângulos da vida e os da arte. E da liberdade, a falta. Um dia, mesmo essa de ter filhos. Foi o nó final que o fechou. Visto o rosto dela sem crítica, sem afecto – um instrumento obsoleto e pouco válido, talvez – e como sem nele adivinhar a mágoa.

Ficou a criança do meio. O menino de futura bolsa à cintura, relógio grande e ombros pouco firmes. A primeira, menina que não vingara mais do que as primeiras horas, no campo longínquo de olhares médicos e de condições maiores do que o fervor e a outra menina entregue para quem a viesse a querer se viesse e até lá num limbo institucional. Contra a sua vontade sem discussão. A alma, escondida cada vez mais ao fundo naqueles olhos lineares, acabou por esmorecer um pouco mais.

E também por isso um dia foi. Sob esse olhar implacável, imaginado nas suas costas.

O homem muito velho. Sem se saber como fora ali parar. À zona impessoal da Areia Preta. Onde não pertencia. Também ali.

Foi mais tarde, quando notou que nada o prendia a lado nenhum. E pensou no sinal alarado de chumbo que lhe tapava meio rosto, marca de nascença. De separação de tudo como o seu rosto em dois, metade clara, metade escura, como um fumo denso a cobrir o malar e meia fronte, e como num teatro de luzes e sombras. Mas o futuro ainda cantado pelas figurinhas, passado e fantasia. E as horas em sítios de passagem, a fazer vozes, a imitar instrumentos que não tinha, e a olhar com melancolia o montinho de moedas pequenas no chão, a crescer devagarinho, deixaram de ser o sentido dos dias. Foi deixando o ofício e deste esperava um mínimo. Depois, já só para si. E tão pouco.

Há um suave compêndio de mágoas em cada curva do tempo. A batida do coração em surdina progressiva. A trabalhar cada vez menos, desencantado de ganhos. Uma biblioteca pública onde vive os dias, sobretudo os de chuva, tornados maiores, sem fito, e uma biblioteca privada, mental, onde lê as inscrições do desapontamento que desfolha até esgotar. Passa sempre algum tempo ali. Não que lhe apeteça muito ler, já. Fica simplesmente a sentir o cheiro do papel, na companhia de jornais e do silêncio dos livros. A lembrar os que conhecia. O pequeno edifício octogonal enche-lhe o coração de conforto. Como uma casa. Ali, ao jardim de S. Francisco. Para lá se dirigia dias a fio, guiando os passos e descendo a cidade lentamente, para se sentar no meio do silêncio e dos livros. E do resmalhar dos jornais dobrados firmemente por quem lia. Só as segundas-feiras eram tristes, de um certo desamparo, porque não abria. A mais antiga biblioteca pública e a que mais amava. Como casa sua. Quando foi deixando de trabalhar mais do que para uma sobrevivência reduzida ao mínimo. Passos divididos como sempre mas evitando a fronteira.

A baía. A biblioteca hexagonal, a mesa de fórmica na zona norte, a mala poisada numa rua no centro. A voz a doer. A cama ao lado da parede húmida. Uma cartografia diária o fato guardado e revisitado.

(continua…)

26 Jan 2024

A senhora – 2

E fora, um pouco mais ao lado, de novo o olhar incisivo do homem chinês, talvez a medir a estranheza ali daquele seu ser estrangeiro. A olhar a chuva miúda que começa a cair desapiedada ou triste.

Os elementos que polvilham momentos alongados numa indiferenciação de registos – ou seria a sua mente a desfocar, numa fantasia em fuga – acinzentam e escurecem um pouco mais em redor e a chuvinha miúda cai direita e inabalável. Nada se move senão fios de chuva paralela às paredes, ténue mas incisiva. Quase a descrever uma certeza de intemporalidade conveniente. Como o cigarro do homem de idade, lá para trás, subitamente mais devagar, até parar por completo o tempo. A senhora, estaca vagamente encostada à parede de um prédio como os outros, dilui-se sem antes nem depois e indiferente a isso. Na intenção de olhar o céu.

Olha para cima: são sombras chinesas. Pensou, mas não disse. Mais ninguém de costas paralelas à parede do edifício, ao seu lado a olhar para cima, para dizer. Ficou-se ali, à espera. Talvez que a chuva parasse de persistir. Num leve encantamento, face virada para cima, olhar detido naquele rendilhado negro a recortar um céu claro e enevoado, um cinzento mais limpo do que tantos tons dos prédios, sem nuvens desenhadas distintamente. Restos de um toldo enferrujado e carcomido de tempo e dessa humidade impiedosa para as matérias corrosíveis. E a chapa, recortada em contraluz a negro, num desenho a lembrar a filigrana de figuras de um teatro de sombras. Delicadas no contorno, a substituir o volume que não há e a cor que não há aqui.

Pensa nessas marionetas de pele, animadas por varas. Na profusão de cores e símbolos, cuidados no detalhe e formas que nunca se verão, senão obscurecidas em sombra. Vizinhas. De uma humanidade que se apresenta, também ela, por detrás de uma tela de sentidos moradores no olhar de quem vê. Um contra- luz de ilusões. Como esta terra de que se é e não se é.

O que teria visto o homem velho, na sua figura errática. Imaginada a partir de um certo grau de inexistência, inspirou-o na sua procura de entendimento de si e do lugar. Como ao espelho, recortou-a tal e qual como uma metáfora de sombra.

O homem velho sofria de desnorte. Indeciso entre o para sempre e o nunca mais. Por bússola, somente as varas que produziam gestos. E nestes, histórias. E nas histórias, futuro. Movimentava marionetes de três varas desde menino, uma habilidade e uma rapidez a gerir sentidos nas articulações, cada vez maiores e quase inacreditáveis numa pessoa só. Com tanto futuro para contar.

A cabeça cheia de livros. Cujo eco, incontido, circulava naquele olhar filiforme, alongado misteriosamente na distância que a terra permitia – e a memória – como um mecanismo de máquina fotográfica. A pupila como um diafragma, tão fechado que produzia acuidade no olhar, e uma profundidade de campo quase infinita. Olhar contemplativo. Calado demais, excepto nas histórias. A fugir progressivamente dos contornos familiares, lendas, histórias de encantar e enredos de fantasia histórica. E a ganhar um cunho de fina ironia e irresistível análise social, mesclada de um sarcasmo a pedir duplas leituras que não seriam fáceis de adivinhar em todo aquele seu silêncio. A tornar-se imprevidente e a provocar naquele tempo um crescente temor na família. Do que viesse a suceder.

Um pouco já de costas e o país grande atrás de si. Imenso, desconhecido, agora em ondas – estas – de região para região ao sabor da febre de uma mão de ferro a dissolver estruturas, famílias, afectos, ofícios. Entusiástica, implacável, revolucionária, a apontar o dedo à arrogância de ofícios do intelecto e das artes e a empurrar para os campos de trabalho sério, energia, vida e silêncio de si, de cada um como indivíduo. Para aprendizagem da humildade obrigatória e como castigo, às vezes, de nada. Pensava e observava, à deriva e com a perplexidade devoradora, fora do pensamento único. O desfile de familiares, amigos ou conhecidos pelas ruas, exibindo o castigo público e letreiros ao pescoço. Pelas ruas como coisas que não eram donas de si. Ou marionetas de pele humana. Humilhadas ante os seus.

A paisagem próxima da pobreza do sul. E da humildade da profissão de artista que se consolava do excesso de realidade, inventando uma só para si e aceite. Antes da grande senhora. Antes das imperiosas condições para o sonhar e o criar o sonho. Vender sonhos a prazo. Talvez sonhos, talvez tempo, ou país, ou futuro possível. Mas isso antes que o sonhar fosse delimitado, com a nitidez a que os sonhos custam a adaptar-se. Era o que o homem pensava. A perder o norte. Antes de ser velho. Quando a família se desmembrou. Dispersa por campos de trabalho. A redesenhar a alma.

Uma estranha melancolia a desenhar-se a par com o crescendo tumultuoso da revolução. Que não encontrou terreno fértil no seu íntimo onde avolumava desilusão e crítica, serenamente guardadas a sete chaves. Segredo mal guardado pelas figurinhas faladoras naquele tom meio cantado em falsete, que tudo contavam por meias palavras. Carinhosamente produziu-as, finamente recortadas com uma infinidade de ferramentas e saberes de família, que envelheceram depois sem ele. Longe. Perdidas lá, na beira da terra grande. Desnorte por ser do sul. Donde alongava uns olhos de vidro obscuro muito escondidos nas pálpebras semicerradas e talvez mesmo por isso atirados mais longe. Para essa virtualidade do rio, líquida como um tempo. Ou para dentro de si mesmo. Numa desligada relação com o real físico que o cercava e foi avolumando férrea e irreprimível, ao ponto de prender, sufocar e insinuar a vontade da fuga. A inevitabilidade. Pela água, como um salto no tempo. Que o separava do pequeno território de Macau. De ouvir falar.

Ali em frente. Como um tempo possível a desenhar-se na mesma medida da angústia que o ia tomando.

Havia um dragão atrás de si e um dragão na sua frente, na fuga. Ambos com a bocarra escancarada e incandescente como tempo a engolir em cores diferentes. E o intervalo, um limbo a competir pelo lastro de cinzas. O renascer. Se sim ou não, depois se verá. Na alma só o dragão branco, aquele que nunca ninguém vê.

(continua…)

18 Jan 2024