A mulher do Primo Basílio

[dropcap]E[/dropcap]stava uma daquelas manhãs perfeitas de Inverno em São Paulo, em que a temperatura ronda os 20° centígrados com um céu completamente limpo. Fui a pé até ao sebo do escritor Evandro Affonso Ferreira, junto à FNAC de Pinheiros – que já não existe mais – para uns dedos de conversa e a tentativa de encontrar uma edição boa e barata das obras de Monteiro Lobato. Depois de uma boa hora de conversa e passar os olhos em algumas possíveis edições da obra que queria – só uma delas não estava incompleta – Evandro pede-me desculpa, mas tinha de tratar de um assunto pelo telefone, antes de sairmos para almoçar, deixando-me a passear sozinho pelo sebo. Àquela hora raramente entravam pessoas. Quis o destino que nesse dia entrasse uma mulher muito branca, magra, com um vestido comprido e os cabelos ruivos apanhados em rabo de cavalo. Tinha à volta dos seus quarenta anos, a mesma idade que eu na altura em que vivia em Sampa. Dirigiu-se a mim e, confundindo-me com o dono do sebo, denunciando ser a sua primeira vez, pergunta-me se tenho uma edição de “O Primo Basílio”, de Eça de Queirós. Respondi-lhe que não trabalhava ali e que o meu amigo já a atendia, assim que deixasse o telefone. Reparando no meu sotaque, deixou saiu um “ah, português!”, que denunciou também não pertencer a este lugar. Evandro demorava e a curiosidade aumentava. Do meu lado por saber o que fazia uma estrangeira em Sampa à procura de “O Primo Basílio”, do lado dela por querer saber quem era este portuga, que tinha um amigo num sebo de Sampa. Chamava-se Simone, era francesa e vivia em Sampa há seis anos. Tinha vindo em 2000 com uma bolsa da PUC para estudos brasileiros e acabou por ficar cá. Agora ensinava na universidade “leitura criativa” e tinha acabado de se mudar para o bairro de Pinheiros. O seu interesse no livro de Eça de Queirós vem de há muito e não era para ler, mas para reler, pois nas mudanças acabou por perder uma das caixas dos livros, aquela onde estava o seu exemplar. E preparava-se para ministrar um curso sobre esse livro, segundo semestre. Há muito que não lia esse livro de Eça e fiquei curioso acerca do interesse de Simone.

Ela sorriu e disse: “venha assistir às minhas aulas”. Perguntei: “E posso?” Podia, claro.
Evandro finalmente largou o telefone, e atendeu Simone. Arranjou-lhe um exemplar da Editora Estadão, da colecção Ler é Aprender. O Evandro fez questão de me apresentar como um escritor português, que estava a viver agora no Brasil. Trocámos os telefones e os emails, ela saiu, o Evandro e eu fomos almoçar com outro nosso amigo – quem há meses me apresentara Evandro – o Guilherme Resstom. O almoço correu bem, como usualmente, e eu regressei a casa. Ao abrir o email, tinha uma mensagem de Simone, que gostava de tomar café comigo um dia destes. Encontrámo-nos no Pirajá – icónica cervejaria de Sampa, que tem o melhor chopp do mundo –, passado uma semana ao fim da tarde.

No primeiro dia não tinha reparado, mas desta vez não me escapou como ela aparentava ser triste. À medida que fomos conversando, fui ficando convencido de se tratar de um evidente caso de tristeza aparente. Simone era triste por fora. Triste para transeunte ver. Em certo momento, disse: “Vivo sem cães, sem gatos, sem filhos, sem homens.” Mais tarde conheci-lhe a casa – quase sem móveis, sem objectos desnecessários – e pude comprovar o quanto era espartana. Os livros eram a sua verdadeira companhia. Os livros e a música, que estava continuamente a tocar num aparelho estéreo. Música clássica, maioritariamente.

Desde esse dia no Pirajá, passamos a ser cúmplices, a trocar mensagens sobre literatura e sobre a experiência de ser-se estrangeiro no Brasil, ainda que estrangeiros diferentes. Como ela mesma costumava dizer, uma mulher é sempre mais estrangeira, para onde quer que imigre.

Por sua causa reli “O Primo Basílio”, assisti ao seu curso e isso de algum modo mudou a minha vida. A intensidade da sua leitura, o seu modo de ver por dentro as personagens, as situações de vida – a existência, no fundo – marcou o modo como leio hoje essa obra de Eça de Queirós.

Esta obra era apenas um dos cursos que dava, maioritariamente o seu ensino era sobre Guimarães Rosa e Stendhal.

Um dia perguntei-lhe porque não regressava a França, ao que me respondeu: “Não se pode querer compreender a literatura de um país, à distância. À distância podemos gostar de todas as literaturas, mas para as compreendermos temos de viver onde elas foram escritas. Não sei muito sobre a literatura portuguesa, como sei sobre a brasileira, nem sequer sobre Eça de Queirós. Como você viu, o meu curso sobre “O Primo Basílio” é um curso impressionista e existencial, de quem gosta e se identifica muito com essa obra. Mas não é como quando ensino Guimarães Rosa ou Stendhal.” Deixei São Paulo, acabámos por deixar de trocar mensagens, mas ainda hoje me lembro do nome que lhe passei a chamar, que a fazia rir: “A mulher do Primo Basílio”.

6 Ago 2019