Rota Marítima da Seda | Maria José de Freitas fala do potencial da candidatura

Maria José de Freitas defende que Macau não se deve envergonhar do seu passado como entreposto comercial entre a China e o Ocidente nem dos laços com a rota comercial criada pelos portugueses que lhe deu o estatuto de cidade portuária. A arquitecta apela à divulgação, por parte do Governo, dos relatórios sobre a análise do impacto no património, que, diz, deveriam ser públicos

 

Maria José de Freitas entende que Macau não se deve envergonhar do seu passado como cidade portuária e um importante elo de ligação na relação comercial marítima que uniu a China e Portugal a partir do século XVI. Em declarações ao HM, a propósito da proposta de candidatura da Rota Marítima da Seda a património mundial da UNESCO, a arquitecta e estudiosa do património de Macau entende que há um lado da moeda afastado do discurso oficial.

“Macau não tem de ter vergonha do seu passado ou da sua origem, porque é diferente enquanto cidade que integra a Grande Baía precisamente pela sua história, que tem também um valor universal reconhecido pela UNESCO.”

Os critérios de classificação da UNESCO prendem-se, precisamente, com o facto de Macau ser “uma cidade portuária” e que apontam para a “miscigenação” do território.

Maria José de Freitas entende que há uma ocultação desse passado e que este “não é valorizado como deveria”. “Muitas vezes, até na informação divulgada pelo Instituto Cultural (IC), fala-se do encontro cultural que existe na cidade, mas não se mencionam esses critérios, muito vinculados ao facto de Macau ter sido uma cidade portuária. Isso não surgiu do nada, mas sim da relação com o Ocidente.”

Não se integra, portanto, “na divulgação do património de Macau todos os valores e situações, como é o caso dos portugueses e do comércio marítimo até chegar a Macau, no contexto de rede comercial vinda de África, Índia, Colombo e até chegar ao Japão, ou relacionado com as próprias missões ligadas à religião católica.”

“É como se só ouvíssemos um lado, mas o outro lado existe e tem vestígios. Temos, por exemplo, as Chapas Sínicas, que são reveladoras de um contexto que deve ser valorizado e integrado nesta Rota”, acrescentou.

Todo o sentido

Maria José de Freitas foi uma das oradoras do Fórum Cultural Internacional sobre a Rota Marítima da Seda que terminou ontem, com o painel “A Rota Marítima da Seda – O papel de Macau nas rotas passadas e futuras”. Durante dois dias, este fórum abordou a candidatura da Rota Marítima da Seda a património mundial da UNESCO, um projecto preparado por 28 países. Na visão da arquitecta, “faz todo o sentido que nesta candidatura Macau esteja incluído. Há perspectivas que se abrem para o futuro no âmbito da Grande Baía e também do projecto ‘uma faixa, uma rota’”.

Isto porque “os portugueses, antes de chegarem a Macau, estiveram noutras ilhas da Ásia e estabeleceram uma rede comercial e de troca de produtos, pelo que a localização de Macau era, assim, muito favorável”. “No retorno à China o facto de Macau se tornar parte desta Grande Baía é também um retorno às origens”, adiantou Maria José de Freitas.
Falamos de um período próspero, que vai do século XVI ao século XVII, quando Macau tem uma grande importância como cidade portuária, sendo um elo de ligação fundamental no comércio entre a China, Portugal e o resto do mundo.

“Macau era um parceiro fiável para a China naquela época e podia assegurar um percurso fluvial até Cantão, a fim de escoar os produtos chineses. No percurso para o Japão traziam as especiarias que vinham da Índia. Havia benefícios que os chineses aproveitaram e Macau estabeleceu-se então como um entreposto comercial muito forte que durou até ao século XVII. Só perde importância a partir do momento em que surgem as grandes companhias, holandesa, francesa e espanhola. O reflexo no urbanismo e na arquitectura é evidente, ainda hoje”, disse a arquitecta.

Onde estão os relatórios?

Questionada sobre a criação do Centro de Monitorização do Património Mundial de Macau, Maria José de Freitas entende ser um passo importante. “Quando trabalho com a UNESCO é habitual fazer-se o relatório periódico da avaliação dos bens, porque estão sujeitos a inúmeras pressões, de toda a espécie. No caso de Macau relacionam-se com a envolvente e que pode afectar os valores universais. Há ainda que garantir as condições de estabilidade e segurança dos próprios edifícios, perceber se são antigos, se podem ter problemas estruturais. Há também outras situações que podem ocorrer devido às alterações climáticas extremas, como os tufões e a poluição.”

Outro dos factores que pode afectar os monumentos, é o elevado número de turistas, actualmente em quebra devido à pandemia. “Podem aparecer de novo as multidões de turistas e já sentíamos em Macau que essa situação deveria ser monitorizada, portanto, há uma série de parâmetros que essa monitorização deve assegurar. Faz sentido que exista um organismo que faça tudo isso. O património só tem a ganhar.”

A arquitecta deixa ainda um alerta para que o IC divulgue os relatórios do “Heritage Impact Assessment” [Avaliação do Impacto no Património], que servem para “aferir qual a situação dos bens patrimoniais”.

“No caso de Macau não tenho visto isso feito, apesar de ser uma recomendação da UNESCO. Não há notícias públicas sobre esses relatórios. Em vários casos fazem todo o sentido, como o Farol da Guia ou a zona da Igreja da Penha. Os relatórios devem ser públicos e bilingues. O IC diz que essa análise foi realizada, mas ninguém conhece os conteúdos. O IC deverá ter esses documentos, mas a população, as associações de defesa do património e os académicos não têm. Estas coisas têm de ser transparentes e conhecidas”, rematou.

18 Nov 2022