Paulo Maia e Carmo Via do MeioZheng Min e as Recordações Das Montanhas Amarelas Zhuangzi, o clássico do século IV a. C. que escreveu sobre a «vadiagem feliz», afirmou que «O homem perfeito usa a sua mente como um espelho – sem procurar nada, não acolhendo nada, respondendo sem guardar. Assim consegue triunfar sobre as coisas sem se magoar». Essa vocação de «vaguear onde não há caminho», muitas vezes deslocando-se sobre as águas dos rios, nunca guardando nada senão memórias, foi sentida como um guia por homens de letras e pintores. Certas paisagens, como o cenário invulgar das Montanhas Amarelas (Huangshan), como que convidavam os passeantes para nelas inscreverem novos caminhos. Uma «escola de pintura» foi designada com o seu nome e dela participaram grandes mestres como Hongren ou Shitao. E os que eram originários da província de Anhui, onde se situam essas montanhas, como o pintor e poeta Mei Qing (1623-1697), deixaram desse convívio com a natureza testemunhos de uma viva impressão. Como no decurso de um passeio com familiares e amigos numa embarcação descendo um rio: «A chuva clareando, dir-se-ia um céu de Outono, Vamos descendo o rio Qing, navegando neste navio pintado, A cidade obscurecida e o campo vasto, As montanhas verdejantes tocam as ondas, Sons de flauta entristecem os poetas; Nos aposentos monásticos velhos monges meditam tranquilamente. Não há isco para o dragão que se não vê, Apenas a serena piscina de água.» O poema acompanha o rolo vertical Navegando no sopé da montanha Xiang (tinta sobre papel, 134,6 x 59,1 cm, no Metmuseum) onde outros amigos também escreveram poemas como um seu jovem discípulo Shi Runzhang que assinalou, não apenas o dia exacto em que decorreu o passeio – 21 de Maio de 1673, como lembrou o poeta Li Bai que por lá passou compondo poemas e como esse era também o lugar onde o imortal magistrado Dou Ziming pescou um dragão branco. Essas impressões em grupo de nada valiam se não fossem partilhadas. Zheng Min (1633-depois de 1683), pintor e poeta que terá participado nessa jornada e era de Shexian, igualmente em Anhui, terá sido o destinatário do rolo, mas também ele faria pinturas e poemas recordando as famosas montanhas para partilhar, lembrando caminhos solitários na memória. No álbum de nove páginas com pinturas e caligrafias Oito vistas das Montanhas Amarelas (tinta sobre papel, 24,1 x 14 cm, no Metmuseum) ele refez alguns dos lugares mais célebres das montanhas como o Cume de loto, a Ponte dos imortais ou o Pinheiro dragão enrolado, contrastando-os com poemas. O que o motivou foi um pedido do seu jovem amigo Chuzhen. Para isso recordou duas jornadas que fez por lá em 1670 e 1673, a última há já sete anos. E acrescenta que, se «no futuro, depois de todos os seus filhos se casarem», ele alguma vez lá for, «espero que leve este álbum com ele para comparar com os lugares reais. Serei então o seu guia.»
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasA construção do poema Porque o poema é menos a bisca que o bridge, fui a uma escola explicar a engenharia do poema. Um dia fiquei chocado com uma notícia: por causa do H5N1 (a gripe das aves) os cisnes dos lagos e jardins europeus apareciam mortos. Abri o caderno e verti o seguinte poema: A eufonia dos cisnes infiltrados de H5N1/ invadiu os Museus de Arte da Europa. / Ledos, os guardas e as lídimas, canoras/ guias turísticas, repetem, “eis-nos no debrum // do Casal Ventoso”. Pelo ar, lamenta-se Barroso,/ num francês de estufa, todas as fronteiras, / inclusive as mais abruptas, são porosas. / Quem amnistia a brutal epizootia (frioleiras // de uma tia que arrasta à Casa dos Répteis, / Horácio, o epiléptico?) que lança no Averno / os lagos da Suíça, as margens de salgueiros / onde a súcia gozava estiagem, o pistácio // e o matutino, e ficavam surdos aos ralhos maternos / (e quase alados) os dedos dos petizes? Quem,/ no desatino de uma paixão suicida (Werther / faz duzentos e trinta anos), sacudirá a fogueira // da Europa? Poupem-se ao menos as perdizes!/ Os apoios externos estão garantidos, anuncia-se/ em Maputo – tudo a postos contra os lampos/ frangos da Nigéria. Entretanto, desatino oportuno, // lambuza-se o vírus nas bibliotecas da Grécia e bica / a polpa exangue dos sonetos de Yeats e Mallarmé. / Rien de rien, meu amor (vê-me, please, s’algum bicho / me picou na nuca), as nossas crias sorvem o seu capilé. // Coisas da Europa caduca – do seu espírito erudito / que, canzoada arrepiada, é hoje pasto para o mosquito / – (enquanto a fufa da tia – que raio designa uma epizootia?- / empurra de mansinho o Horácio da balaustrada). Comente-se agora: a) «eufonia». O cisne morre cantando e canta morrendo. Decorre daí a escolha do vocábulo “eufonia” – antecipando o desejo de fusão que a música autoriza -, condicionando o poema, pois obrigá-lo-á ora a rimas soantes ora a aliterações. b) «os Museus de Arte da Europa»: o cisne é um dos animais mais representados no bestiário da pintura europeia. c) “ledo”: risonho, contente, alegre, jubiloso. Mas o adjectivo foi escolhido pela homofonia em relação a Leda, uma rapariga cuja beleza provocou tais convulsões em Zeus, que este se metamorfoseou em cisne para a possuir e fecundar. d) “ledo”, por contiguidade, “metamorfoseou-se” em “lídimo” (legítimo, autêntico), pois as guias-turísticas são quem autenticam as “histórias do lugar”, nas visitas turísticas. Por outro lado, associando “canoras e lídimas” associo, por extensão, a beleza dos cisnes à das guias turísticas, geralmente belas ragazzas. e) “eis-nos no debrum/ do Casal Ventoso”. Introduzi o vocábulo como rima do 1 de H5N1, mas também como ideia de limite, pois o Casal Ventoso era um bairro de Lisboa de grande degradação. O Casal Ventoso é, aqui, o inverso da ordem dos Museus. f) Barroso: Durão Barroso. Uso a frase dele que a notícia cita para falar da impotência da Europa face à calamidade: «por ar todas as fronteiras são porosas», o que além do mais me permite a aliteração: oso e osa(s). g) Uma palavra que aparecia na notícia e que desconhecia: “epizootia”. Como a desconhecia de todo, uso uma liberdade poética e concedo-lhe um significado meio absurdo: “frioleiras de uma tia – a fufa!-/ que arrasta à Casa dos Répteis, Horácio, o epiléptico?”, que por um lado introduz uma segunda trama no poema e por outro é uma crítica à imprensa sensacionalista que invadiu o quotidiano da Europa. h) «… que lança no Averno/ os lagos da Suíça»: Averno, um dos nomes que se dava ao Inferno na antiga Grécia, e a Suíça é o símbolo da estabilidade burguesa europeia. i) Werther (1774), o primeiro romance burgês original, que cria o tipo de intelectual burguês jovem desadaptado à sociedade e que entra em conflito por causa da apreciação elevada de si próprio e do desajuste a que o sistema social o obriga, acabando por suicidar-se. j) Um poema circunstancial, que parte de uma simples notícia, pode ser o pretexto para falar (parodicamente) da perda de aura de uma certa ideia de Europa como força civilizacional, o que leva ao comentário irónico (e pessoal, por questões de gosto): «Poupem-se ao menos as perdizes!», pitéu gastronómico, vocábulo que mais uma vez não está ali só para rimar com petizes. l) Lampo, parente fonético de frango: “o que vem fora do tempo, temporão”. Uma crítica ao “deixa-andar” e à permeabilidade com que em África mais facilmente a perspectiva de um bom negócio para alguns pode fechar os olhos à calamidade pública que a sua execução acarreta. m) «nas bibliotecas da Grécia…»: a mitologia grega legou-nos a lenda de Leda e do Cisne (Zeus), daí que seja nas bibliotecas da Grécia que os cisnes enlouquecidos começaram por esfacelar os poemas de Yeats e Mallarmé. n) A quadra final (depois do descanso privado do capilé, pois o mundo não pode ser só desesperança) reforça a denúncia do estado de absurdo a que as vicissitudes da vida contemporânea nos impelem. O poema brotou de uma notícia de circunstância, mas não prescinde, na sua construção, de um cabedal de referências que fazem parte tanto do sistema cultural em que cresci como de um estranho jogo entre a necessidade e a liberdade, que é o acto criativo. Embora essa cultura me esteja imbuída; o poema foi escrito de impulso, sem preparação prévia: o primeiro rascunho, no café, uma segunda versão quando o passei ao computador. É poema de valia? Nem isso importa. Só publico um terço do que escrevo, o resto é para ginasticar a imaginação. Ramon Gómez de La Serna escreveu uma vez um longuíssimo texto sobre pregos que lido é um fabuloso exercício, mas que nunca coligiu na sua obra completa, porque senão todas as cópulas dariam filhos, o que seria um tremendo disparate.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasUma vida inteira dentro de um só poema [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ue o título do primeiro livro de Rosalina Marshall – Manucure, Companhia das Ilhas, 2013 – seja o mesmo de um poema de Mário de Sá-Carneiro, não é um mero acaso. Para além dos títulos, livro (de Rosalina) e poema (de Sá-Carneiro), os títulos dos poemas do livro da Marshall são todos versos ou partes de verso desse poema maior de Sá-Carneiro. Por exemplo, “Os meus godets de verniz” é um meio verso do poema, e “Na sensação de estar polindo as minhas unhas” é precisamente o primeiro verso do poema de Sá-Carneiro. E o mesmo iremos encontrar nos poemas: “Os polidores da minha sensação”, “Inflexões de precipício”, “Triângulos sólidos”, “Rebordo frisado a ouro”, “Desgraciosidade boçal”, “Veloz faúlha atmosférica”, “Deponho as minhas limas”, etc., etc., etc. Pois aqui não se trata de uma interpretação minha, como irá acontecer com o resto do texto, é algo concreto, preciso, algo que deve ser assinalado como aquilo que a poeta quis que fosse visto, a ligação quase umbilical entre o seu livro e o poema de Mário de Sá-Carneiro, embora seja também – e aqui começa a minha interpretação – como se a Rosalina Marshall nos dissesse que a sua vida cabe toda dentro de um poema, do poema “Manucure”, desse poeta maior da Orpheu. Mais: é como se nos dissesse que uma vida, qualquer que ela seja, cabe toda num só poema. E se em relação ao poema “Manucure” talvez não haja tantos que ponham ali toda a sua vida, já no poema “Tabacaria”, de Álvaro de Campos, não teremos dificuldade em encontrar por lá vidas e vidas inteiras. Há, por conseguinte, ao longo dos poemas deste seu primeiro livro de poesia, enunciações de modos de participar na vida com semelhante inaptidão à que é cantada no poema de Sá-Carneiro. Estamos diante de um livro de poesia assente numa hermenêutica, apesar do verso que diz “a hermenêutica fechou a porta” (p. 18). Nesta sua hermenêutica, Rosalina identifica no poema de Sá-Carneiro, não só a sua vida, mas o seu próprio modo de olhar a realidade. E, assim, Manucure é um pequeno livro de enunciação de falhas, de enunciação de falhas da realidade. A realidade está sempre errada. Havia em Portugal uma expressão antiga, de quando ainda a moeda era o escudo e não o euro, que dizia: estás-me a falhar como as notas de mil, querendo com isso dizer que alguém nos decepcionava. Ora, neste livro de Rosalina Marshall, a realidade falha-nos como as notas de mil. A realidade é uma máquina de criar decepções. Os poemas enunciam contínuas decepções, vindas da impossibilidade da realidade encaixar nas nossas vidas. E entenda-se realidade por aquilo que acontece. Para citarmos Wittgenstein, no início do seu Tractatus Lógico-Philosophicus: “O mundo é tudo o que acontece.” Entenda-se, aqui, mundo como realidade. Assim, os meus desejos chocam com a realidade. Aquilo que quero, que eventualmente me faz falta, choca com a realidade, como no poema “Os meus godets de verniz”, à página 16: Eu queria chocolates e davam-me peixe cozido travessas e travessas pratos atrás de pratos de peixe cozido em vez disso agora como o vidro do o vidro do o vidro do piano Esta falha da realidade não se fica pelo conflito de interesses entre o que eu quero e o que acontece. Não. É apenas daqui que se parte. Aonde se chega, e é onde faz sentido falar acerca da decepção da realidade, é à memória. A memória é onde a realidade se esfuma. Tudo o que acontece não passa de nevoeiro, quando deixa de ser acontece para passar a ser aconteceu ou acontecido. E é nesta transmutação do tempo, na transmutação da realidade, que o livro ganha uma enorme dimensão metafísica, que já José Mário Silva havia assinalado, na sua resenha no Expresso, a 27 de Abril de 2013: “A escrita de Rosalina tanto se aproxima de Adília Lopes (“sinto um desconforto qualquer/ por usar soutien/ mas se não usasse/ era muito ordinária/ e os homens não gostariam de mim/ por ser demasiado fácil verem-me as mamas”) como da vertigem metafísica de Fiama Hasse Pais Brandão (“por trás dos manípulos das coisas/ escorrem fontes/ escorrem cisnes/ tudo em arco/ tudo em bandeira/ para o fluxo incontornável/ do rossio do universo/ onde permaneço desde a infância/ à espera de um táxi”).” É, aliás, a dimensão metafísica que sustenta os poemas deste livro, como sobressai no início do poema “Inflexões do precipício” (p. 34): “por trás dos manípulos das coisas / saem imperiais, cervejas, pints / por trás dos manípulos das coisas / escorrem fontes (…)”. Por trás das coisas há coisas. Por trás do que acontece há outro acontece. E a memória reivindica a sua própria realidade. O acontecido, que nos acompanha aqui e agora no a acontecer, que inclusivamente sustenta este a acontecer, pois o que me faz identificar-me numa foto quando era criança é a memória, o que nos confere identidade é a memória, e esta faz da realidade sua refém. O que aconteceu chega-nos em parte como quando era no seu acontecer, mas também nos chega em parte como um nunca ter acontecido. E é esta distorção da realidade, operada pela memória, que abre um precedente hermenêutico de indagação da realidade enquanto acontece. Escreve a poeta em “Os polidores da minha sensação” (p. 12): quando abro a mala o forro frio que já foi outro surpreende-me sempre inesperado odor de cama de São José onde me apalparam a perna e disseram que não merecia levar gesso. A distorção temporal levada a cabo pela memória opera também uma mudança axiológica. É através da memória que passamos a valorizar o que antes não tinha valor. Não é a passagem do tempo que opera essa transformação valorativa, é a memória. E por isso mesmo, nós voltamos sempre atrás, como ironicamente escreve a poeta, em “Obsessão débil” (p. 18): “a hermenêutica fechou a porta / depois de velha / gostava de lá voltar / e verificar as fechaduras”. E é o que na realidade estamos sempre a fazer, a voltar lá atrás e a verificar as fechaduras. Muitas das vezes não verificamos apenas, também trocamos as fechaduras do lá atrás. O próprio poema é um ser híbrido, que acontece através do acontecido. Que nasce do real e da memória, que é, nunca é de mais repeti-lo, uma ficção, aquilo que faz aparecer continuidades em completos descontínuos. Por conseguinte, este Manucure, faz do poema de Mário de Sá-Carneiro, como se fosse possível habituar um poema, a morada de uma vida, isto é, faz da memória colectiva, que é a história, seja ela da literatura ou mundial, o lugar onde tudo acontece. A memória justifica-se pela história e um poema de outro é mais descritivo da nossa vida do que uma fotografia nossa antiga. Sem os outros somos nada ou, pelo menos, sem os outros não me reconhecia. Assim, o livro de Rosalina Marshall parte do poema “Manucure” de Mário de Sá-Carneiro, para enunciar a dificuldade de entender a realidade, a dificuldade de mastigar e engolir essa coisa chamada realidade. A realidade está para cada um de nós como o sabor a que sabe a cada um de nós a sua própria boca está para os outros. Escreve a poeta em “Loiras oscilações” (p. 31) Oh! linda lisboa no azul pela manhã oh linda lisboa tudo negro pela noite ninguém sabe a que me sabe a minha boca A realidade adjudica-se a si mesma pela história. Na impossibilidade de acedermos ao que seja a realidade, e devido ao facto de a memória reivindicar para si uma realidade própria, a realidade passa a ter um uso comum, passa a ser um território colectivo, que encontra na história a sua fundação. Em Manucure, a historia é o chão não só das palavras, dos poemas, mas da própria possibilidade de entendimento da própria vida. Num poema escrito há 100 anos (neste caso) pode estar a chave da minha vida. Antes de mais, este livro é uma enorme homenagem à poesia de Mário de Sá-Carneiro, no corpo do poema “Manucure”. Mas é também uma homenagem a todo e qualquer poema onde possa caber uma vida inteira. Antes de terminar com a voz da poeta, acrescento que este livro teve uma tiragem de 100 exemplares. Desconheço se houve ou não reedição. A não ter havido, deveria haver. Na sensação de estar polindo as minhas unhas sei que morrerei no dia do aniversário da minha morte ainda há coisas certas na vida o dia do aniversário da minha morte apresenta tamanha discrição que nem dou por ele portanto não mudarei de roupa talvez passe o dia deitada no displicente descanso de não atender telefones nem me levantarei para ir ver o correio e se alguém se lembrar de me acender as inconsequentes velinhas deixarei que derretam e estraguem o bolo no dia do aniversário da minha morte nem me penteio