Rui Flores PolíticaLaranja choque [dropcap style=’circle’]A[/dropcap] possibilidade de um outro populista, radical, islamofóbico, também loiro, com um penteado “diferente” vencer eleições, desta vez, na Europa, é muito grande. Na Holanda, Greet Wilders, o candidato a primeiro-ministro do Partido da Liberdade, está bem posicionado nas sondagens para ser o vencedor das eleições legislativas desta quarta-feira. Sinal de que as coisas parecem complicadas para o actual primeiro-ministro e para piscar os olhos aos muitos eleitores que se revêem no discurso nacionalista de Wilders, o governo acaba de proibir que dois ministros turcos entrem na Holanda para participar em comícios em favor do sim no referendo em que o presidente Erdogan quer ver os seus poderes reforçados. Mas, ao contrário de Donald Trump, Wilders não deverá ter qualquer hipótese de governar, pois, ainda que o Partido da Liberdade venha a ser a força politica mais votada, todas as outras assegurarão que não chegue ao cargo de primeiro-ministro. A fragmentação política da Holanda, no entanto, tendo em conta os estudos de opinião mais recentes, aponta para a necessidade da formação de uma enorme coligação (os especialistas falam na união de cinco partidos) para garantir a estabilidade politica. O cenário do governo de coligação não é uma novidade na política holandesa. O país tem vivido desde 2012 com um governo de coligação chefiado por Mark Rutte, de centro direita, que se juntou aos trabalhistas, de centro-esquerda. Uma espécie de bloco central à portuguesa. Como qualquer outra manta que se puxa, neste caso para o centro, descobre outras zonas da cama. Foi isso que aconteceu com o Partido da Liberdade, de Wilders, que aproveitou a ausência dos partidos que compõem o governo em determinadas áreas, para erguer algumas bandeiras políticas, nomeadamente uma que tem dado tão bons resultados eleitorais quer no Reino Unido quer nos Estados Unidos, que é campanha contra os imigrantes. O discurso contra o multiculturalismo dominante na sociedade holandesa parece estar a ganhar adeptos. No caso holandês, a retórica contra a integração europeia, contra a imigração e de oposição ao Islão, tem estado, paulatinamente, a ganhar espaço. Nas eleições legislativas de 2006, o Partido da Liberdade conquistou nove lugares no parlamento. As últimas sondagens apontam agora para a possibilidade de Wilders chegar aos 25 eleitos, num total de 150 deputados. A mensagem de Wilders tem sido tudo menos dúbia. Tal como Donald Trump, também ele – aliás, salientam os analistas, que há muito mais tempo do que o novo Presidente norte-americano – defende a criação de um departamento governamental que acompanhe o chamado “crime perpetrado por imigrantes”, de forma a determinar a imediata expulsão dos prevaricadores. Num artigo recente publicado na edição online da Foreign Affairs, procurando justificar que as linhas de força políticas do novo inquilino da Casa Branca não são “novas”, o radicalismo de Wilders é elencado. O candidato à chefia do governo holandês refere-se ao Islão como uma ideologia e não uma religião. Opõe-se à construção de novas mesquitas, quer fechar as que se encontram em bairros residenciais e também as escolas de cariz islâmico. Mais: propõe-se taxar as mulheres que cubram a cabeça com um lenço, isto além de já ter deixado muito claro que quer ver menos “marroquinos” na Holanda. Como bem observava Pacheco Pereira no Público, este fim-de-semana, o centro político, um pouco por toda a Europa, tem deixado espaço para o crescimento deste discurso radical, populista, xenófobo. A resposta, no entanto, ao crescimento do populismo, não tem sido a melhor – como se vê pela reacção de Rutter. Ao contrário de o combater, o centro político está a cair na tentação de se aproximar dos extremos, deixando órfão o eleitor do “centrão”. Assim, a tentação de escolher o candidato da novidade e de optar pelo discurso que promete a mudança é grande. Aparentemente, em França, as coisas estarão no entanto a virar. Pela primeira vez, neste fim-de-semana, Emmanuel Macron aparece à frente de Marine Le Pen nalguns estudos de opinião. A primeira volta das presidenciais é apenas em Abril, mas parece agora claro que Le Pen não deverá ter qualquer hipótese de suceder a Hollande no Eliseu. Uma boa notícia no mar das incertezas políticas em que se está a tornar a Europa.
Rui Flores VozesTábua rasa [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s declarações do presidente-eleito dos Estados Unidos da América (EUA) sobre a política de uma só China irritaram particularmente Pequim. As palavras usadas pelo porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros chinês são prova do grau de perplexidade. É fácil perceber porquê. Donald Trump acaba de questionar uma política norte-americana com mais de 37 anos. Trata-se de uma espécie de linha de força da política externa de Washington, que esteve na base da aproximação dos EUA à China, iniciada por Richard Nixon e os esforços diplomáticos de Henry Kissinger. Desde 1971, um ano antes da histórica visita do então Presidente norte-americano a Pequim, que todos os presidentes americanos têm defendido a política de uma só China. Embora só tenha sido articulada oficialmente em 1979, com a adopção pelo Congresso Norte-Americano da Lei das Relações com Taiwan (Taiwan Relations Act, TRA), a política tem sido quase integralmente respeitada e reafirmada nas declarações públicas dos governantes norte-americanos. A política estabelece que há apenas um governo legítimo que representa a China, o da República Popular da China. Foi nessa altura que os laços formais dos EUA com o governo nacionalista de Taipé foram cortados. No entanto, embora reconheça a política de uma só China, para Washington, o estatuto de Taiwan está por ser definido. Quanto a isso, a política norte-americana defende uma resolução pacífica. Como não se trata de um Estado soberano com o qual os Estados Unidos mantenham relações diplomáticas, a lei estabelece que tipo de relações podem ser estabelecidas com Taiwan. Ao longo destes 37 anos, isto tem permitido todo o tipo de trocas comerciais entre a ilha e os EUA, incluindo a venda de equipamento militar e de armas a Taipé. Aliás, a TRA é clara sobre o assunto: cabe ao congresso norte-americano determinar que tipo de assistência deve ser dada a Taiwan “para manter uma capacidade suficiente de autodefesa”. Trata-se pois de uma política dúbia. Ou, utilizando a linguagem que se encontra expressa, por exemplo, na recente Estratégia Global da União Europeia para a Política Externa e de Segurança, trata-se de pragmatismo baseado nos princípios. Outros diriam que se trata de realismo puro e duro, dos interesses, das trocas comerciais. Mas isto é o que tem, de facto, marcado as relações entre Taipé e Washington. Ao nível das visitas formais de representantes norte-americanos a Taiwan, o seu número tem sido escasso, de facto. De acordo com o levantamento efectuado pelo Congressional Research Service, um centro de estudos que dá apoio aos congressistas norte-americanos na elaboração de legislação, entre 1979 e 2014 apenas seis representantes de Washington visitaram Taiwan. Entre 1979 e 1992 não há registo de qualquer missão a Taipé; as visitas começaram apenas em 1992 e entre 2000 e 2014 nenhum responsável político norte-americano veio até este lado do globo. Nenhum destes dirigentes é oriundo dos chamados sectores sensíveis da governação: negócios estrangeiros, defesa, política externa ou assuntos internos. São de áreas específicas da administração, como o comércio, transportes, pequenas e médias empresas ou ambiente. A política norte-americana quanto a uma só China tem sido na prática respeitada quase ao milímetro. O que não quer dizer que não haja vontade de a mudar. Apesar de ser uma pedra basilar das relações com Pequim, recordada esta semana pelo ministro dos Negócios Estrangeiros chinês (“A política ‘uma só China’ é a fundação do relacionamento saudável nas relações sino-americanas”, disse Wang Yi, na esperança que não venham a deteriorar-se), existe a intenção de mudar o conteúdo da TRA. Na tensão permanente que marca as relações entre o poder legislativo e o poder executivo nos EUA, há pouco mais de dois anos, um grupo de 29 membros da câmara de representantes escreveu a John Kerry sugerindo uma revisão da política que estava há mais de 20 anos sem ser alterada. As novas condições existentes em Taiwan, que havia passado por uma transformação estrutural, com a abertura democrática, permitiriam um outro tipo de relações com a ilha. Debalde. Apenas 21 Estados mantêm relações diplomáticas com Taiwan. Nações pequenas, fazendo parte, quase todas, do grupo de países em desenvolvimento económico, com as quais Taipé gasta 200 milhões de dólares norte-americanos em projectos de apoio ao desenvolvimento. É evidente que o conteúdo da política externa do Presidente Trump é ainda pouco claro. Mas as nomeações que tem feito pressagiam que tudo poderá vir a ser posto em causa. Por exemplo, no que diz respeito a Taiwan, Trump tem-se rodeado de pessoas, como um antigo embaixador de George W. Bush nas Nações Unidas, John Bolton, que advogam um outro tipo de relacionamento, menos próximo de Pequim. Donald Trump parece não querer deixar pedra sobre pedra no actual sistema internacional. Deu a entender isso na campanha eleitoral, quando insinuou uma retirada dos EUA da Europa, no âmbito da NATO, para desespero dos países que fazem fronteira com a Rússia; quando declarou que a Coreia do Sul e o Japão deveriam robustecer os seus orçamentos militares, mesmo recorrendo ao nuclear, para confrontarem a ameaça da Coreia do Norte; quando afirmou que com ele na Casa Branca a presença militar norte-americana seria reforçada no Mar do Sul da China. Estas primeiras declarações sobre política externa mostram que, de facto, a incerteza sobre o posicionamento dos EUA no mundo será a nota dos primeiros tempos da sua presidência. Uma espécie de caixa de pandora com consequências imprevisíveis.
Rui Flores VozesCrise de valores [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] recente eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos da América veio reforçar a ideia de que vivemos tempos em que os valores estão em crise. A campanha e as propostas que o presidente-eleito norte-americano foi anunciando para o futuro do seu país e do mundo, são antes de mais exemplos típicos de populismo político. Eles incluem, entre outros, a ideia de que Trump é um impoluto, que representa todos os impolutos da nação, opondo-se aos poderosos e às elites; que é alguém que se assume como o verdadeiro representante da nação, que se levanta em nome de todos nós para enfrentar os outros, os que querem destruir a nação; alguém que preconiza soluções extremas para a resolução dos problemas que o país enfrenta. Os estados europeus da NATO querem continuar a beneficiar da protecção dos Estados Unidos? Vamos obrigá-los a pagar! Temos de acabar com a entrada de imigrantes ilegais nos Estados Unidos? Construa-se um muro. Todos estes exemplos que, de acordo com a doutrina, são casos evidentes de populismo político, põem em evidência o racismo, a xenofobia, a intolerância, o desrespeito pelo próximo, a falta de solidariedade. Enfim, constituem um verdadeiro ataque aos princípios basilares, por exemplo, da Organização das Nações Unidas (ONU) e dos valores que estiveram na base da construção da União Europeia (UE). Por causa disto, muitos analistas das relações internacionais têm vindo a falar num regresso da realpolitik à cena internacional. Ou seja, estaríamos por estes dias a viver um retrocesso considerável na forma de gerir a coisa pública dos Estados. Em que as considerações morais e ideológicas estariam de um modo sistemático a soçobrar às de natureza prática. Não se deve julgar, no entanto, que este sinal de “progresso” é algo exclusivo dos Estados Unidos de Trump. Cinco meses antes da vitória do magnata dos casinos e dos hotéis sobre Hillary Clinton, em Junho, a UE aprovou a nova estratégia global para a política externa e de segurança. Por iniciativa da alta representante para os negócios estrangeiros e de segurança, a italiana Federica Mogherini, a União reviu o documento estratégico em que estão plasmados os princípios que devem ser seguidos pela UE enquanto bloco no seu relacionamento com o “mundo exterior”. Mas, ao mesmo tempo que elenca um conjunto de prioridades, princípios, valores, interesses (é muito significativo verificar que os termos são usados indistintamente para assinalar a base programática da politica externa comum), a estratégia afirma, com grande pompa, logo nas primeiras páginas do documento, que as relações externas da União se regem por um certo “pragmatismo baseado nos princípios”. E quais são os princípios da UE em 2016? Eles envolvem uma hierarquia de valores que inclui a paz e a segurança, uma ordem global baseada no Estado de direito, democracia e direitos humanos, economia de mercado e prosperidade. O que a estratégia não estabelece – e é algo que está dependente dos interesses momentâneos do clube dos 28 – é qual a ordem que prevalecerá em caso de conflito de interesses. Irá a UE continuar relações comerciais com ditadores que não estejam empenhados numa agenda que envolva o respeito pelos direitos humanos? Até agora a resposta da UE não tem tido grandes considerações pelas questões essenciais da lista que a própria União estabeleceu. E não há razões para crer que as coisas venham a mudar no futuro próximo. No fundo, o que a estratégia pôs preto no branco foi que as relações externas da UE continuarão a mudar de acordo com os interesses momentâneos da realpolitik. O que este exemplo da UE demonstra é que a tendência veio pois de trás – até porque o documento aprovado em Junho demorou dois anos a ser elaborado e pretendeu responder a anseios e dificuldades detectadas há anos. Donald Trump não é, pois, o principal causador desta onda de choque em que parece que estamos a viver. E outros choques que se possam vir a sentir não estão relacionados com a capacidade de os Estados Unidos influenciarem o resto do mundo. As pessoas foram votar em Norbert Hofer na Áustria, também porque estão fartas de como a política está a ser conduzida no seu país. Votaram contra o referendo constitucional na Itália não porque não queiram governos estáveis, mas porque também estão cansadas da forma como os principais partidos têm conduzido o país. Querem algo de novo. Não têm visto grande coerência na aplicação dos valores, princípios, prioridades nas últimas décadas. Estão, pois, fartas. De não poderem alterar as coisas. De o Estado social que as trouxe até aqui não estar a dar a resposta de que precisam. Como escreveu esta semana no The Guardian Stephen Hawking, um dos grandes pensadores do nosso tempo, estamos a viver os tempos mais perigosos dos últimos anos. A elite, os partidos do centro têm de encontrar uma solução para a classe média que está todos os dias a perder empregos devido aos avanços tecnológicos, à computação, à inteligência artificial. Tudo isso tem levado ao aumento das vagas de migrantes que procuram nos países mais desenvolvidos um futuro para si e para as suas famílias. Contudo, sem valores, sem uma agenda que ponha os direitos humanos, a democracia e o Estado de direito no topo das prioridades, nada disso vai ser possível. Há pois um enorme espaço para que as surpresas que afectaram o nosso futuro colectivo com as votações do Brexit ou de Trump se repitam. Ainda não batemos totalmente no fundo.
Rui Flores VozesViagem à Cuba de Fidel [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]ssisti a um dos “famosos” longos discursos de Fidel Castro. Foram duas horas de uma intervenção laudatória dos feitos da revolução cubana, acompanhada de ataques constantes ao “imperialismo norte-americano”. Em pleno Verão de 1996, em reportagem para a Antena 1 da Radiodifusão Portuguesa, segui um grupo de militantes e simpatizantes comunistas, de Portugal, que foram passar três semanas a Cuba, com o objectivo primário de ajudar nos campos de uma cooperativa agrícola da província de Holguín, no sudeste da ilha. O embargo imposto pelos Estados Unidos da América condicionava de sobremaneira o acesso de Cuba a produtos químicos, fertilizantes, pesticidas. As ervas daninhas abundavam, portanto. E eram retiradas dos campos agrícolas por brigadas de “agricultores”, em grande número, à mão, que limpavam os terrenos de uma ponta à outra, para proteger as plantações. Todos os anos o governo cubano premiava a província que tinha alcançado os melhores resultados de produção agrícola, numa lógica de competição interna entre as várias regiões do país, que era depois celebrada com uma cerimónia com a presença do líder cubano. O título da região com melhor desempenho agrícola era entregue aos dirigentes locais e a população podia ver o comandante em chefe e apreciar a sua capacidade oratória. No discurso a que assisti, Fidel exultava com os feitos alcançados pelo socialismo cubano. E rejubilava com as medalhas que estavam a ser ganhas pelos atletas cubanos nos jogos olímpicos de Atlanta. Dizia ele que cada medalha valia por duas. Não apenas eram medalhas olímpicas mas eram também conquistadas “em solo gringo”. No âmbito desta visita organizada pela Associação de Amizade Portugal-Cuba, além de alguns dias em Holguín, na “finca” agrícola e em Guardalavaca, passámos alguns dias em Havana, na Sierra Maestra e em Santiago. Impressionou-me o nível de educação dos cubanos. A estatística mostra que Cuba é dos países do mundo que maiores taxas de literacia possuem. A estatística é naturalmente importante, mas o contacto diário na rua é algo que dá uma visão mais palpável. As funções profissionais que tenho desempenhado têm-me levado a diversos países em vários continentes. Tenho privado com vários líderes políticos e responsáveis governamentais, além de funcionários e de “cidadãos comuns”. A cultura geral, o conhecimento do mundo que a quase totalidade dos cubanos ostentava, é de facto acima da média. Isso sentia-se em Havana, entre as pessoas que se encontravam pelas ruas entre a Bodeguita del Medio e La Floridita ou no Malecón, mas também nos bares com música ao vivo em Santiago ou em Holguín. Todos os trabalhadores da “finca”, por exemplo, eram licenciados, em diversas áreas, incluindo médicos e engenheiros, com oscilações salariais muito reduzidas. O investimento na educação efectuado pelo governo cubano foi a todos os títulos notável. Esse investimento extraordinário na formação dos seus quadros, mas também na saúde, permitiu-lhe por outro lado exportar solidariedade na forma de pessoal médico. Assisti a isso, por exemplo, em Timor-Leste, logo a seguir à independência, onde durante anos trabalharam algumas centenas de médicos quer na capital, em Díli, quer no interior do país, às vezes sem qualquer tipo de equipamento além do seu conhecimento sólido – afinal o país tinha acabado de se livrar do jugo da Indonésia, tinha visto grande parte das suas infraestruturas destruídas na sequência da acção das milícias em fúria com o resultado do referendo – e o investimento na saúde não chegava a todo o lado. Vi médicos cubanos a trabalhar também na Serra Leoa e na Guiné-Bissau, muito antes de a cooperação Sul-Sul se ter transformado num slogan. O investimento na educação contribuía, por outro lado, para uma autêntica formatação ideológica. Por outras palavras, assegurava que o discurso hegemónico fosse assimilado e repetido por quem passava pelas faculdades – e era a quase totalidade da população. Os comités de defesa da revolução faziam o resto e controlavam quem ousasse pensar diferentemente. Apenas alguns resistiam. Nada que George Orwell não tivesse imaginado. Por esses tempos, Cuba estava finalmente a abrir-se. Os restaurantes privados, dos cidadãos, nas suas próprias casas, os “paladares”, tinham sido autorizados recentemente. E espalharam-se como cogumelos em terra húmida. Sem guias nem estrelas Michelin, ia-se de casa em casa, por ouvir aqui e ali, que se comia bem. E comia-se invariavelmente lagosta grelhada, acompanhada por arroz com feijão, por 10 USD. Aliás, o peso cubano era como se não existisse. A moeda em circulação era o dólar americano. E com ele podia comprar-se quase tudo. Desde a refeição no “paladar” ao charuto que se adquiria no chamado mercado negro, que era tão fácil de aceder quanto perguntar na recepção do hotel onde se poderia comprar cubanos puros, genuínos, que eram retirados das fábricas pelas pessoas que precisavam de dólares para viver. A caixa de 25 charutos ficava em 25 USD. Era o número mágico do 1 USD. A cuba libre, o rum añejo, tudo custava 1 USD. Excepto a lagosta. A abertura seria lenta, naturalmente. Ainda não tinha chegado, por exemplo, ao culto religioso. A catedral de Havana estava fechada a cadeado. E o lixo acumulado na sua escadaria era sinal de que não era um edifício assim muito frequentado. Durante as três semanas que passei em Cuba falei, naturalmente, com muitos cubanos. A maior parte – sobretudo os próximos da linha hegemónica – repetia os números do sucesso da revolução. Alguns outros, no entanto, não alinhavam pelo mesmo diapasão. Falavam do medo. Do controlo que o partido exercia sobre eles. Das dificuldades económicas que sentiam. De o peso não valer nada. Diziam-no com receio de serem escutados por um qualquer controlador de bairro – o elemento fulcral da força do partido. Só praticamente na véspera de regressar a Portugal é que consegui que um dos meus interlocutores – um jovem estudante, estafado de promessas de dias melhores – falasse para o gravador e dissesse o que outros me foram dizendo. Que lhes faltava a liberdade.
Rui Flores VozesUm mundo ao contrário [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo presidente, Donald Trump não deverá adoptar todas as políticas que estiveram na base da sua campanha eleitoral e da extraordinária vitória sobe Hillary Clinton. As declarações que proferiu sobre o plano de seguro de saúde para os mais desprotegidos (Obamacare) após o primeiro encontro com Barack Obama, dão conta que, afinal, Trump, presidente, deverá deixar cair muitas das promessas de Trump, candidato. As ondas de choque à eleição de Donald Trump – sobretudo na Europa –, fazem prever profundas alterações não apenas na forma como os Estados se relacionam com Washington, mas também na forma como definem as suas políticas de segurança e de defesa e sob que prisma são definidas as linhas mestras das relações internacionais. O presidente da Comissão Europeia, Jean Claude Juncker, por exemplo, aproveitou a eleição de Trump para salientar uma das principais prioridades da Estratégia Global da União Europeia para as políticas externa e de segurança: o reforço dos orçamentos de defesa dos Estados-membros. Aliás, a surpreendente vitória de Trump constituiu uma oportunidade para Juncker chamar a atenção para a estratégia adoptada pelos chefes de Estado e de governo da União Europeia, há quatro meses, que passou praticamente ao lado da imprensa internacional. O documento, aprovado cinco dias depois do referendo que determinou a saída do Reino Unido da União Europeia, no Conselho Europeu convocado para discutir o Brexit, não mereceu grande atenção por parte da comunicação internacional. Sobretudo aquela que é capaz de formatar a opinião pública internacional. No documento – redigido muito antes de qualquer indicação de que Trump poderia ganhar a Casa Branca – propõe-se que os Estados-membros da União Europeia reforcem a sua contribuição para a NATO, aumentem os seus orçamentos de defesa para a percentagem indicativa de 2% do Produto Interno Bruto e intensifiquem a cooperação militar. Numa frase: os europeus tinham de ter melhor equipamento, reforçar a componente formativa e estar mais bem organizados. Objectivos que não são fáceis de conciliar com políticas orçamentais restritivas. Por tudo isto, a mera eleição de Trump e toda a incerteza subjacente à manutenção das políticas de Obama em matérias de relações externas, veio pôr as questões de segurança e de defesa no centro da discussão no interior da União Europeia. Independentemente de vir ou não a aplicar muitas das prioridades enunciadas no último ano, convém ter presente algumas das prioridades que Trump tem para sua América. Ambiente. Trump não acredita que as alterações climáticas sejam um problema ambiental significativo e duvida que seja o ser o humano o principal responsável pelo aumento da temperatura média do globo. Por isso, quer retirar os Estados Unidos (EUA) do acordo de Paris sobre as alterações climáticas que entrou em vigor apenas no início deste mês. China. As principais ideias de Trump quanto à China passam pela denúncia da prática de dumping e de manipulação do mercado e por aumentar a presença militar americana no Mar do Sul da China. Comércio internacional. Embora defenda o comércio livre, Trump tem criticado vários acordos assinados por Washington, por considerar que foram mal negociados e resultaram na perda de postos de trabalho para os norte-americanos. Quer, por isso, rever o acordo de comércio livre com o Canadá e México (NAFTA). Promete penalizar as empresas que desloquem a produção para fora do país, apontando o dedo à Ford, a quem promete impor uma taxa de 35% na importação de veículos oriundos das fábricas localizadas no México. Trump anunciou que vai retirar os EUA da Parceria Transpacífica (TTP, na sigla inglesa), pois, diz, esta beneficia apenas a China, o Japão e as grandes empresas americanas. Defesa. O aumento do orçamento militar é apresentado como uma das suas primeiras medidas. Trump pretende aumentar os efectivos no exército, marinha e força aérea, além de reforçar o escudo antimíssil norte-americano. Admite que o Japão tenha armamento nuclear e quer Tóquio e Seul a pagar mais pelo apoio que lhes é dado pelos Estados Unidos. Estado Islâmico. Trump promete intensificar os ataques militares ao Estado Islâmico. Suspender a compra de petróleo à Arábia Saudita, caso esta não coopere na luta contra o Estado Islâmico. Imigração. Trump promete deportar 11 milhões de imigrantes sem documentos que vivem nos EUA, construir um muro na fronteira sul do país e triplicar o número de agentes de imigração e controlo aduaneiro. Trump quer acabar com a política de atribuição de cidadania a filhos de imigrantes ilegais nascidos em território americano. Irão. Trump critica o acordo assinado com o Irão e propõe-se renegociá-lo, pois acusa Teerão de ser o maior patrocinador do terrorismo mundial. NATO. Devido ao aumento do terrorismo na Europa, Trump questiona a utilidade da NATO, qualificando a instituição de obsoleta. Quer que os Estados europeus contribuam mais para a aliança. Rússia. Trump está apostado em manter uma boa relação com Putin, a quem reconhece excelentes capacidades de liderança e elogia a sua actuação na Síria. Segurança nacional. Trump propõe-se reforçar o programa de contra-terrorismo no interior dos Estados Unidos, incluindo os controversos programas de vigilância do governo da NSA, e manter a prisão de Guantánamo, em Cuba. Vêm aí tempos de incerteza e de alterações profundas do posicionamento de Washington no mundo. Se, por um lado, as políticas anunciadas por Trump levarão a um maior isolamento de Washington (no que diz respeito ao comércio internacional, por exemplo), por outro, demonstram uma visão comercial em relação ao apoio que é dados pelos EUA aos seus aliados tradicionais. Ao mesmo tempo que Japão e a Coreia do Sul deverão ter de pagar mais pelo escudo que lhes é propiciado pela presença militar americana, um eventual reforço de meios no Mar da Sul China pode levantar alguma inquietação em Beijing. Os tempos do “realpolitik” estão para ficar. Uma visão realista das relações internacionais parece ter tomado conta da lógica da política internacional. A resposta de Juncker à eleição de Trump indicia isso.
Rui Flores VozesRien ne vas plus [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] fazer fé nas sondagens eleitorais – e desde Junho que a credibilidade das sondagens foi posta em causa, devido à surpresa que constituiu o anúncio do resultado do referendo no Reino Unido sobre a continuidade do país na União Europeia –, Hillary Clinton estará à beira de se tornar a primeira mulher presidente dos Estados Unidos da América. Para que a coisa se torne realidade “basta” que a antiga Secretária de Estado vença na Florida, estado flutuante, que tem sido o centro das atenções em vários momentos importantes das eleições norte-americanas, como em 2004, quando George W. Bush conseguiu ser reeleito. É claro que a questão de as sondagens não conseguirem ver a fundo o que pensam as populações é premente. Não porque os métodos se tenham tornado cada vez mais falíveis, mas sim porque as sondagens não conseguem entrar na mente das pessoas. Por mais que o mundo se pareça com o ambiente controlado do livro “1984” de George Orwell, as pessoas continuam a ter total soberania no seu pensamento. Por mais científico que seja o método, por mais representativa que seja a amostra, as sondagens não ultrapassam o drama interior dos eleitores que se preparam para ir votar no candidato A ou B, mas que não têm coragem de o admitir. São eleitores que não exteriorizam o sentido do seu voto, porque optaram por uma atitude de resistência passiva à narrativa que foi sendo construída à sua volta. O que lêem nos jornais, o que vêem nos canais de televisão, como que coincide num só ponto: um dos candidatos é absolutamente incompetente, misógino, intolerante, anti-imigrantes, anti-China, anti tanta coisa. Envolvidos numa narrativa absolutamente negativa contra um dos candidatos, sobretudo quando se toma em consideração os jornais americanos que tomaram posição e anunciaram o apoio a um dos candidatos, os eleitores têm vergonha de admitir que afinal se preparam para votar naquele que a imprensa do mainstream qualifica como o “patinho feio”. A narrativa está construída. Na mesma linha do anúncio de alguns militantes do Partido Republicano que iriam votar Hillary Clinton em 2016, também os jornais mais conservadores, que durante anos apoiaram candidatos republicanos, optaram nestas eleições por sugerir o voto na candidata democrata ou simplesmente declararam que não apoiavam Donald Trump. Segundo uma compilação dada à estampa pela revista britânica The Economist na semana passada, de todos os jornais norte-americanos com maior circulação, apenas um declarou apoio a Donald Trump, o Las Vegas Review-Journal. Outros, tradicionalmente conservadores, que nas últimas nove eleições presidenciais (nos últimos 32 anos!) estiveram sempre do lado dos candidatos republicanos, optaram este ano por apoiar Hillary Clinton. São os casos do Columbus Dispatch, do Arizona Republic e do Richmond Times-Dispatch. A candidata democrata tem uma considerável almofada de apoio, com 53 jornais do seu lado, 13 sem opinião e outros três aconselhando o voto num dos dois outros candidatos. Com este “enquadramento” jornalístico, com claras consequências na opinião pública, é pois difícil dizer-se que se está contra a maioria. E a maioria, segundo as várias sondagens conhecidas, parece estar mais do lado de Hillary Clinton do que Donald Trump. Isto apesar de o candidato republicano ter conseguido reduzir distâncias nesta última semana de campanha eleitoral, à boleia da ajuda que lhe deu o director do FBI, que reordenou a abertura do inquérito a Clinton, por causa dos e-mails apagados. O mesmo FBI que, em Julho, decidiu-se pelo arquivamento do processo, por não ter conseguido provar intenção criminal. A média das sondagens nacionais vai dando uma pequena vantagem a Clinton, de 45.5 por cento contra 43.1 por cento. A diferença ainda que mínima pode ser importante em termos de voto popular. Apenas em quatro eleições o candidato que mais votos expressos pelos eleitores obteve nas urnas não foi eleito presidente. Assim aconteceu em 1824, 1876, 1888 e em 2000, quando George W. Bush foi eleito para o seu primeiro mandato com menos votos do que Al Gore. Nos Estados Unidos funciona um sistema indirecto na eleição do presidente, em que a cada um dos estados da União, tendo em conta o número de habitantes, é atribuído um número definido de votos eleitorais de um colégio que elege então o presidente. Para ser eleito, o candidato precisa de recolher um mínimo de 270 votos eleitorais. O estado que mais representantes elege para o colégio eleitoral é a Califórnia, com 55 votos. Outros, como o Alasca ou o Delaware, contribuem com apenas três votos. A diferença eleitoral é pois feita ao nível dos estados. À entrada para os dois últimos dias de campanha, havia, de acordo com a média das sondagens publicadas nos Estados Unidos, 23 estados que iriam tombar para Clinton e 22 para Trump. Mesmo à beira da eleição, após uma semana de desgaste político-judicial, a candidata democrata, com os votos eleitorais dos estados que iriam com alguma segurança – de acordo com as sondagens – cair para o lado democrata, estaria à beira da eleição, pois teria garantidos 268 votos eleitorais dos 270 necessários para ser eleita. Vários dos estados mais populosos, como a Califórnia, Illinois, Nova Iorque ou Pensilvânia estão do lado democrata (só nestes quatro estados Clinton deverá obter 119 votos do colégio eleitoral). Já Trump tem como principal base de apoio as mais que prováveis vitórias no Texas, no Tennessee, Indiana e Missouri, quatro estados que lhe garantem apenas 70 votos eleitorais, de um total de 157 votos eleitorais que estarão certos do lado republicano. As eleições vão pois – como sempre – decidir-se nos estados “swing”, os estados que tanto votam num ou noutro candidato. São estados “too close to call”, em que a diferença entre os dois candidatos nas sondagens é inferior à margem de erro, e relativamente aos quaise o melhor é atirar a moeda ao ar para dizer quem vai vencer. A dois dias do fim da campanha, havia nessas circunstâncias 11 estados, que representam 113 votos do colégio eleitoral. O prémio mais apetecido é pois a Florida, com os seus 29 votos eleitorais. E o Ohio, o estado em que todos os candidatos querem vencer, pois tem desde 1964 sempre votado no candidato que se muda para a Casa Branca. Para Trump poder ganhar, teria de conseguir sair vencedor neles todos, o que parece ser uma tarefa assaz complicada. Por tudo isto, por ter de vencer o mainstream, por ter de vencer a opinião pública, a vitória de Trump seria a todos os níveis mais espectacular. Ainda assim, se nos aproximássemos de uma mesa de jogo imaginária, em que teríamos de apostar no azul ou no encarnado, democrata ou republicano, a probabilidade de recebermos alguma coisa pelo nosso investimento parece, a esta distância tão curta da meta eleitoral, ser muito maior se colocarmos as nossas fichas no azul.
Rui Flores VozesA válvula de escape [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] libra esterlina encontra-se em mínimos históricos. Os bancos internacionais que durante anos tiveram as suas sedes europeias em Londres estão a anunciar a saída do Reino Unido até ao final do ano, não esperando pela invocação do artigo 50.° do Tratado da União Europeia pelo governo britânico. A responsável pelo governo escocês já anunciou que a Escócia vai preparar-se para um novo referendo sobre a independência. As consequências iniciais da recuperação da soberania nacional britânica em relação a Bruxelas parecem ser desastrosas. As perspectivas de dias mais risonhos não parecem convencer muitos. Pelo menos por ora, enquanto as consequências financeiras continuarem a afectar o bolso dos britânicos que estão a ver o seu poder de comprar diminuir ao ritmo da desvalorização da sua divisa. As sondagens mostram que o número de eleitores que se encontram arrependidos por terem votado “leave” no referendo de 23 de Junho seria suficiente para ter dado a vitória ao campo do “remain”. Isto tudo além do “vox populi”, dito por vários britânicos, meio a sério, meio a brincar, de que nunca o termo “União Europeia” foi tão pesquisado quanto na noite em que foram anunciados os resultados do referendo. Que ninguém parece ter alguma vez pensado em todas as consequências do Brexit é um dado adquirido. Havia umas suposições. Supunha-se que a libra pudesse flutuar mais do que quando a Grã-Bretanha estava dentro da União Europeia, embora nunca tenha adoptado o euro como divisa nem tenha aderido ao espaço Schengen, expressão máxima da livre circulação de pessoas no interior das fronteiras da União Europeia. Mas a possibilidade da desvalorização da libra seria algo, pois, que precisaria de ser confirmado pela realidade dos factos. Supunha-se que a União Europeia não aceitaria que um futuro acordo de comércio livre entre o Reino Unido e a União não contemplasse a livre circulação de pessoas. Mas isso poderia ser discutido. Negociado. Em política nada é certo, embora o acordo que existe entre a União e a EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre, composto pelo Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça), tenha como uma das suas premissas a livre circulação de pessoas entre os quatro estados e a União. Alias, a intransigência dos suíços em relação à circulação de pessoas levou a que as negociações com a União Europeia se prolongasse por 20 anos. E só foi desbloqueado depois de as autoridades helvéticas terem aberto as portas à entrada de estrangeiros sem restrições. Ainda assim, supunha-se que a Grã-Bretanha conseguiria travar a imigração de europeus. E isso seria um dado positivo, pois os britânicos haveriam de ter recuperado a sua soberania. Quatro meses passados sob o referendo que ditou a saída do Reino Unido da União Europeia, os vários sinais que saem de Londres apontam num só sentido. Ninguém sabe muito bem como se vai processar a retirada do Reino Unido. À cabeça de todos os responsáveis britânicos, Theresa May – para quem Brexit alegadamente “significa Brexit”, como ela disse quando substituiu David Cameron na chefia do governo – não parece estar particularmente empenhada numa solução rápida. Anunciou para Março a invocação do artigo 50.° do Tratado da União Europeia, mas o conteúdo da proposta da futura relação com o bloco europeu não é nada clara. Aliás, caso não cumpra a promessa de iniciar formalmente negociações com Bruxelas até Março qual será a consequência desse incumprimento? Se do ponto de vista politico, tudo indica que Theresa May está longe de ter definido o que será o conteúdo da proposta da futura relação do Reino Unido com a União Europeia, do ponto de vista institucional sucedem-se as vozes que pedem que seja o parlamento britânico a ter a palavra final no conteúdo do novo acordo a estabelecer com Bruxelas. A justiça britânica já foi chamada a tomar posição, determinando qual deverá ser o papel destinado ao parlamento em todo este processo. Enquanto o caso aguarda superior decisão pela justiça britânica, durante este fim-de-semana o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair veio contribuir um pouco mais para a confusão. Segundo Blair, a Grã-Bretanha deve manter as suas opções abertas sobre o Brexit, o que é como quem diz “devemos considerar a possibilidade de não avançar com a saída do bloco europeu”. Como o parlamento britânico deve ser soberano em matéria de relações externas, dizem muitos juristas, estaria encontrada uma porta de saída para o imbróglio do Brexit. Blair veio dizer o que muitos pensam. A angústia sobre a futura relação da Grã-Bretanha agravou-se esta semana com as dificuldades colocadas pela Valónia, região belga com pouco mais de três milhões de habitantes, governo e parlamentos próprios, em aceitar o acordo de comércio livre com o Canadá – um documento com mais de 1600 páginas negociado entre Bruxelas e Otava nos últimos sete anos. As dificuldades colocadas pela Valónia estão a ser interpretadas em Londres como um sinal dos inúmeros trabalhos que o Reino Unido ainda vai ter de superar para consumar o seu divórcio com o clube dos 28. É que a seguir a qualquer acordo estabelecido com Bruxelas, os termos da relação futura entre britânicos e a Europa a 27 vão ter de ser ratificados por pelo menos 38 dos parlamentos nacionais e regionais da Europa. E poderão nessa altura surgir outras Valónias. E depois há outras feridas pelas quais poderá ainda brotar muito sangue. Feridas anunciadas como o novo referendo sobre a independência da Escócia. Tudo consequências muito pesadas para quem queria ver restaurada a sua soberania nacional.
Rui Flores VozesEm nome do povo [dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi como se o mundo – leia-se a imprensa internacional do “mainstream” – tivesse acordado para o populismo apenas quando Donald Trump atingiu as primeiras páginas dos jornais. Nem todos os eventos, semelhantes na sua essência, são valorados da mesma forma. Naturalmente. Um atentado terrorista que mata uma pessoa na Europa recebe cobertura jornalística mais extensa do que um outro evento no Afeganistão que tenha feito 200 vítimas. O mundo é injusto. Mas esta é a lógica da comunicação social. A atenção que tem sido dada ao primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban, e ao seu discurso e políticas contra os imigrantes, ou ao presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, e à sua campanha pela eliminação de traficantes e consumidores de droga, é menor do que a que tem recebido Donald Trump, candidato republicano à presidência dos Estados Unidos da América. Mas a atenção mediática dedicada à campanha presidencial norte-americana tem o mérito de ter posto a academia a reflectir sobre as diferentes dimensões do populismo. A edição de Novembro-Dezembro da Foreign Affairs dedica, por exemplo, um número considerável das suas páginas a explicar o fenómeno. Recorre a vários pesos pesados da ciência política e comunicação, entre os quais Fareed Zakaria, apresentador do programa GPS da CNN, para fazer um ponto da situação sobre o populismo no ocidente. Entre discussões teóricas sobre as principais componentes do populismo – o discurso anti-elite, anti-sistema, a defesa do homem comum contra os poderosos, a invenção de inimigos externos contra os quais nos devemos unir para garantir a nossa sobrevivência – são avançados, também, dados actualizados sobre a chegada ao poder de partidos populistas no continente europeu. Desde os anos 1990 que o populismo ganha terreno na Europa, quer à esquerda quer à direita. Com a queda do Muro de Berlim, o fim da história e uma aproximação ao centro dos principais partidos – que foram implementando uma agenda reformista alegadamente neoliberal, esbatendo alegadas diferenças ideológicas entre centro-esquerda e centro-direita –, o espaço do populismo tem aumentado. Os partidos populistas controlam parlamentos em seis países: Grécia, Hungria, Itália, Polónia, Eslováquia e Suíça. O resultado de todas as eleições na Europa nos últimos cinco anos, 16, no total, dá aos movimentos populistas, de extrema-esquerda e de extrema-direita, uma média de 16.5 por cento dos votos. Pelo menos um partido populista em cada um dos países conseguiu mais do que 10 por cento dos votos. As causas estão identificadas e parecem estar aí para ficar. A globalização tem contribuído para a deslocalização de capital e de empresas, conduzindo a despedimentos de onde saem. Quando as multinacionais se mudam para outras latitudes, onde os salários são mais baixos, mandam para o desemprego milhares de pessoas e levam ao encerramento de outras empresas que não conseguem competir com as transnacionais. A migração que tanto tem preocupado a Europa nos últimos dois anos – devido ao conflito na Síria e à consequente onda de migrantes “maquilhada” somente por a União Europeia ter “comprado” à Turquia a manutenção de refugiados no seu território – é apenas uma consequência da globalização. E é um fenómeno que se repete um pouco por todo o lado. No Reino Unido, diz a narrativa populista, são os polacos que “roubaram” postos de trabalhos, sobretudo indiferenciados, aos britânicos. Noutros países, como em Portugal, sobretudo nos serviços, dominavam os imigrantes do Leste da Europa e do Brasil. O discurso contra a imigração tem estado no centro da campanha política nos Estados Unidos, pela mão de Trump, mas também já esteve no centro da discussão durante a campanha do referendo que, em Junho, decretou a saída do Reino Unido da União Europeia. Mas a globalização fez da imigração a regra. Os avanços tecnológicos têm igualmente contribuído para uma diminuição geral de postos de trabalho. Basta imaginar, por exemplo, o que acontecerá com os motoristas profissionais quando os carros deixarem de ser conduzidos por pessoas – um cenário de ficção científica que a Google e a Uber estão a transformar em realidade. A pressão demográfica que é colocada aos governos dos vários países desenvolvidos – sobretudo na Europa, onde o saldo demográfico, com a esperança de vida a aumentar e a taxa de natalidade a diminuir – põe um travão a políticas expansionistas e faz aumentar a conta da solidariedade social. Os governos sejam do centro-esquerda ou do centro-direita não têm grande margem negocial, sobretudo quando têm de cumprir as regras orçamentais. A dívida pública média dos países europeus está nos 67 por cento do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto nos Estados Unidos se encontra nos 81 por cento. Ou seja, no caso da Europa, apenas um terço do que é produzido poderia ser usado para investir na expansão económica ou para ser redistribuído. Os governos estão pois manietados. Ou, na expressão em língua inglesa, é a política da TINA (“there is no alternative”). Veja-se, por exemplo, a incapacidade negocial do Syriza para com a União Europeia. A grande diferença entre esquerda e direita, salienta, por exemplo, Fareed Zakaria, já não é económica, é cultural. E ela que vai marcando a diferença entre os dois campos. Temas “fracturantes” como o aborto, o casamento homossexual ou a eutanásia são cada vez mais as questões fulcrais nas campanhas políticas. Todos estes factores têm levado ao florescimento do populismo. O voto de milhares de eleitores da classe média, habitualmente do centro político, em partidos de extrema-esquerda e de extrema-direita, radicais, racistas, xenófobos – veja-se por exemplo como em França a Frente Nacional de Marine Le Pen está a crescer –, deveria acima de tudo preocupar os partidos no poder e levá-los a apresentar alternativas sérias, credíveis, de forma a que os populistas, demagogos, não tivessem possibilidade de crescimento. Mas após décadas de apatia política, reforçada pelas similitudes dos principais partidos, a possibilidade de um homem (ou mulher), anti-sistema, anti-político, anti-elite, um homem do “povo” que quer fazer frente aos poderosos, começa a ter um apelo cada vez maior. Tudo em nome do povo, bem entendido.