Recuos, mais que avanços

Santa Bárbara, 22 Agosto

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om esforço (nada é sem ele agora), procuro experimentar o tempo de modo distinto para o travestir de férias, essa invenção pequeno-burguesa. Parar não devia obedecer a nenhum calendário. A preguiça devia ser estado natural de qualquer indivíduo, e aqui me confesso seguidor de Lafargue. «Ó miserável aborto dos princípios revolucionários da burguesia! Ó lúgubre presente do seu deus Progresso! Os filantropos proclamam benfeitores da humanidade aqueles que, para se enriquecerem na ociosidade, dão trabalho aos pobres; mais valia semear a peste ou envenenar as fontes do que erguer uma fábrica no meio de uma povoação rústica. Introduzam o trabalho de fábrica, e adeus alegria, saúde, liberdade; adeus a tudo o que fez a vida bela e digna de ser vivida.» Teimo em erguer uma fábrica no meio da minha povoação rústica e isso paga-se. Na vez de me dedicar ao essencial gasto-me, em pleno Agosto, a fazer cobranças difíceis, dificílimas. Poupo-nos à desgraça de um diário mais próximo da suja realidade.

Ora o essencial está nisto, por exemplo: o Paulo [José Miranda] foi entregando, nos últimos dias e com horas de intervalo, dezenas de versões do seu novo e desafiante romance. A mais recente acontecia ser todavia ainda mais final que a anterior. E mesmo depois da finalíssima veio uma derradeira. Fechado esse capítulo abriu-se a discussão em torno do título, que logo aqui e agora que ficar resolvido. Isso além do lançamento e do lançador. O coração do editor vive deste sangue e o tempo devia suspender-se por via de primeira leitura ansiosa, de uma segunda de lápis na mão, antes de terceira para deleite e ajuste. Vai demorar um pouco mais, mas só um pouco, por causa das dezenas de chamadas em espera, das combinações por acertar, das agendas para ferir de urgências a vermelho. Uma delas, um título que nos acalme as ânsias. (Mão amiga entrega-me romance de Reginaldo Pujol Filho: «só faltou o título», assim se chama).

Horta Seca, 23 Agosto

Recuo. Na flecha disparada ao futuro, os desvios chamam-se recuos. Uma seta não se consegue puxar para trás. Uma arma de fogo, essa, depois do disparo dá coices. Nunca disparei uma pistola. Bisnagas, sim. As engenhosas e doidas das infâncias, sim. Passos às arrecuas, dei sem querer. Passos às arrecuas, fui obrigado a dar. Quem se estende para diante em voluntarismo deve com isso contar. Vejo agora que as setas, como nos desenhos animados, podem, sem perder força, rodar no ar e voltar na nossa direcção. O progresso, essa invenção pequeno-burguesa, faz-se de alcatrão mole, apenas estrada, pouco horizonte. Preciso muito de me afastar no tempo para pôr contornos do difuso neste presente feito de recuos.

Horta Seca, Lisboa, 24 Agosto

Mário Gomes entrega trabalho hercúleo que as circunstâncias não me deixam apreciar devidamente. Ainda vou na leitura ansiosa da primeira tradução para português de Arno Schmidt (na foto), no caso, duas novelas, «Leviatã e Espelhos Negros». Confirmei o que apenas antecipava, por causa de detalhes e do discurso apaixonado, contudo esclarecido, sobre a obra e o autor, a qualidade do texto final em português radicalmente novo. Schmidt, que conhecia mal, mudou o alemão e terá, portanto, que mexer com qualquer língua. Mário transpô-lo com elegância e cuidado extremo. Parece-me que a abysmo nasceu para editar Arno Schmidt. Quando o sinto com um autor, acredito que sou editor. (Dura pouco a sensação).

Ao calhas: «E os incontáveis paralelos de granito zumbiam debaixo de mim, à esquerda, à direita; passados sete minutos estava de novo a arfar pela faixa de asfalto entre Ebbingen e Cordingen: placas cor de óleo de linhaça, conscienciosas que nem funcionários públicos, indicavam em todas as direcções da pista de corrida: oh, gente de juízo! Amplo e verdejante, o berço do final da tarde, arborizado, pedaços de bosque por todos os lados, o vento estava fresco e, com um assobio de pífaro, mandou-me rumo a casa, pelo prado fora; deslizei, balançando-me sobre coxas duras e esmagadoras, pela faixa ondulada de asfalto: viva a solidão!»

O cuidado pode ser medido neste episódio. No Espelhos Negros, de onde retirei as linhas anteriores, surgem incursões pela matemática, pelo que pareceu avisado ao Mário dar a ler a quem soubesse. Recorri à Carlota [Simões], que anima o belíssimo Museu de Ciência da Universidade de Coimbra, e soma aos inúmeros saberes uma curiosidade dispersa e o uso de língua próxima do alemão. Logo se percebeu que não se tratava apenas de bem enquadrar o Teorema de Fermat e demais vizinhanças, mas de detalhes de balística, o que levou a posterior investigação e mais contactos. Tudo porque o autor, não contente com a hipótese de pôr pombos a voar como balas, resolveu transformar a ideia em equação. Ninguém daria pelas pequenas incongruências, uma ou duas do próprio autor. Trabalhamos para os dois ou três que notariam.

Estou em crer que a edição de Arno Schmidt poderá ter que ser lida com recurso à balística, tal os movimentos que causará nos leitores que se atreverem.

Alvalade, 27 Agosto

Ver no estádio um jogo de futebol continua, apesar disto e daquilo, fascinante. Um dos mais divertidos paradoxos dá-se na dança entre ruído e silêncio. Habituados à narrativa torrencial da televisão ou da rádio, ali a coreografia desenrola-se em silêncio pontuado nos picos do drama pelas neves de vogais abertas ou fechadas pela aflição e pela alegria. No entorno, claro que se conversa, tantas vezes absoluta e distante banalidade, como se cultiva a mui nobre e elevada arte do palavrão, nem sempre com criatividade; claro que se comenta e analisa, do detalhe de uma jogada ao panorama geral do sistema, de uma memória revivida à projecção de campeonato inteiro. Mas o olhar cria uma campânula de cristalino silêncio no rectângulo verde, se concentrado nas deambulações daquele talento individual ao serviço do colectivo que se dobra e desdobra, em avanços e recuos, tornando-se ele, nos bons momentos, entidade única, viva, orgânica e esmagadora. O vidro estilhaça com o golo feito seta de grito uníssono.

O Sporting ganhou, sofrendo, muito por sua culpa, ao Estoril Sol por 2-1, com golo anulado a cada equipa pela figura fantasmática do vídeo-árbitro. Mathieu entrou na short-list com grande jogo: aprecio quem, vindo da defesa, rasga campo para desequilibrar com a velocidade do inesperado ou vice-versa.

30 Ago 2017