Um poeta esquecido

[dropcap]O[/dropcap] Raul de Carvalho (1920-1984), pessoalmente, era um chato. Comprava-me sobretudos e telefonava-me às sete e meia da manhã a contar-me, quando o telefone lá em casa estava no quarto paterno e o meu pai havia chegado do serviço às quatro e meia da madrugada. Irritado, este agredia com o nó dos dedos a porta do meu quarto e gritava, Telefone. Meio minuto depois, muito estremunhado, encostava o alto-falante ao ouvido e enfrentava aquela voz grossa e espessa de quem tem crude na língua: António, é o Raul, o teu pai é muito simpático, comprei-te um sobretudo… E eu, embaraçado, na mira do meu pai, A que propósito, Raul? Vai-te fazer falta… Bom, encontramo-nos logo às dezassete no Monte Carlo e então explicas-me… Estávamos em Agosto. Às cinco da tarde lá lhe rejeitava a prenda, pela enésima vez, porque no carinho dele cabia uma ponta de venalidade.

Na semana seguinte voltava ao mesmo, mas como a ansiedade ia crescendo telefonava meia-hora mais cedo: António, comprei-te uma gabardina… É Agosto!, respondia eu. Vai-te fazer falta…

Era assim desde que, saído da Escola de Cinema, lhe telefonara a sugerir um documentário sobre ele. Projecto para o qual não consegui financiamento mas que me faria objecto de um assédio ininterrupto durante dois anos: o Raul cria firmemente que quem não fosse homossexual acabaria por vir a sê-lo, inapelavelmente. E o facto de ter sido publicado pelo Al Berto – aos olhos dele – só o confirmava: esse gesto não poderia ter acontecido sem uma cama de permeio.

Em nova tentativa de lhe inibir as intenções levei a minha noiva (uma jovem arquitecta e tão bonita que eu costumava dizer que a cantora Sade era a irmã feia dela) a uma festa em casa dele. Recebeu-nos à porta. Tomou-me a mão e olhou-a de alto a baixo, circunspecto, para no fim soltar a sua estentórea sentença (ele era surdo e falava sempre cinco decibéis acima): Ó António, ela não te merece!

De outra vez combinei ir ao lançamento de Mágico Novembro, obra que seria apresentada pela Natália Correia. Ele levar-me-ia uns materiais de que eu precisava para acabar o guião. Quando chegou passou-me um saco e pediu-me, António, se não te importas aí no saco vão também uns livros para dar a um amigo, depois peço-tos…

Foi nesse lançamento, coberto pela RTP, que ele assumiu a sua homossexualidade com uma franqueza desassombrada: Eu sou homossexual porque gosto de rapazinhos, não é verdade? Ainda ecoava a sua declaração quando uma cabeça assomou na porta, e ele tergiversou: Joaquim, ainda bem que vieste, trouxe os livros para ti, importas-te António de dar já os livros ao meu amigo? E a câmara da reportagem galgou o anfiteatro para dar um grande-plano do jovem infante, esbelto e escanhoado, que tanto podia ter dezassete como vinte e dois, a retirar do saco os livros pedidos. Não sei se na reportagem aproveitaram esse plano em que fui o centro das atenções mas durante anos passei por ter sido o rapazinho do sessentão Raul de Carvalho.

Duas anedotas, de entre as muitas que poderia contar e que rechearam o nosso relacionamento.
Estava-me nas tintas para a minha reputação e quando ele se esquecia dos objectivos últimos tínhamos encontros e conversas de alguma voltagem, tendo aprendido com essa amizade – obrigatoriamente, de convívio sazonal.

Há trinta anos que não o relia. Descobri que a biblioteca do Camões, em Maputo, tinha o volume onde se reúne toda a sua obra editada, um tomo com mil páginas (- o segundo volume com a obra inédita seria igual, mas nunca saiu), e requisitei-o.

Reli-o de fio a pavio. Mantem-se a opinião que já tinha: é um poeta muito irregular mas com picos extraordinários, e não merecia ser conhecido só por causa de Vem, serenidade, és minha… Estas mil páginas reduzidas a duzentos e cinquenta dava um livro de assombros.

E, no entanto, este é o paradoxo que o mina, isso seria traí-lo.
O Raul escrevia todos os dias das seis às nove, dez horas, e a sua obra seguia uma pulsão diarística, de preferência e gradualmente imersa no que ele professava como estética da banalidade (assim chegou a intitular um livro), atitude que nos anos noventa teria o seu avatar nos poetas sem qualidade, epíteto com que provocatoriamente Manuel de Freitas imporia uma geração. No seu projecto, muito pasoliniano, o sujo, o quotidiano, a vida, infiltravam o artifício e as sublimidades a que “a poesia” propende: em vez da maturação alquímica, Raul perseguia o fulgor do imanente, num desapego crescente e de enorme coragem, que preteria à obra a vida. E nisso estava à frente do seu tempo. Inexplicavelmente, não terá sido entendido cabalmente nem reivindicado, o que é tanto mais estranho quanto nele as euforias e disforias associadas ao corpo, ao desejo e à sua (homos)sexualidade estão presentes desde muito cedo: «Aos morenos marcianos com olhos cor de oiro/ dedico este poema/ feito no intervalo dum beijo ou dum crime.», lê-se num poema editado em 55.

Dois poemas dos últimos anos, ambos de 1983: DAMIARDO: «Damiardo, um anjo que para ser ladrão/ foi roubar às vindimas cachos de uvas, /aciduladas uvas que o rodeiam na cela./ Cheiram ao perfume das claras serras, dos claros vales/ adornados de perdizes, rolas, pedras/ velhas, covas rubras, cobras bravas,/ limoeiros, rebeldia./ Damiardo deita-se de rastos, tarde acorda./ De bruços Damiardo se deita./ Beija com alguma doçura./ Coitado do Damiardo, jovem cão./ Todos se riem dele, à sucapa./ Todos lhe vão ao cu./ Damiardo se deita e se levanta com a sua cruz: /Ser, ter sido, uma criança amaldiçoada.» E já que estamos em Macau: CLEPSIDRA: Mastigando ossinhos, pedacinhos de ossos./ Transitivamente. / Um copo de vinho. Uma laranja./ A paz do olvido.”

12 Dez 2019