Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteRui Mota, treinador de futebol na China: “Consegui mais do que aquilo em que acreditava” Natural de Guimarães, Rui Mota chegou à China em 2016 para treinar um clube da terceira divisão, o Sichuan Longfor, e desde então que o seu percurso profissional tem sido ascendente no mundo do futebol. No início deste mês, Rui Mota assinou por mais dois anos com a federação chinesa e garante que o objectivo é levar a selecção ao campeonato asiático e do mundo Acabou de renovar contrato com a federação chinesa de futebol por mais dois anos. Como foi chegar até aqui? Estou no futebol há cerca de 15 anos, e em Portugal fiz um percurso interessante, em que época a época ia dando passos em frente. Até que em 2016 surgiu a oportunidade de poder ingressar num projecto ligado a um clube na China, na altura na terceira divisão. Vim sozinho, era o único português e estrangeiro no clube. Entreguei-me de corpo e alma porque estou muito focado na minha carreira, venho de baixo para chegar ao topo e quero chegar ainda mais longe, e só assim é que pode ser feito. Como é o futebol na terceira divisão face aos outros escalões? Há ainda uma grande diferença em relação à qualidade de jogo e na própria formação de jogadores? Na China há uma realidade diferente da nossa. Os clubes vão fechando e vão abrindo, há clubes muito recentes. Em 2016 o clube onde estava só tinha um ano de existência. Eles queriam tentar chegar à segunda liga, era um projecto para três anos, e a minha contratação foi mesmo nesse sentido, para tentar modernizar. Aqueles meses iniciais correram bastante bem, tanto que a divulgação na China, nos media e nas redes sociais, foi forte, houve um grande impacto. Desse trabalho surgiu-me, passados oito meses, na parte final da época, a possibilidade de fazer uma experiência na selecção de sub-19 da China. Na altura ia participar no campeonato asiático no Bahrein e foi uma decisão que tomei, correndo o risco de sair do clube e ir à selecção tentar a minha sorte. Se corresse bem seria um passo enorme. Estamos a falar de uma selecção com toda a magnitude que isso representa e teria também a possibilidade de participar numa prova internacional, com selecções, algo que nunca me tinha passado pela cabeça. A verdade é que o seleccionador, agradado com o meu trabalho, me convidou para integrar a equipa técnica dele. O seleccionador era chinês, um grande nome no futebol aqui no país, e fui o braço direito dele no campeonato asiático no Bahrein. Esse foi também o momento em que a selecção A estava com resultados menos bons e o seleccionador fez uma mudança. Nessa altura estávamos no Dubai e surgiu a possibilidade do meu seleccionador poder avançar para a selecção A. Mas depois foi contratado um estrangeiro e mantivemo-nos no campeonato asiático. Quando terminou essa experiência no Bahrein, o que aconteceu? No final desse campeonato o meu trabalho foi bastante falado na China. Quando cheguei ao país tinha um objectivo, a possibilidade de tentar ficar no país durante quatro anos, em que tentaria chegar à super liga chinesa. Não fui jogador a nível profissional e é um trabalho que tem sido desenvolvido a pulso. Quando terminou o campeonato asiático pensei que tinha de tentar entrar na segunda liga no ano seguinte, e felizmente isso aconteceu. Foi para que clube? Na altura fui trabalhar com uma antiga glória do futebol, o holandês Jo Bonfrere, que tinha sido seleccionador da Nigéria durante muitos anos. Consegui ter essa aprendizagem, concluímos essa época na segunda liga, e depois felizmente fui surpreendido com o convite do Beijing Guoan, que é uma espécie de Real Madrid aqui na China, um clube com mais antiguidade, com muitos adeptos. Onde esteve até 2018. Sim. A estrutura técnica era alemã, liderada pelo alemão Roger Schmitz. Mas trabalhar na China é por vezes desgastante, porque estamos em constantes viagens. Quando temos deslocações, que são de duas em duas semanas, temos de fazer milhares de quilómetros e eu na altura estava desgastado com todas essas viagens e solicitações. Decidi que teria de dar um novo passo na minha carreira e foi aí que passe a integrar os quadros da federação. Assinei contrato no início de 2019. Uma colaboração muito abrangente e permanente até ao ano passado. Depois tive de estar em Portugal até Agosto, mas já regressei à China. Neste momento, renovei contrato e aqui estou. Qual é agora o caminho? Escreveu nas redes sociais que o principal objectivo é a qualificação da selecção chinesa para o campeonato asiático e do mundo. Estamos a viver momentos de muita incerteza, mas existe agora este projecto e a minha participação com a selecção é abrangente. Integro e sou seleccionado para projectos, e o que está em causa é tentarmos a qualificação para o campeonato asiático e depois possivelmente para o campeonato do mundo. A FIFA tem adiado algumas informações e decisões que tinha de tomar devido à pandemia, e estamos a fazer os nossos estágios e preparações, mas correndo o risco de tudo poder ser suspenso ou adiado. Seja como for, estamos preparados para competir quando for necessário. A selecção chinesa tem capacidade para competir e ter um bom desempenho num campeonato do mundo? A China tem um projecto até 2050, em que pretende participar no campeonato do mundo e até ser campeã em 2050. A ideia será, não só comigo, mas com todos os estrangeiros que vêm para a China, para os clubes, tentarmos desenvolver o futebol chinês e os seus jogadores no plano individual e colectivo. Esse é um trabalho que demora a ser feito, e comparando com o que vi quando cheguei e com o que vejo agora, parece-me que tem havido uma evolução. É isso que pretendemos. Têm sido feitas algumas naturalizações na selecção, o que de certa forma me poderá ajudar. O nosso pensamento neste momento é tentarmos ser cada vez mais competitivos e dentro da Ásia chegar a um patamar semelhante ao do Japão, Coreia do Sul ou Irão, que são as selecções mais desenvolvidas neste continente. Essa aproximação está a ser feita, mas de uma forma morosa, mas poderemos ter capacidade de ingressar no campeonato do mundo em breve. A percepção da sociedade chinesa em relação ao futebol também tem vindo a mudar. Isso aconteceu com a criação de muitas academias em todo o país. Alguns clubes de renome vieram para o país implementar os seus projectos e esse é o caminho que melhores frutos poderá dar no futuro. Tentarmos treinar e desenvolver os jovens jogadores neste momento, crianças dos seis aos dez anos, que serão a futura geração. Esses jogadores poderão estar mais desenvolvidos no plano teórico e poderão elevar o patamar para voos mais altos. Sobre o plano do Governo chinês para o futebol. Sente pressão no seu trabalho para ser mais competitivo e responder a esse desígnio político? A pressão no futebol acompanha-nos sempre, seja onde for. É claro que, não só na China mas em todo o lado, quando se fazem investimentos esperam-se retornos, e a China não será excepção. Acima de tudo, a federação e o Governo têm consciência de que é um projecto que precisa de tempo. Que começou em 2012 e vai até 2050. Ficamos logo com a ideia que são precisos resultados, mas é preciso fazer muito trabalho de base para que possamos chegar a um trabalho de detalhe. Neste momento, é importante incutir a paixão pelo futebol e que se criem mais academias e infra-estruturas. A China, desde 2018, 2019, consegue em várias cidades do país apresentar centros de treino com muita qualidade. O facto de terem vindo alguns jogadores estrangeiros de renome também é importante para os jovens. O futebol tornou-se disciplina obrigatória nas escolas e a ideia é que as crianças se possam sentir seduzidas ao ver jogadores com qualidade e com nome. O futebol existe na China também fora dos grandes centros urbanos. Sim. A China está a fazer novas construções, não só ao nível dos centros de treino, mas dos próprios estádios. Estão a ser criadas novas academias e clubes, e o projecto [político] inclui uma série de regras e leis que tenta melhorar toda a estrutura. É muito frequente ver também clubes de futebol em cidades mais pequenas. Quando cheguei à China, em 2016, vim para Chengdu, que tem 14 milhões de pessoas e só havia dois clubes de futebol. Como é que a pandemia tem afectado o seu trabalho? O trabalho da selecção foi suspenso. E quando fiquei em Portugal, em final de 2019, quando fui de férias, não pude regressar. A China está a encarar esta pandemia como todos os países deveriam encarar, como uma guerra, porque é disso que se trata. As indicações que tive foi para ficar em Portugal e aguardar novos desenvolvimentos. A China joga pelo seguro e pela prevenção máxima, e a nível de selecção os trabalhos foram cancelados, incluindo as idas ao estrangeiro. O campeonato de clubes também foi sendo adiado. Foi feito um campeonato com as mesmas jornadas, mas de forma mais curta e foram escolhidas algumas cidades para tal. Projectos para o futuro? A minha mentalidade e personalidade tem sempre a ver com novos objectivos e desafios. Consegui ganhar uma taça da China ao serviço do Beijing Guoan, consegui um apuramento para a Liga dos Campeões Asiática, a participação no campeonato asiático e trabalhar na selecção. Consegui mais do que aquilo em que acreditava. Pretendia, passados esses quatro anos voltar a Portugal, mas como estamos a trabalhar para estas duas grandes competições, e apesar de todas as incertezas, neste momento estou aqui. Mas pretendo voltar a Portugal e chegar a um patamar elevado.