Jornalista José Pedro Castanheira recorda ligação com Roque Choi: “Uma fonte absolutamente excepcional”

A forte ligação profissional que uniu o tradutor-intérprete Roque Choi ao jornalista de investigação José Pedro Castanheira foi recordada esta quarta-feira numa masterclass online promovida pelo Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. Castanheira diz “dever-lhe muito” e recordou o “silêncio total” que ainda permanecia sobre o 1,2,3 na década de 80

 

O jornalista de investigação português José Pedro Castanheira, autor de dois livros sobre Macau, recordou esta quarta-feira a ligação profissional intensa que desenvolveu com Roque Choi, que foi intérprete-tradutor de todos os governadores de Macau a partir dos anos 40, e até 1999, e uma importante figura nas comunidades portuguesa, chinesa e macaense. O diálogo aconteceu numa masterclass promovida pelo Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, intitulada “Encontros de um repórter com Salazar”.

“Ajudou-me muito a escrever a reportagem sobre o 1,2,3”, começou por dizer. “Quando estive em Macau, no final da Administração portuguesa, voltei a cruzar-me com Roque Choi que me confirmou a sua confiança e simpatia por mim.” Mas já antes, em 1987, José Pedro Castanheira se havia cruzado com ele, aquando de uma visita realizada ao território na qualidade de presidente do Sindicato de Jornalistas.

“Quando ele apareceu foi, precisamente, como intérprete. Falei com os directores dos jornais chineses de Macau e foi ele que traduziu. Eu poderia ser filho dele, pois nasceu nos anos 20, respeitávamo-nos e tivemos uma colaboração magnífica. Foi uma fonte absolutamente excepcional. Todo o meu trabalho sobre Macau tem a impressão digital do senhor Roque Choi.”

Para escrever o livro sobre o 1,2,3, intitulado “Os 58 dias que abalaram Macau”, José Pedro Castanheira conseguiu também outro acesso valioso a fontes documentais. “O Arquivo Histórico-Diplomático [em Lisboa] desclassificou a meu pedido toda a correspondência entre o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Lisboa e o Governador de Macau dessa época. É uma documentação riquíssima.”

Roque Choi, que esteve “no centro do furacão”, uma vez que “todos os segredos passaram por ele”, voltaria a cruzar-se com Castanheira nos anos 90, quando deu uma longa e talvez a última entrevista, publicada na íntegra anos mais tarde no livro “Roque Choi – Um homem, dois sistemas”, de Cecília Jorge e Rogério Beltrão Coelho.

“Acabou por me dar uma longuíssima entrevista de dezenas de horas no seu gabinete do banco, de que era administrador, e através da conversa e da sua vida fui capaz de reconstituir a vida de Macau e da Administração portuguesa, e das relações com o poder político em Pequim. Foi um privilégio inacreditável ter tido acesso a essa fonte, que é única. É a melhor fonte sobre a história de Macau dos últimos 50 anos, não tenho qualquer dúvida.”

“Silêncio” sobre o 1,2,3

José Pedro Castanheira recordou ainda que, aquando da sua primeira visita ao território, ouviu falar do 1,2,3, mas havia ainda muito por dizer e explorar, em 1987. “Falaram-me logo de uma coisa chamada 1,2,3 que achei estranhíssima, um nome de código. E depois explicaram-me que era o nome conhecido dos reflexos da Revolução Cultural em Macau.”

“Havia um silêncio total sobre o 1,2,3. As pessoas tinham vergonha, medo de falar nisso. Achei isso tão estranho que prometi a mim mesmo que a próxima vez que fosse a Macau haveria de tentar encontrar pistas e fontes que me iriam levar a perceber o que se tinha passado nesse mês de Dezembro de 1966 que se prolongou até Março e Abril de 1967, mas em Hong Kong”, recordou ainda.

Confiança de Rosa Casaco

Na mesma masterclass, o jornalista, que começou a exercer em 1974 e é jornalista do semanário Expresso desde 1989, lembrou ainda a sua entrevista a António Rosa Casaco, o agente da PIDE [polícia política do tempo do Estado Novo] responsável pelo assassinato do general Humberto Delgado, candidato à Presidência da República em 1958 e que disse, caso fosse eleito, que demitiria Salazar, então presidente do Conselho.

Essa conversa, publicada na revista do Expresso em 1998, é fundamental pela “importância que tem na nossa memória colectiva do assassinato do general Humberto Delgado”, tido como “o maior crime pessoal e político cometido pela ditadura em território continental português”. Nas ex-colónias portuguesas, “o maior crime cometido foi o do assassinato de Amílcar Cabral”, apontou Castanheira.

“Tive sorte”, respondeu quando questionado como conseguiu a entrevista com Rosa Casaco, que à data tinha sido condenado, à revelia, a oito anos de prisão. “Tenho tido acesso a muitas boas fontes e no caso particular do Rosa Casaco tive acesso a uma que resultou. Tentei usar várias, lancei o anzol, e tive a sorte de uma delas morder o isco. E revelou-se de uma tremenda eficácia, pois levou-me directamente ao Rosa Casaco. Era uma pessoa muito próxima dele que merecia a confiança.”

O jornalista recorda que teve de esperar dois anos até estar frente a frente com Rosa Casaco. “A fase final foi de intensas negociações, porque o Rosa Casaco impôs uma série de condições, por escrito, mandou-me um documento que ainda guardo e tenciono usá-lo quando escrever as minhas memórias como repórter, porque tem mais de 20 páginas. Inclusivamente é engraçado porque é um documento onde assina todas as páginas autenticando, e a última página tem a sua assinatura e impressão digital.”

Com a confiança a aumentar, Rosa Casaco acabaria por se deixar fotografar, condição que inicialmente recusou. “A entrevista foi publicada com uma série de fotografias do próprio Rosa Casaco junto à Torre de Belém, feitas pelo meu colega Luís Carvalho.”

José Pedro Castanheira não tem dúvidas de que esta entrevista foi dada com o intuito de passar uma clara mensagem. “Na nossa gíria, como costumamos dizer, não há entrevistas grátis. Durante muitos anos achava que sim, hoje não tenho ilusões. Mas só percebi a intenção dele depois da entrevista. Rosa Casaco, quando me deu a entrevista, calculou muito bem o timing. Percebi que ele fez as contas e considerou que em 1998, quando me deu a entrevista, em Fevereiro, prescrevia a pena pela qual tinha sido condenado. Ele apostou forte nisso e nesse momento pensou que já podia falar e ajustar contas com a democracia. A entrevista foi uma tentativa de ajuste de contas com a democracia.”

“Tentei convencer o Luís Carvalho a fazer as fotografias junto à sede da PIDE, mas o Rosa Casaco preferiu que essas fotografias fossem feitas na Torre de Belém e tiveram muito mais impacto. A ideia era vingar-se da democracia e humilhar a Polícia Judiciária e a Interpol, pois havia um mandato de captura. Ele acabaria por ter razão, porque houve depois uma pugna judicial que foi até ao Supremo Tribunal de Justiça. Posteriormente o Tribunal Constitucional foi chamado a intervir, e o último acordão do TC considerou que a pena de Rosa Casaco havia caducado. Ele podia estar em Portugal”, rematou Castanheira.

Ainda sobre as diferenças do aparelho censório entre os períodos em que Salazar e Marcelo Caetano estiveram no poder, José Pedro Castanheira não tem dúvidas de que houve uma mudança. “É inquestionável que houve uma grande descompressão por parte da censura, sobretudo a partir do momento em que Marcelo Caetano toma posse.

Até à posse de Caetano era tudo controlado à minúcia, ao segundo, à palavra. É o próprio secretário de Estado [Paulo Rodrigues] que tutela a censura que dá a notícia da morte de Salazar e é ele que leva o comunicado oficial à Emissora Nacional para ser lido pelo locutor de serviço. E antes de passar o comunicado para as mãos dele, o Paulo Rodrigues decide fazer ainda mais uma alteração no comunicado”, exemplificou.

14 Mai 2021

Livros do Oriente lança biografia de Roque Choi

Cecília Jorge e Rogério Beltrão Coelho ultrapassaram várias dificuldades para trazer a biografia de uma das personagens mais conhecidos na história de Macau. “Roque Choi – Um homem, dois sistemas” vem, sobretudo, “dar um contributo” para que se conheça um homem que sabia bem das culturas portuguesa e chinesa

[dropcap style=’circle’]R[/dropcap]oque Choi faz parte daquele grupo de homens da velha Macau que viu tudo o que havia para ver neste pequeno território, desde conflitos como o “1,2,3”, nos anos 60, ao período fascinante do comércio do ouro ou do nascer do Jogo. Contudo, este empresário e político, falecido em 2006, não tinha ainda uma biografia mais completa sobre a sua intensa vida.
Esse vazio foi agora quebrado graças aos jornalistas Cecília Jorge e Rogério Beltrão Coelho que, com a editora Livros do Oriente, publicaram a obra “Roque Choi – Um homem, dois sistemas, apontamentos para uma biografia”, a qual será lançada oficialmente na próxima segunda-feira, dia 16, na Fundação Rui Cunha (FRC).
Ao HM, Rogério Beltrão Coelho fala do trabalho sobre uma “figura ímpar”. “Não só era uma figura mediadora como era uma figura que funcionava tranquilamente e com uma grande consistência, quer junto da comunidade chinesa quer junto da comunidade portuguesa. Era um homem que conhecia profundamente as duas culturas e quando traduzia ou intermediava jogava com esse conhecimento que tinha.” 121115P10T1
Além de apresentar a vida de Roque Choi, o livro contém ainda uma entrevista inédita feita pelo jornalista português José Pedro Castanheira, dando também a conhecer as vidas de outras personalidades com quem Roque Choi se cruzou, como é o caso de Pedro José Lobo. Há ainda espaço para diversos testemunhos de pessoas próximas, como Abílio Dengucho, Anabela Ritchie ou Carlos Monjardino.
“Quem conheceu Roque Choi, ou quem com ele conviveu, vai lembrar-se de algumas particularidades e vai deparar-se com elementos que não conhecia. Quanto às novas gerações, muita gente não sabe sequer quem é Roque Choi e vai ficar a conhecê-lo. Acho que é um contributo interessante, porque para além dele, no livro fazem-se pequenas mini-biografias de cerca de 30 personalidades de Macau dos últimos cem anos”, explicou Beltrão Coelho.

Das burocracias

Chegar às informações da vida de Roque Choi não foi fácil. A pesquisa junto do Boletim Oficial (BO) acabou por ser, muitas vezes, a única via, mas também a mais difícil, dado que foi invocada várias vezes a Lei de Protecção dos Dados Pessoais.
“Uma coisa é proteger a intimidade na actualidade, outra coisa é não possibilitar a consulta de documentos com 50 anos e que são oficiais. Todo o percurso de uma determinada pessoa, num serviço público, pode constar no processo nesse serviço. E aí é vedado o acesso. Todos os movimentos de um funcionário público estão no BO (risos). Mas dá dez vezes mais trabalho e não faz o mínimo sentido. Numa das vezes que nos foi recusado [o acesso] e com um parecer jurídico… mas enfim, conseguiu-se ultrapassar essa situação. Mas o facto é que não há um entendimento prático e lógico do que é a protecção dos dados pessoais”, criticou Beltrão Coelho.
Defendendo que a biografia vem “dar um contributo”, por conter “muita informação, em muitos casos curiosa”, Rogério Beltrão Coelho diz, contudo, que não está prevista a tradução para Chinês. “A nossa editora funciona em Português. Não é nossa tradição publicar em Chinês, os livros têm de ser feitos para um determinado mercado e nós não entramos no mercado chinês. Mas se alguma entidade quiser traduzir, considero que faz todo o sentido”, concluiu.

12 Nov 2015