Qiu Jin – Poesia e luta

Artigo de António Izidro

I

Foi um século de humilhação, bullying e de dominação agressiva do Império do Meio por potências estrangeiras a partir de 1840 até à recuperação, em 1945, do último reduto no nordeste de Shangdong ocupado por japoneses e alemães. Um período de vexames na história da China, marcado pelos conflitos armados Sino-brtiânicos por causa do ópio que a Companhia das Índias Orientais inglesa introduzia ilegalmente no território chinês, para envenenar o povo e equilibrar as contas do comércio com a China, a que se seguiram os conflitos com o Japão e a França e, claro, a ocupação da Aliança das Oito Nações em 1900 (Áustria- Hungria, Alemanha França, Itália, Japão, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos da América). Pelo meio, os chineses assistiram penosamente à assinatura de tratados desiguais a coberto dos quais as potências estrangeiras obrigaram a monarquia chinesa a ceder territórios, franquear portos marítimos, incorporando nesses tratados demandas indemnizatórias para reparar as guerras. Enfim, uma China humilhada, esquartejada, repartida pelas nações invasoras, o palco que o povo chinês coabitou com matanças, saques, escravização das mulheres chinesas e tudo o que as potências estrangeiras podiam fazer para consolidar a ocupação.

Qiu Jin (1875-1907) foi uma escritora defensora do feminismo e activista do movimento revolucionário de Outubro de 1911 que pôs fim ao regime monárquico. Nasceu em Fujian, filha de pai funcionário do governo e de mãe literata, pelo que Qiu Jin recebeu uma educação esmerada, especializando-se em história e literatura. Desde jovem eram já evidentes os dons de escrita e o grande patriotismo, nesse período conturbado da colonização estrangeira. Perturbava-a a incapacidade dos imperadores Qing, sofrendo derrota após derrota. Viu nascer a Rebelião dos Boxers, de 1899, movimento anti-colonislista e anti-monárquico, que foi repelido pelas tropas governamentais e a coligação das nações estrangeiras.

Com o coração magoado e desfeita em lágrimas, Qiu Jin partiu, em 1904, para o Japão e aí juntou-se às estudantes chinesas em Tóquio, pregando a salvação nacional e a defesa dos direitos da mulher. Os argumentos aduzidos iriam confirmá-la como destacada líder do movimento feminista, devido também aos seus dotes oratórios. Fundou dois periódicos, “Mulher Chinesa” e “Língua Vernácula”, como base do movimento, insistindo na emergência de quebrar as correntes do feudalismo, restituir a identidade à nação e no papel da mulher na implementação de uma nova cultura chinesa.

Os últimos anos da sua vida foram de maior envolvimento, tendo assumido a direcção escolar de Datong na província de Zhejiang, em cujas instalações montou o quartel do movimento, de onde eram enviados mandatários para promover a revolta. Ela própria percorria entre as cidades de Hangzhou e Xangai, delineando programas de acção e incitando o povo. No dia 6 de Julho de1907, Qiu Jin recebeu a notícia da malograda revolta da cidade de Anhuei. Após a prisão dos revoltosos, era iminente que o exército imperial também viesse cercar a escola. Aconselhada a abandonar, ela preferiu não fugir. “O sucesso de uma revolução oculta sangue”, dizia.

As cores do outono

Qiu é o apelido da escritora e agradava-lhe particularmente a palavra que significa outono, a estação do ano pintada pela cultura tradicional comum com as cores da desolação, dos sentimentos mórbidos. Os antigos eruditos escreviam deploravelmente que primavera era a inquietação das jovens diante do envelhecimento, vendo o tombar das flores e que no outono o sombrio tolda os olhos dos jovens, não lhes permitindo ver o fundo da estrada onde a sua heroicidade caminha. Outono esmorece a alma, e algo parecido escreveu Pessoa em Cancioneiros:

Esqueço-me das horas transviadas

o Outono mora mágoas nos outeiros

E põe um roxo vago nos ribeiros…

Hóstia de assombro a alma, e toda estradas…

(…)

No meu cansaço perdido entre os gelos

E a cor do outono é um funeral de apelos

Pela estrada da minha dissonância…

Qiu Jin foi presa no dia 10 de Julho de 1907 e decapitada no dia 15. Antes da execução, deram-lhe um folha de papel para assinar a confissão. Nela, a escritora e heroína escreveu tão só sete caracteres:

秋風秋雨秋煞人

Outono ventoso, outono chuvoso, outono fatídico

sobre mim se derrama

As obras de Qiu Jin oferecem uma visão sumamente reveladora do seu sonho e ideal em resposta ao período histórico conturbado em que vivia. São conhecidos cerca de 13 trabalhos, entre colecções de poemas, ensaios e romances produzidos. ´Sentimentos´ e ´Hora fremente´(em chinês clássico) foram compostos durante uma viajem ao Japão, onde encetaria acções de consciencialização às jovens estudantes chineses a aderirem ao movimento feminista. Notório é o estilo da escrita, cultivando ainda uma poesia muito atrelada à forma de poetizar dos antigos, não dispensando, por exemplo, evocar exemplos da antiga história análogos à situação política do seu tempo. De resto, pode-se ler nos poemas a mágoa pela pátria decadente, sem esconder um certo o sentimento de culpa de não ter contribuído mais para a causa revolucionária.

有怀

日月无光天地昏 沉沉女界有谁援?

钗环典质浮沧海 骨肉分离出玉门

放足湔除千载毒 热心唤起百花魂

可怜一幅鲛绡帕 半是血痕半泪痕

Sentimentos

Sol e lua sem luz,

céu e terra em densas trevas

quem deste abismo ajudará

a mulher a levantar-se?

Empenhei as minhas jóias

para atravessar o mar,

apartada da família,

sigo pela Porta de Jade.

Meus pés de mil venenos desenfaixo

e a alma das mulheres clama,

flores brancas em botão.

Dói-me este pobre lenço de seda fina,

metade de sangue manchado,

metade em lágrimas ensopado.

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Porta de Jade – antigo posto de vigia na Grande Muralha que dava acesso às regiões do nordeste.

Panos dos pés – a nefasta tradição de as mulheres enfaixarem os pés com panos apertados para preservar a elegância feminina.

感时

莽莽神州叹陆沉,救时无计愧偷生。

搏沙有愿兴亡楚,博浪无椎击暴秦。

国破方知人种贱,义高不碍客囊贫。

经营恨未酬同志,把剑悲歌涕泪横!

A hora fremente

A pátria submersa no lamento verde de infindos prados

e como pesa nada ter para salvar o país.

Em grãos esparsos de areia desfez-se o reino de Chu,

as armas de Buó Lang surpreenderam o reino de Qin.

Pátria e povo destroçados,

ainda assim se erguerão desta infausta pobreza.

Deploro o esforço vão dos meus camaradas,

entoo a canção triste das espadas e das lágrimas.

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Os ´grãos esparsos da areia´, a desagregação que levou o Reino de Chu a sucumbir no ano 223 a.C.

Buó Lang, a actual província de Henan onde Qing Shihuang, o unificador do império, foi surpreendido por um exército bem armado. A analogia que a poeta faz nestes dois episódios da antiga história com a ausência de unidade nacional da China do século XIX, feita prisioneira por nações estrangeiras manifestamente mais poderosas.

Não é difícil perceber quanto esta poetisa da revolta ansiava definir-se pela masculinidade e com ela contribuir vivamente à causa revolucionária. Aprendeu as artes de cavalgar e espada, não raras vezes surpreendendo vestida à rapaz nas actividades clandestinas, depois de aos 18 anos o pai lhe ter arranjado um casamento e em vão tentado fazê-la uma dama, enlace que, porém, não acabaria bem. Os néscios, desde logo o próprio marido, não entendem a essência da sua personalidade, dirá mais tarde num poema. Se a heroicidade cumpre por regra um trajecto, o início do seu envolvimento na libertação da pátria aconteceu numa das idas à capital, onde o movimento revolucionário em curso lhe tomou a alma. A compreensão que teve do estado do país propôs-lhe novas ideias, levando-a então a tomar a decisão de empenhar-se no movimento de salvação nacional e de libertação da classe feminina.

滿江紅 – 小住京華

小住京華 早又是中秋佳節

爲籬下黃花開遍 秋容如拭
四面歌殘終破楚 八年風味徒思浙

苦將儂 強派作蛾眉 殊未屑

身不得 男兒列 心卻比 男兒烈
算平生肝膽 因人常熱

俗子胸襟誰識我?

英雄末路當磨折 莽紅塵 何處覓知音?

青衫溼

O rio corre vermelho – uma curta estadia na capital

Estou na capital faz poucos dias,

o festival da Lua já espreita.

Flores nas cercas mostram-se amarelas,

purgam de impurezas o outono

Baladas de guerra ventam das quatro direcções

enquanto me liberto do cerco dos inimigos.

O sabor desta solidão de oito anos

traz-me saudade dos aromas da minha terra.

Forçaram-me a que donzela nobre me tornasse,

mas neste corpo de mulher,

sem poder perfilar com os homens,

bate um coração masculino

da ala dos que não se vergam,

mescla de alma e coração

por causas alheias ardia.

Hoje os néscios estranham

o espírito da minha essência.

Os heróis passam por provações

até ao fim do seu caminho

Imensidão, mundo de pó,

onde encontrarei uma alma gémea?

Pela minha veste escorrem lágrimas

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«O rio corre vermelho» é um título comum a várias expressões artísticas sobretudo em poesia épica.

As baladas – referem-se aos conflitos pelo poder entre os reinos de Chu e Han ( séc. 3 a.C.). Durante o cerco, as tropas de Han entoavam baladas prenunciando a queda do Reino de Chu.

A mesma mágoa perante duas realidades: os problemas da nação e a saudade pela família, expressos neste desabafo a uma amiga em poema que, porém, transparece a pretensão da autora querer contornar a inquietação da alma, levando-a a compor em pusamán, uma versão vistosa usada em cânticos para danças da dinastia Tang, entoados por bailarinas da corte. Percebe-se a musicalidade da letra pusamán, que não é traduzível, mas a métrica são obrigatoriamente os versos pentassílabos e heptassilábicos.

菩薩蠻 – 寄女伴

寒风料峭侵窗户

垂帘懒向回廊步

月色入高楼

相思两处愁。

无边家国事

并入双蛾翠

若遇早梅开

一枝应寄来!

Mensagem para uma amiga – poema em versão pusamán

Ventos frios, janelas trespassadas,

divago pela casa, as cortinas bem fechadas.

De novo o luar ensopa este alto pavilhão,

e invade de tristeza meu saudoso coração.

No país todos os dias problemas redobrados,

duas mulheres atentas, os sobrolhos arqueados.

Se ameixeiras em flor, vires mais cedo este ano,

pensa em mim e por favor: Manda um ramo!

16 Ago 2023