Sedução e sucesso

Poderia dizer que era um guilty pleasure, mas não tenho por hábito contrair compungimentos por dá-cá-aquela-palha. Gosto de trap, sobretudo feminino. Cardis, Megans, Nickis, entre outras amazonas de beats e letras bandoleiras, de uma marginalidade tão plástica como os seus corpos. Não são mensagens bonitas mas são mensagens aguerridas, cheias de violência áspera onde o corpo é tantas vezes utensílio sexual instrumentalizado para a obtenção de lucro e poder. O que eu quero dizer com isto é que, sim, a maior parte das letras destas mulheres do hip-hop são um enaltecimento à prostituição. A desproblematização do corpo feminino enquanto objeto. Não um objeto que é imposto pelo olhar masculino, antes um objeto que parte de uma situação de delegação de autoridade à própria mulher promovendo a sua emancipação. Com ele, traz o desmantelamento das prisões puritanas onde a mulher é, frequentemente, reduzida à sua candura condescendente, pueril, estado do que é geneticamente singelo. A apropriação que estas artistas fazem do uso do corpo como ferramenta acaba por ser, simplesmente, a celebração de uma prática humana – nada menos do que isso. Talvez nunca antes tão ostentada e celebrada. Houve épocas em que a prostituição era detida com relativo respeito. Evoquemos Paris em finais do século XIX. Lembremos personagens como Valtesse de La Bigne (1848 – 1910). Ainda que operando no universo demi-mondaine da sociedade, a cortesã francesa atingiu uma reputação irrepreensível junto dos artistas da época através dos seus serviços de cortesã (AKA prostituição de luxo).

Sabemos que o final do século XIX na Europa fica marcado por um crescimento industrial e consequentemente económico sem precedentes. O desenvolvimento da tecnologia e da ciência permeavam agora o temperamento dos artistas com determinismo e positivismo. A lógica e a ciência permitiam o livre questionamento da existência de Deus. Livre das restrições de um modelo social puritano de índole teocrática.

Apesar da persistência de um plano de existência demi-mondaine, a prostituição era encarada como uma carreira. As troupes de ballet eram antecâmaras de exploração sexual para homens com posses que, até porque estava na moda, arranjavam sempre uma ou duas bailarinas de quem se tornavam “patrocinadores” (sendo que o patrocínio era pago com o corpo das mulheres de belas pernas).

Valtesse de La Bigne foi, provavelmente, a cortesã das cortesãs. De dia, estudava ciências sociais, lia poesia, analisava romances. De noite, seduzia os homens das elites artísticas e políticas da sociedade parisiense. A Courtisane du Tout-Paris pousou para Édouard Manet e Henri Gervex e serviu de inspiração para personagens de Émile Zola, Théophile Gautier ou Edmond de Goncourt. A sua cama foi assim descrita por Émile Zola no romance “Nana”: “Uma cama nunca antes vista, um trono, um altar onde Paris passou a admirar a sua nudez soberana”. Conhecido é também o episódio em que Alexandre Dumas, pedindo acesso aos aposentos de Valtesse, levou com esta reposta “Desculpe, mas não me parece que possa pagar este serviço”. Difícil não ligar esta resposta de Valtesse com uma Nicki Minaj a explicar “there’s no such a thing as broke and handsome”.

Para além do seu impacto e influencia nas artes e na literatura, Valtesse tinha uma visão muito perspicaz da geopolítica mundial e aconselhou o seu amante cônsul em Hanoi, Alexandre de Kergaradec, a manter a soberania francesa sobre Tonkin na parte norte do Vietname. Na história da sua vida, podemos ver como o temperamento de Valtesse era tão heteróclito e provocador como os das personas criadas pelas artistas do trap. Esta assunção feminina do corpo e da sedução como vias meritórias de progressão social é muitas vezes encarada pela sociedade patriarcal como uma subversão de valores e a minha questão é, porque não antes celebrada pela mera veleidade fantasiosa que representa? Afinal, já dizia Cardi B na sua música de abertura do álbum Invasion of Privacy: “I ain’t tellin’ y’all to do it, I’m just tellin’ my story”.

7 Dez 2021