Manuel de Almeida VozesA Revolução Liberal de 1820 & Macau – 200 anos da primeira revolução contemporânea [dropcap]A[/dropcap]s Invasões Francesas – Junot, Soult, Massena (a mais destrutiva) e até a de Marmont – a Guerra Peninsular – que coincide com a Guerra da Indepêndencia Espanhola (factos que ocorrem entre 1807 e 1814) – a fuga da rainha D.Maria I, do príncipe regente D. João – proclamado rei D. João VI a 6 de Fevereiro de 1816 – e, parte da corte, da nobreza e alguma alta magistratura – à volta de 15 mil pessoas –, “Cofres vazios, moeda sem valor e juros proibitivos” – vivia-se numa iminente suspensão de pagamentos, a bancarrota. Um país arruinado e exausto, que vivia sob a alçada da tortura, censura, repressão e miséria. Foi a 24 de Agosto de 1820 – fez 200 anos – que um grupo de patriotas se pronunciou no Porto, em favor da “regeneração da pátria”, do “regresso do rei”, pela “salvação da Pátria através da razão e da justiça”. Afastaram a “Regência”. Morreu o Portugal velho (poder absoluto), nasceu o Portugal novo (começou a era da cidadania, das liberdades cívicas e da igualdade perante a lei). A 21 de Novembro de 1806, a França decreta o “Bloqueio Continental”. Em finais de Novembro de 1807, o Príncipe Regente, a Rainha, a Corte e grande parte da administração portuguesa, fogem para o Brasil, para escapar às tropas napoleónicas, que já invadiam Portugal. O País ficou entregue a um conselho de “Regência”, com a protecção da Grã-Bretanha, que configurou o País como um simples protectorado, e que não queria perder o controlo de uma rota comercial que lhe era extremamente vantajosa, útil – a do vinho do Porto, que dominava desde o princípio do século XVIII. A Grã- Bretanha vinha da (1812 – 1815), tinha um grande “poder” mercantilista, era já uma grande “potência” mundial, mas precisava de equilibrar a sua economia. Portugal tornou-se “uma possessão comercial inglesa arruinada” A “ordem” do bloqueio era isolar economicamente as Ilhas Britânicas, sufocando as suas relações internacionais. Junot entra em Lisboa sem resistência uns dias após a partida da “corte”. Entretanto, Napoleão e a Espanha assinam um tratado para “retalhar” Portugal. A Espanha ocupou o Norte e o Sul e o exército francês o Centro. O acordo foi “Sol de pouca dura”, já que, em Maio de 1808, uma insurreição em Espanha leva à retirada dos exércitos espanhóis e a declarar a França como inimigo. Este exemplo inspirou os portugueses. No princípio do século XIX, o Estado português vivia do comércio entre o Brasil e a Europa – era pouco, mas já era um passo na nossa autonomia económica, já que, no século XVIII, Portugal “só” vivia do ouro do Brasil, abandonou-se a agricultura e não se apostou numa industrialização do País. Com invasões e guerras, aumentaram as despesas, diminuíram as receitas, e o País cai numa situação económica precária – a falência. De 1808 (da passividade) a 1820 (à revolta) sopram ideais da Revolução Francesa e rupturas das cortes de Cádiz. Errâncias que inspiram “um desejo absurdo de sofrer” – fome, violações, miséria, violência, pânico, rebeliões. Era insustentável viver sob o domínio inglês. Os escombros das invasões. O pronunciamento militar em Espanha, em Abril de 1820, a tortura/assassínio dos “grandes que oprimiam” os colaboracionistas da “Regência”, a criação de milícias para combater inimigos, o aparecimento de uma nova elite letrada, tudo se viveu, tudo se aprendeu, tudo deu azo a um mau estar constante que levou o povo a dizer “Basta!”. Como dizia Agustina Bessa-Luís, uma “Revolução há-de ser também uma revelação”. Em 1815, enquanto os vencedores de Napoleão discutiam o futuro da Europa, em Viena, após a decapitação do , depois de vitórias sucessivas, esbarrando apenas na Rússia e em Portugal (com o auxílio inglês) – , a 16 de Dezembro, D. João VI “decretava a elevação do Brasil a reino, equiparando-o a Portugal”. Chamou ao Brasil as melhores tropas portuguesas (5 000 soldados, pagos por Lisboa), com a ambição de conquistar a “Banda Oriental”, do que é hoje o Uruguai. Começa uma nova fase da “nossa” presença no mundo, aquilo a que mais tarde se viria a designar como a “americanização” da monarquia portuguesa, tornar o Brasil no “grande império da América do Sul”. Já em 1817, houve uma conspiração frustada a favor de um governo constitucional contra a regência inglesa que governava em nome do rei D. João VI, no Brasil. No dia 18 de Outubro desse mesmo ano, no campo que desde 1755 se chamava de Santana, o povo assistiu ao espectáculo, que durou 9 horas – do meio-dia às nove da noite -, do enforcamento, por traição à pátria, de onze desses sublevados. Só não assistiram à execução do cabecilha – o general Gomes Freire de Andrade (herói de quinze campanhas napoleónicas), que foi sacrificado nessa mesma manhã, mas fora de Lisboa – para não haver distúrbios – no campo de Alqueidão, junto a São Julião da Barra. “Tu, que deste aos homens tudo o que tinhas e viveste de mãos abertas acabas enforcado com o rótulo de traidor” – lamenta Matilde de Melo, mulher de Gomes de Freire d’Andrade. A partir de 1879, este campo passou a designar-se Mártires da Pátria. Para este “episódio” da História convém ter presente o livro “Felizmente Há Luar”, de Luís de Sttau Monteiro. Recriada em dois actos, a história relatada na obra é baseada na tentativa falhada da “revolta” de 1817. O tema central do livro é a figura do General Gomes Freire de Andrade e a sua condenação à morte, levada a cabo pelo regime do marechal William Beresford, com o apoio da Igreja. A malícia, o humor, a ironia, a crítica mordaz, trocista, sarcástica, o escárnio, de tudo um pouco Sttau Monteiro deita mão para enobrecer/empobrecer a triste “sina” dos portugueses: “Vê-se a gente livre dos Franceses, e zás! Cai na mão dos Ingleses! E agora? Se acabarmos com os Ingleses, ficamos nas mãos dos Reis do Rossio” (Conselho de Regência); o desprezo de Beresford por Portugal – “E as àrvores… quem não viu as àrvores da minha terra, nunca viu árvores”; o substituir a monarquia absoluta pela constitucional – “a conspiração destina-se a implantar neste Reino o sistema de Cortes”. Denominada por Sttau Monteiro como apoteose trágica, nela o autor “Recorre à distanciação histórica para projectar uma luz reveladora sobre o presente”, uma espécie de dissertação ética, em que um facto histórico serve para denunciar as repressões políticas, perseguições e injustiças em Portugal na década de 60 – um incentivo à revolta. O livro foi publicado em 1961 e foi, desde logo, censurado pelo Estado Novo. Macau não ficou indiferente à partida do Príncipe Regente para o Brasil. “Entendeu, então, o Senado (…) ser da sua obrigação, enviar, nessa ocasião, um representante seu ao Rio de Janeiro, para apresentar, em seu nome e no da cidade, ao Príncipe Regente, efusivas congratulações pela sua chegada ao Rio de Janeiro” – Luís Gonzaga Gomes, em <Páginas da História de Macau>. O escolhido para representar a cidade foi o vereador António Joaquim de Oliveira Ramos, mas por impedimento deste foi nomeado o morador Raimundo Vieira Pereira, no entanto, quem finalmente desaguou na capital brasileira foi um comendador, de seu nome Domingos Pio Marques. 26 de Dezembro de 1818 foi a data marcada para a celebração da aclamação de D.João VI. Do cartaz das festas, o “número” mais importante das comemorações foi o acto solene de aclamação de D. João VI, que se efectuou pelas 15H00, no Salão Nobre dos Paços do Concelho, atestado de nobreza, clero e povo. A cerimónia, que se prolongou durante a tarde, viria a terminar com a subida ao palco do capitão mor, que clamou: “Real, real, real, pelo mui alto e poderoso senhor D. João VI, nosso Senhor. Imediatamente, o Governador (Castro Cabral) repetiu, em voz alta, por três vezes:” – em <Páginas da História de Macau> de Luís Gonzaga Gomes. Durante três dias, três, a cidade viveu em grande regozijo. As iluminações eram deslumbrantes. Uma banda deliciava os ouvidos da população em . Em 1820, no Porto, dá-se finalmente o golpe de misericórdia. O exército revoltou-se, tomou e deu o poder aos burocratas e magistrados (os liberais). As ideias iniciais eram criar um sistema representativo (fez-se por sufrágio indirecto e universal), que desse voz ao povo – em oposição ao que até aí se passava, o poder dos reis portugueses era absoluto: “o rei fazia a lei, executava a lei, e interpretava a lei, julgando-a em susprema instância” -, controlar despesas, legislar, entregar o poder judiciário aos juízes e o executivo ao rei e aos ministros, e voltar a submeter o Brasil aos superiores interesses de Portugal. “Havia mil maneiras de adiar, distorcer ou simplesmente não cumprir o que as cortes determinavam”, como os dependiam do exército, não se atreveram a cortar despesas. Pretendia-se a transferência do poder do monarca para o povo. A 3 de Agosto de 1821 – após treze anos de ausência – “uma nau, duas fragatas e seis outras embarcações provenientes do Brasil”, ancoram no rio Tejo, frota que transportava o rei D. João VI, o seu séquito de 400 pessoas e os seus bens. O Rei só pode desembarcar depois de se ter comprometido a jurar as bases da Constituição, resultantes do movimento iniciado no Porto, em 24 de Agosto de 1820. Após os actos públicos oficiais, D. João VI partiu para o convento das Necessidades, onde o aguardavam os deputados às Cortes Constituintes. Houve eleições para as Cortes Constituintes. Estas reúnem-se regularmente a partir de Janeiro de 1821 e, a 23 de Setembro de 1822, é jurada a primeira Constituição Portuguesa – é a primeira Revolução Contemporânea. Nasce uma nova ordem, a da “vontade da nação, do exercício da cidadania e do sistema parlamentarista”. O Rei deixou de ter o poder de veto ou dissolução e deixou de ser o chefe do Estado. Um novo “credo político” instala-se em Portugal, o liberalismo. Nada voltou a ser como dantes, Portugal mudou de face. Após 1822, o Rei dissolveu as Cortes, aboliu a Constituição, numeou o seu filho D. Miguel generalíssimo do exército português e D. Pedro, no Brasil, entra em rebelião aberta com Portugal. A 7 de Setembro de 1822, o Brasil, que não queria voltar ao seu estatuto colonial, revolta-se nas margens do rio Ipiranga, em S.Paulo, e dá o toque final, o “Grito do Ipiranga”, a Independência do Brasil. Já a estava prestes a ser aprovada, é que chegam a Macau os “ecos” da “Revolução” Liberal. O Leal Senado reúne-se a 19 de Agosto de 1822, para, “em assembleia-geral e por sufrágio popular, eleger os novos membros da Câmara. No dia 24 o novo regime demócratico foi consagrado por um Te Deum cantado pelo Bispo D. Fr. Francisco de N. Senhora da Luz Chacim (1804 – 1828), em que foi pregador o dominicano Padre António de S. Gonçalo de Amarante (fundador do periódico Abelha na China)” – Beatriz Basto da Silva, na Os liberais substituem os conservadores. O Ouvidor de Arriaga demite-se, figura enigmática “tão turtuoso quanto astucioso”. É ordenado o novo governo municipal, sendo restaurada a independência do Leal Senado, perdida pelas “Providências” de 1783. Isto porque, com elas, e uma vez mais cito a autora da , “o Ministro das Colónias, Martinho de Melo e Castro por instigação do ex-Governador das Índias, Salema e Saldanha, reformou o poder do Governador”. Vivia-se então no reinado de D. Maria I. O Governador poderia, a partir daí, impor o seu veto sobre qualquer moção senatorial, só com o seu voto. Foi a 4 de Abril de 1783 que apareceram essas “Providências”, emanadas de Lisboa, por ordem da Rainha, que “cerceavam o poder do Senado em favor do Governador e, ordenava ainda que se tomassem contas ao Senado e que este não tomasse qualquer decisão sem que fosse ouvido o Governador” – Padre Manuel Teixeira, na <Topomínia de Macau>. A 22 de Janeiro de 1822, José Baptista de Miranda e Lima escreve uma carta, em nome dos liberais, ao Rei e às Cortes, pedindo a restauração do Senado à situação anterior a 1873 – “Um Senado que a tudo era Superior”. Macau passa a ser, entre 1 de Julho a 23 de Setembro de 1823, governado pelo Senado. O “poder” governativo português em Macau – salvo algumas excepções -, sempre lutou/apoiou as instituições e princípios democráticos. Assim sendo, o Senado (o poder/assembleia do povo) recuperou o antigo sistema municipal: os poderes legislativo, excutivo e judicial, tendo sido retirado ao Governador (Castro Cabral) toda a responsabilidade administrativa. O Senado governou Macau até 9 de Janeiro de 1834, data em que foi publicada a “Nova Reforma Administrativa Colonial”. A “22 de Fevereiro de 1835, o Senado foi dissolvido pelo novo Governador – Bernardo José de Sousa Soares Andrea, investido de plenos poderes como Governador Civil. Daí em diante, apenas competiriam ao Senado os assuntos municipais, embora ainda fosse chamado de Leal Senado” – em de Montalto de Jesus. Essa tendência revolucionária e liberal veio a ter repercussões em todas as colónias portuguesas. Sob uma “nova” ordem liberal, Macau exigiu, desde logo, a “dissolução do batalhão do Príncipe Regente (que tinha sido criado a 13 de Maio de 1810) e a sua substituição por uma guarda municipal, a isenção de Macau do pagamento de subsídios a Goa e a Timor, o direito para os cidadãos nascidos em Macau usufruírem do privilégio de ocuparem cargos civis e militares e não menos importante, o levantamento das restrições sobre a imprensa” – em de Geoffrey C.Gunn. Nasce a uma quinta-feira, no dia 12 de Setembro de 1822, “A Abelha na China”, periódico liberal, o primeiro jornal de Macau, com a finalidade de informar e orientar a opinião pública sobre a nova ordem Constitucional. O seu último número seria a 23 de Setembro de 1823, num total de 67 edições. O levantamento das restrições à lei de imprensa era de 1821. São dos anos mais cinzentos – será que o cinzento nivela todas as diferenças – e intensos vividos em Macau, nessa época de ruptura. Há o golpe e o contra-golpe de Arriaga. O Governador e o Ouvidor (Arriaga) são detidos e encarcerados. Há a condenação e fecho da “Abelha na China”. Vive-se um mau estar permanente entre conservadores e liberais. A partir de 23 de Setembro de 1823 “forma-se um Governo de salvação” – um “Governo de Triunvirato”: o Bispo (D. Fr. Francisco), o Ouvidor, (demitido/ausente) – que é substituído por um vereador, e o Sargento-mor João Cabral (o militar de maior patente). Este Governo dura até 28 de Julho de 1825. Só em 1825 é que foi jurada, em Macau, a . D. João VI morre a 10 de Março de 1826 (58 anos), envenenado. Nasce uma “nova” era num já longo caminho da identidade e da cultura democrática em Macau – a preservação da “Memória”. Tempos próximos, mas já tão abandonados na “Memória” – desenraizamento (?). Sussuros de outras vozes adulteradas por “novos” ventos, inacreditáveis estes “novos” ventos, ventos de mudança. Dúvidas (?) Temos de tresler o sentimento da ausência, o sobressalto da razão. Restam-nos dúvidas, interrogações, perplexidades – um regresso ao passado -, um reencontro com a História.