Patrícia Baltazar (1977-2019)

[dropcap]N[/dropcap]o passado dia 23 morreu uma grande poeta, Patrícia Baltazar, com apenas 41 anos. E os seus últimos meses nesta vida foram de grande sofrimento. Há pessoas cujo desaparecimento nos causa uma dor profunda, um vazio impronunciável, a despeito de não haver muita proximidade. Apesar de termos trocado vários emails, estive com ela apenas uma vez.

Guardo para mim esse dia precioso. Patrícia tinha uma aura de ser mais do que era. Todos temos um pé na terra e outro no além, mas nela isso via-se, ouvia-se, percebia-se. Há três anos, quando comecei a colaboração com o Hoje Macau, e no período em que escrevi acerca dos poetas mais novos, foi por ela que comecei. Tenho pelos seus livros um enorme apreço e gostava de os ver reeditados, lidos. Deixo-nos três poemas de Fumar Mata, Madrugadas, 2010:

XXX

Há muito mais do que medo da morte. Há uma chave na porta. Fuga e as minhas mãos em coma.

Sempre na frente de batalha, eu, com circo, pouco pão. Uma dádiva, ter a vida presa por um filho. Vida na vida. Amor. Um extremo.
Coma.

XXXI

Sabre. Suicídio.

Não vou regressar.
Fui ao pântano do sacramento. Os olhos secaram.
E não vou voltar.
Eu não sei voltar
– à prova de bala no peito. Láudano e absinto.
Outros ao acaso. Eles não sabem nem sofrem.
Tudo se degrada por cima da cama. Pouco
Calendário. Um só instante de pavor.
O amor é a náusea de assistir à náusea. Largar
vida por vida e tanta morte.

XXVI

Passei os dias nas coisas. fervi, dei de comer, dei de
Lavar, dei um beijo, disse-me traz-me azul.

No fim de contas, lavei o cabelo, cantei descalça
dançando com o cabelo, mudei o disco, cantei de
novo. Não dancei mais.

Chegou-me azul.

1 Abr 2019

Patrícia Baltazar

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]atrícia Baltazar é uma poeta contemporânea, que vive no Barreiro, parte sul de Lisboa, do mesmo modo que Kadıköy fica na parte asiática da cidade de Istambul, ou a Lesbos de Safo ficava na parte asiática da Hélade. A poeta tem quatro livros publicados: Ré Menor (Língua Morta, 2010), Fumar Mata (Madrugadas, 2013), Catapulta (Do Lado Esquerdo) e A-Rh sanguis languae (Palavras Por Dentro, 2016). Aqui e agora, percorreremos apenas os caminhos de Fumar Mata. Chega-se a este livro de Patrícia Baltazar, como a uma casa arruinada, cansada de tempo e de miséria, sem ninguém, e passamos a sentir-nos como a ruína de um recordação que nunca foi, a ruína de uma vida por ser, porque “Não tenho de ser ninguém para perder a memória.” (XXXIII, p. 55) Aqui não nos encontramos face a face com a etiqueta de Aristóteles acerca da poesia, o que poderia ser, aqui ficamos face a face com o que nunca irá ser, a vida que poderíamos ter sido se houvesse vida. O livro começa com o verso “Precisamos de pássaros” (I, p. 7) e termina com um verso final, poema inteiro e sem número romano ou árabe “Que se foda.” Entre o que se precisa e o irremediável, o livro divide-se entre as “lâminas de algodão” (V, p. 15) da lírica e a realidade implacável de “45 quilos de ossos para uma tempestade” (XXII, p. 37). E muitos dos versos sucedem-se interrompidos, deixando eles também adivinhar a vida que poderia ter sido “De nada que me” (VI, p. 16) e “Fecha os olhos como se” (VII, p. 18) e “Não houvesse água que nos salvasse (…) Não houvesse absolutamente nada” (XXIV, p. 41). Somos incompletos como um verso inacabado. Mas pior, porque ninguém nos quis assim. Não é apenas para os outros que somos um discurso continuamente interrompido, também para nós mesmo o somos. A memória faz o que pode para nos conferir unidade, mas somos o que os outros fazem de nós, somos também o que não fazemos de nós, no fundo, “des-somos” mais do que somos. “Tenho várias salivas. Vários géneros. Acumulei rostos e corpos. E o teu, o teu, o teu, o teu e ainda o teu, continuam guardados, para sempre, em todos os meus lugares. Eu sou tudo o que vocês fizeram de mim.” (III, 10-1) Mas o humano que des-somos vê-se ainda melhor neste verso: “Ser uma cicatriz.” (X, 23)

Não se pense, contudo, que estamos diante de um livro que arrasta uma voz de queixume ou uma voz de vingança. Nada mais contrário a isto. Estamos antes diante de uma voz que ama as profundezas do mistério. E amar é já partilhar. Assim são vários os versos que iluminam esta ética “Se tenho 50 cêntimos num bolso e esse é o único dinheiro que me resta, então são 25 para ti e 25 para mim, que estás aqui à minha frente. Não importa quem és.” (XXXIII, 56) “Perdoo toda a gente que pensa que me magoou ou magoou mesmo.” (XXXIII, 57) E essa compreensão maior que é a dádiva que nos prende à vida, expressa num verso tão luminoso como uma estrela: “Uma dádiva, ter a vida presa por um filho.” (XXX, 52) É preciso ter-se perdido muito, quase tudo, e a nada e a nem ninguém culpar, para se chegar a este qualidade de verso. Estamos diante de um livro de amor. Não do amor inaugural de Safo, mas do amor ao próximo, um livro de amor à vida, aos confins da vida, um livro que vai do mistério de partilhar um prato de sopa, de fazer uma sopa que chegue para todos, essa verdadeira multiplicação dos alimentos – “Se tenho sopa feita, fiz com certeza para mais de 2 pessoas. Faço sempre isto. Tenho jantar para todos.” (XXXIII, 56) ou ainda este roçar de asas pela santidade, com que termina o poema XXII, “Quero que os meus irmãos me doam.” (XXII, 38) – até à transformação de tudo o que nos faz sofrer, “Engole tudo quanto se sofre.” (XXIX, 50)

No fundo, Fumar Mata trata-se de um livro que opera uma inversão completa do ponto de vista usual da poesia, que pode ser melhor entendida neste verso “Faltou-me o desânimo.” (XXXIII, 57) Assim, a vida em ruínas que percorre este livro é mais rica e mais sólida do que as vidas que percorrem a maioria de outros livros de poemas. Pois pode-se viver muito mais, do que nunca vivemos, do que se vive da própria vida, “Eu sou eles todos e as viagens que nunca fiz. Sou tudo isso.” (III, 10) Já Fernando Pessoa, por exemplo, nos tinha ensinado isso, mas aqui em Patrícia Baltazar a ultrapassagem da vida é na própria vida. Não temos vida, mas temos sopa, que chega para todos. Não temos vida, mas temos 50 cêntimos num dos bolsos, que se divide connosco, o leitor. Há nestes poemas da poeta uma espécie de alquimia ou de toque de Midas, uma transformação da dor em ouro em cada verso. Mesmo quando a poeta parece cair num banal queixume – “A minha infância está guardada na caixa das / fotografias antigas // É uma história para contar pouco. Uma coisa rápida. Uma bicicleta verde, a praia, as brincadeiras solitárias e caladas. // (…) Nunca fui uma rapariga. // Estes pés nunca andam juntos.” (XX, 34-5) – e, no poema imediatamente seguinte, lê-se este verso pujante, de apreço pela vida, de apreço pelo tempo de vida, por nada ser mais importante do que estar vivo e dar-se conta disso: “Mãe: não me dói nada.” Ainda que termine o poema pedindo novamente a atenção da mãe “Mãe? Estás? Mãe? Ouves-me, mãe? / Devolve-me, / A manta da tua ternura ou não sobrevivo.” (XXI, 36) A grande poesia faz com que a vida de quem a escreve seja soterrada nas vidas universal e de cada um que lê. E esta, de Patrícia Baltazar, não é diferente. Quem é a pessoa que escreve, não importa nada para este livro, para estes poemas. Eles são hoje património de estar vivo. Património daquele estar vivo entre a sobrevivência e a existência. Porque tudo poderia ser pior do que é, se não estivéssemos vivos, se não nos faltasse o desânimo. De que modo? A isso responde-nos Patrícia Baltazar, no final do seu poema XXIV: “Não houvesse água que nos salvasse. / Não houvesse vinte dedos para a realidade dos / corpos. // Não houvesse absolutamente nada.” (XXIV, 43) Mas há. “Eu e os meus poemas vamos fumar para longe. // Haverá uma árvore.” (XIII, 27) Entende-se que o livro nasce do centro de uma profunda dor. São vários os versos que iluminam essa dor. Mas esse centro, essa dor é apenas de onde se vem. Não é nem onde se fica nem para onde se vai. O final do poema XXII é o melhor exemplo desse entendimento da dor, como se ela existisse para nos rirmos dela: “Quero um grande relâmpago que me ilumine as / ancas. Que as estenda para o outro mundo. Que / as alargue até me sentir um cadeirão para Zeus se sentar.” (XXII, 37) Encontramos uma profunda união entre ética e estética, ao longo dos poemas de Patrícia Baltazar. E isto é, além de profundamente antigo, original, como se escrito em grego arcaico, ao tempo de Safo, e também uma viragem na poética actual.

12 Jul 2016