Paulo Maia e Carmo: “Procuro não escrever ‘sobre’ a pintura chinesa mas ‘com’ ela”

Paulo Maia e Carmo, colaborador da primeira hora do Hoje Macau e especialista em pintura chinesa, revela as malhas que teceram a sua paixão e o papel de Macau nessa relação. Hoje é lançado o seu livro “Inquirições Sínicas”, na Fundação Rui Cunha, pelas 18:30, com apresentação de Shee Va

 

Como surgiu o seu interesse pela pintura chinesa?

Estando em Macau, frequentando as exposições, dado o meu interesse pela pintura em geral, caminhando ao acaso à procura de nada, encontrei numa exposição na rua do Campo, esta outra forma de pintura. O lugar de Macau, o seu viver quotidiano por ser tão diferente da experiência europeia, como que predispõe à disponibilidade. Vindo eu das margens do chamado e extinto «Império português», sendo por isso «estrangeiro aqui, como em toda a parte», a aparente «estranheza» das pinturas para um observador ocidental não foi uma barreira mas um infindável desafio para procurar entender.

O que encontra nela de mais fascinante?

Um modo de expressão que, com poucos meios e tão precários; um pincel, tinta preta, uma base de papel ou seda, é capaz de dizer tanto e de um modo essencialmente literário. Todas as paixões implicam também um desafio.

Sendo a cultura chinesa de difícil acesso, sobretudo em Portugal, como faz para a estudar e se manter informado?

Primeiro pelos livros de autores que, em linguas ocidentais, há muito estudam a pintura chinesa e que encontrei primeiro na Biblioteca de Arte da Fundação Gulbenkiam. Foi lá que li primeiro Osvald Sirén, James Cahill ou Pierre Ryckmans. Procuro, sempre que possível, não escrever «sobre» a pintura chinesa mas «com» ela, através da convivência diária com textos de celebrados escritores, poetas e pintores, mostrando o que eles mesmos disseram ao traduzi-los para a língua portuguesa. Hoje, através da Internet, é possível aceder às colecções de arte Oriental dos grandes museus, sobretudo americanos e chineses, e mesmo alguns europeus. As revistas internacionais da arte, sobretudo francesas, dedicam um espaço cada vez maior à actualidade da pintura da China.

Este livro, “Inquirições Sínicas”, sobretudo o título, tem um sabor borgesiano (de Jorge Luis Borges). Por quê?

Certamente há uma afinidade com Borges, um autor que desde a «periferia» se interessou pelas culturas dos outros. Sobretudo no conto O Aleph, existe essa analogia com o modo de fazer da pintura chinesa; dizer muito com muito pouco. Colocar a questão do lado da literatura também será adequado quando se observa por exemplo, um dos formatos com que se apresenta a pintura: o rolo horizontal cuja forma está tão próxima do aspecto arcaico de um livro. Também me interessou a própria palavra Inquirições: essa curiosidade, a vontade de saber ao olhar para as pinturas e depois anotar com cuidado o que se vai encontrando.

Se bem que as coisas mudem ao longo do tempo, que principais valores detecta entre os pintores chineses? O que procuram eles principalmente?

Como na poesia, desde o princípio da definição da arte os pintores buscaram fazer uma celebração, uma religação à natureza, a integração do homem no mundo, como colaborar no dinamismo do Mundo que se vai criando.

O lugar da figura humana, na maior parte da pintura chinesa, parece ser preterido em relação à natureza. Por quê?

O humano está do lado de quem faz, do erro da mão que procura representar o mundo visível. É o olhar para fora da pessoa. Naturalmente existe a pintura de retratos mas a chamada «pintura dos letrados» não tem a preocupação da exactidão, do espelho que se procura na representação da figura humana, está mais do lado alusivo da poesia.

Por que razão existe na China uma conexão tão forte entre poesia e pintura?

Sob o ponto de vista formal, são duas formas que se exprimem através do mesmo pincel. Depois há um jogo contrastante de sentidos de natureza literária que se completam: a pintura, por vontade de ser inacabada tende à elipse, à abstração, a poesia recorre aos procedimentos concretos de algo que se quer mostrar. Depois de Wang Wei, pintor e poeta, os autores de tratados vêm repetindo um aforismo que «a sua pintura é um poema e os seus poemas são uma pintura». E esse é o objectivo. Em termos de hierarquia de valores estéticos, o mais elevado é referido como xieyi, «escrever a ideia» e não mostrar as aparências.

Quais são pintores chineses que dizem mais à sua sensibilidade? E à sua razão (se é que podemos distinguir)?

Existem os clássicos, Guo Xi, Mi Fu, Huang Gongwang, Nizan, e depois Shitao, Gong Xian e muitos outros. Todos eles, por vezes de forma antagónica, mostram algo fundamental que agrada ao pensamento mas na composição do caracter yi para dizer «ideia», que resulta do pensamento, estão outros dois que significam «ouvir» e «coração». De modo que, observando com atenção, não há um pintor dos que tenho falado que não tenha uma pintura importante, que não mostre uma singularidade, um aspecto imperdível do seu olhar sensível sobre o mundo, que é a vontade afinal de todo o pintor .

Sabemos que viveu um período da sua vida em Macau. Que lembranças guarda desses tempos?

Quem bebeu da água do Lilau, sabe que a cidade já não é só um cenário exterior para vivermos, passa a ser um sentimento que vive dentro de nós. Foi para mim um tempo emocionante e de descobertas, os últimos que passei junto de meu pai, o lugar onde conheci a mãe de minha filha.

Gostaria de voltar?

Voltar é sempre um desejo.

10 Mar 2022

A Emergência do Buda e a Pintura

Sakyamuni, o Buda histórico, depois de abandonar o palácio retirou-se para as montanhas em busca de iluminação acompanhado de cinco outros ascetas e lá ficou durante seis anos, até que uma jovem, Sujata, lhe ofereceu um pouco de leite de arroz que ele, inesperadamente bebeu, terminando assim o jejum. Decepcionados , os seus companheiros deixaram-no e ele, sozinho, decide descer das montanhas e regressar ao convívio social, em direcção a Gaya, no actual Estado indiano de Bihar onde, debaixo da árvore Bodhi, alcançaria finalmente a iluminação. Os pintores adeptos do Chan, particularmente durante a dinastia Song (960-1279) encontrariam numa destas etapas do percurso do Buda, um motivo que visualmente ajudava a esclarecer a doutrina. Designaram-no Chushan Shijia (em japonês Shussan Shaka), o «Sakyamuni emergindo da montanha» e continha uma série de atributos que, mostrados em certas ocasiões, ajudava a reflexão dos monges e eram reconhecidos entre uma minoria de literatos da elite. Entre esses elementos, estavam: a dificuldade de atingir a iluminação, a necessidade do retiro espiritual mas também um aviso: o afastamento total do mundo dos homens não é desejável. Ao olhar para uma pintura feita por um monge do século XIII de quem pouco mais se sabe que um nome, Hu Zhifu, essa encenação como exemplo, fica clara. Essa pintura, que se encontra no Smithsonian, Galeria Nacional de Arte Asiática em Washington, DC (rolo vertical em tinta sobre papel, montado num painel, 92 x 31,7 cm) reluz no espírito como um espelho: um homem frágil, cansado, vem sozinho, as mãos escondidas, os pés nus, um à frente do outro parece caminhar, saindo de uma massa rochosa – uma montanha. Um elemento que se tornaria central na pintura shanshui que desde então ocuparia o pincel de grandes mestres nos anos seguintes.

Zhu Ruoji, que adoptaria o nome Yuanji Shitao (1642-1707) ao entrar para um mosteiro budista em 1651, seria um desses mestres que procurou transmitir o Chan sem usar palavras. Teria vinte e cinco anos quando, utilizando um outro ícone do Budismo, os «Dezasseis Luohans» faria numa extensa pintura (rolo horizontal, 46,4 x 598,8 cm, a tinta sobre papel) que se encontra no Metmuseum em Nova Iorque, uma sedutora demonstração das possibilidades do uso do traço da tinta preta. Numa pintura que se desenrola tendo como fundo uma «onda de pedra», estão figurados os dezasseis discípulos a quem o Buda pediu que aguardassem na montanha a emergência do Maitreya, o buda do futuro. Mas o que prende o olhar de todos é a aparição de um dragão, o agente das infinitas metamorfoses da Natureza que foi libertado, a partir dos vapores de um pequeno vaso, por um dos discípulos. A sua mão alçada, semelhante à de um pintor segurando um pincel, será um gesto visionário, uma iluminação como a que as mãos do Buda têm o poder de revelar.

11 Jan 2021

O Monge Que Deu o Braço a Bodhidarma

Crónica por Paulo Maia e Carmo

Li Ao (772-841) escritor e em geral erudito confuciano, possuía uma vontade de conhecer que se manifestou no reconhecimento filosófico e literário mas também no deslumbramento do espaço. Na sua célebre «Memória da minha viagem ao Sul» que decorreu no ano 809 e que o levou de Luoyang a Guangzhou foi anotando o que via e interpretando. No dia 1 de Abril, por exemplo, escreveu: «Visitei Wudangshan (Hubei) a Montanha da floresta marcial (…) Escutei o vento nos pinheiros convocando as montanhas encantadas com longos cantos, escutei os guinchos dos macacos e rapazes da montanha que imitavam as cotovias.» É possível que tenha sido aí, nessa atenção ao que escutava, que teria ouvido falar de um mestre do Budismo Chan chamado Yaoshan Weiyan (745-827) cuja fama se difundia na habitual forma de diálogos reveladores. Um deles coloca-o conversando com o seu mestre Shitou Xiqian (700-790) que lhe terá perguntado: «Que fazes aqui?» ao que Yaoshan respondeu «Não estou a fazer nada.» «Então estás só aí sentado, a descansar» disse Shitou. Yaoshan respondeu: «Se estivesse sentado, a descansar, já estaria fazendo alguma coisa.» Essa fama de sabedoria loquaz levaria Li Ao, o confuciano, a querer conhecer o monge adepto da súbita iluminação. Porém, ao encontra-lo, terá ficado decepcionado: «Ver-te não é tão interessante como ouvir falar de ti.» A resposta do mestre perduraria na reflexão sobre a realidade final, aquilo que pode ser visto: «Porque desvalorizas o olhar e dás importância ao ouvido?» Na realização dessa imprecisão, pintores adeptos do Budismo Chan criariam uma fórmula de representação que daria um valioso contributo para a percepção de o que é a pintura.

Shi Ke, que viveu no século X, no período das Cinco Dinastias (907-960) seria reconhecido na posteridade pela pintura «Dois patriarcas» que, numa provável cópia do século XIII, se encontra no Museu Nacional de Tóquio (rolo vertical, 35, 3 x 64,4 cm, tinta sobre papel) e se tornaria icónica desse tipo de representação, utilizando só linhas velozes e sombras. Numa dessas duas figuras sentadas, «harmonizando a sua mente», observadores reconheceram a efígie do segundo patriarca do Chan, Shenguang, também conhecido como Dazu Huike (487-593) que possuiria uma inquietação que só Bodhidarma o primeiro patriarca, poderia aquietar. Quando foi ao seu encontro, ele meditava frente à parede de uma caverna, perto do mosteiro de Shaolin, e a vontade de ajudar a difundir os ensinamentos do Chan era tal que se diz que cortou e lhe ofereceu o seu braço, um sacrifício do corpo que os adeptos facilmente entenderam como sinal de liberdade espiritual. Que na pintura de Shi Ke se revela nesse diálogo entre o Chan e a pintura, que resultaria na adopção de especiosos termos para se explicar como pomo, a tinta espalhada ou yipin, a categoria naturalmente desenvolta.

4 Jan 2021