Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasRua do Mundo, 79 De entre os objectos que recolhi em casa, nestes anos em que alguns partiram, deixando-me e, para trás, vestígios que me custa apagar, há aquele livro em cujo título e subtítulos habitam e se leem, as palavras “resoluções” e “racional”. Que consta de questões de Aritmética, claro. Racional. Há objectos estranhos, muitas vezes discretos e anónimos, que protagonizam ainda mais estranhos encontros. E nem sempre se nos apresentam com essa veemência no primeiro momento. Mas é como se esse primeiro instante fosse o início da futura percepção destes. Impregnados daquele momentum que inquieta as partículas da matéria, com uma intensidade crescente, até que, dando-lhes um espaço na casa, um dia, são actores naquele encontro, como os que descreve Breton em “Nadja”. Tornando-se, verdadeiramente, objectos encontrados. Ou que nos encontram ao cimo de uma caminhada por outras vidas e desembocam aqui em nós. Folheio o roteiro de Lisboa de 1942, um pequeno livro de capa negra e letras sumidas, a que o arredondado natural com que foi desenhado se soma a um desgaste uniforme de todo ele mesmo na zona de corte das folhas. A zona cortante de cada uma, de outro modo. É dos objectos que tenho como mais queridos do pequeno espólio de tesouros do meu pai. Mas era preciso recuar a uma das gavetas daquela estante vinda de longe, onde habitam alguns objectos de natureza diversa e espécies diferentes, silenciosos e pacíficos. Um molho de “Falcões” da serie de Mamselle X, uma caixa de aguarelas ressequidas e de muitas cores, oferecida numa idade em que não puderam apaixonar-me, porque as paixões têm tempos que nem sempre se encontram reciprocamente atentos, o “Célebre livro dos destinos de Napoleão Bonaparte”, mapas de viagens antigas, duas lanternas de papel de arroz de desenho delicado. E mais uns pequenos tesouros que incluem o pedido de importação de 53 passarinhos de Montepuez, datado de 2 de Julho de 1974. São gavetas silenciosas e discretas como discretos são os objectos que as habitam. Mas quando lhes toco, é um rumorejar intenso, o que se desprende deles. Procuro, entre tudo isto, folheando o pequeno roteiro da cidade, aquele nome de rua. Volto ao livro amarelado, trazido de uma das casas de Z, de cheiro adocicado e, de tão frágil, em risco de fragmentação em folhas soltas. O livro em que como um grito ou uma acusação – quem sabe se, afinal, uma recomendação – aparece a negro a palavra “racional”. E bem mais abaixo, como uma revelação bem guardada para quem a merecesse: “Rua do Mundo, 79”. Como se o mais misterioso sinal, se tivesse guardado incógnito, reservando a encantadora e surpreendente referência para somente se dar a ver quando o envolvimento com o livro já era irreversível. Algum tempo depois. Morada da Livraria Pacheco. Aparentemente editores e livreiros. Telefone 21542. Este nome de rua, nunca ouvido, pareceu-me recuperado de um registo poético que teria que descobrir ou escrever. Ecoou como metáfora, ou como sorriso das matérias mortas que são todas aquelas palavras e números que enchem o livro e, no fundo, todos estes objectos anódinos e insignificantes que me prendem a um aroma a uma cor de papel ou a uma estranheza. Voltando ao roteiro da cidade, tão grande é a expectativa como o espanto da descoberta de que a rua é aqui perto, a umas dezenas de metros e a confinar com o meu bairro. Era. Mas antes do pequeno roteiro. Depois ainda é uma rua do mundo, mas com outro nome. De repente é como se tenha dentro, ou aqui ao pé, o mundo inteiro. E nada. Há momentos em que se dão pequenos encontros, com uma palavra e com estrondo, depois de o serem, com um livro e que nos levam a uma gaveta de preciosas recordações, que nos levam a uma referência que possui uma estranha coincidência e é como se de um conjunto desestruturado de acasos, surgisse um sinal da maravilhosa ou mesmo abismal fantasia, de que a realidade é somente uma capa. Uma ponte sinuosa de objectos do passado, todos eles escondendo uma vida alheia, como um mergulho num poço, numa espécie de macrocosmos dentro de um microcosmos, relembrando Foucault, ou a protagonizar um daqueles episódios de uma Alice no país de caminhos estranhos pela margem do aparentemente infértil real. Os interstícios, como intestinos de um animal-mundo, enorme, que é real, mas não mais do que o que se configura nos seus intervalos. Um e outro, indefiníveis. Uma perspectiva cónica com o ponto de fuga a apontar para dentro. As coisas. Dentro das coisas, dentro das coisas.