Carlos Morais José A outra face VozesSob o céu de Palmyra [dropcap]P[/dropcap]assara por Palmyra mas de Palmyra não saíra. Um esgaço de gente, eu, somente, a espaçar entre os doentes. Palmyra nunca ficava para trás e nós — que bem para a frente andávamos! Talvez às voltas, em círculos vários, complexas ovais, mas ali estava de novo Palmyra, sob as nossas sombras esticadas; e a noite que se aproximava; e o suão se levantava. E em Palmyra dormiria. Ali atendia o dia. A noite pertencia à lei. Todas as noites as passei em Palmyra. Vagueei sob arcos e arcadas, grandes portas e escadas, visitei ruelas, lojas, tabernas. Conheci os donos das esquinas, os senhores dos bairros. Era, amiúde, convidado para jantar. Conheci mulheres e elas conheceram-me, embora a nenhuma me vinculasse por me saber mera passagem. Todos os dias saía de Palmyra e me metia ao caminho. Talvez de um forte, talvez do mar, de um porto. Sonhava barcos no dorso do meu camelo. E comandava embalado toda uma tripulação. Pensava na cidade onde pretendia atracar. Teria ela mar ou um mero rio? Depois sentia um solavanco maior, um bramido e despertava do meu devaneio. A besta acabava de se ajoelhar, já noite crua, às portas da cidade de Palmyra, não muito longe da Fonte Eterna, de onde tantas vezes olháramos o contraluz do castelo e, num gelo súbito, tremêramos. Estava em Palmyra e outra noite se estendia à minha frente. Um velho recolhia cacos. Interpelei-o: “Velho Mestre, apresenta-me à rainha. Ouvi que ela ordena sobre Persas e Romanos e ainda outros povos cujo nome é terrível e não se deve pronunciar”. O velho aquiesceu. Nessa noite, adormeci sossegado na taberna. Mas outro dia espairecia e ao caminho eu me fazia. E para Leste me dirigi, para Leste indiquei o meu olhar. Desta vez fi-lo sozinho, oscilante no dorso de meu dedicado animal. E, em devaneios, sob o sol ainda tépido da manhã, o velho do nada me aparecia e me dizia ter a rainha anuído a meu tão ousado intento. E o coração pulsava desmedido sob a pele, pois já longe me julgava. Forte bramido: meu camelo que ajoelha e eu acordo em terra de Palmyra, lá no seu largo outonal. Ali aterro em solo quente, ainda oscilante da viagem, mas quente fornalha, a escaldar, quase miragem, não fossem reais as armas que estendidas me esperavam. E, por detrás de estandartes, de homens de várias artes, soldados e generais, ministros e sicofantes; sem manobra de intenção, surge impávida a rainha. “Dizem-me que queres sair de Palmyra e não o consegues. Todos os dias, porém, o tentas. Levas a tua magra tenda e ala pelo deserto, que preferes a esta cidade. O que pretendes de mim?” “Que intercedas junto aos deuses que me tramam. Morfeu e a sua dama. Os deuses dos caminhos desta terra, os do deserto, os da falta de água.” “Vai-te, homem. Sai da minha cidade. Ninguém quer ouvir o teu resmungo, a acidez da tua língua estrangeira, a rigidez desse discurso, as várias cores dos teus costumes.” E gargalhava. E assim, sob tochas, me levaram à rua e da rua ao largo e do largo às muralhas onde o meu camelo me esperava. O dia já despontava. E montado por mim dei. Tinha finalmente a esperança, sagrada por ordem real, de me afastar de Palmyra. E tão crente, tão seguro, estava de por fim poder partir que — mal ordenei ao bicho: “Oriente!” — dei por mim logo a dormir. Sonhava com a cidade que eu tanto desejava e via Palmyra ao fundo, chorosa e definhada. Lá para trás, ficava. Palmyra, a santificada, a da fonte sempiterna, a sempre núbil do deserto. E por toda a noite errei. Devo ter dado voltas e revoltas, ter voado da gangrena ao desespero, editado ânsias de corvos e prateleiras de ícones abandonados. Era o mundo um cemitério. Vasto, orgíaco de morte. Acordei num bramido de joelhos. Era ainda em Palmyra onde, do pesadelo, o nobre animal me acoitava. Havia uma porta entreaberta e um guarda, que generoso acolhia: “Entra, palerma. Todas os dias…: para onde tanto vais?…” “Tenho um encontro prometido em Samarra. Mas em Palmyra sempre me vejo e dela não consigo sair. Quando me afasto de Palmyra, logo adormeço e sonho, desemboco em devaneios e sempre por mim dou de volta, a esta mesma cidade. Tentei o chá, o café, as raízes interditas. Mas sempre os devaneios me tomam. Diz-me — tu que vês os homens e as mulheres a passar —, o que posso eu fazer?” “Continua a tentar, rapaz. Todos dias. Mantém pronta a tua tenda. Alguma vez o camelo te levará para Oriente e te depositará ainda estremunhado no mercado de Samarra, onde cumprirás o teu encontro. Ninguém te poderá acusar de chegares atrasado ou de não teres firmemente tentado. “Entretanto, devaneia no dorso do teu animal e pelo teu pé nas travessas desta cidade. O que poderás fazer é devanear: de dia pelo deserto e de noite pelas tabernas de Palmyra.” O guarda, que era um crente, acrescentou ainda: “A bondade divina permitiu a miríade dos seres e das manias. Por isso, também para a tua doença haverá um lugar sob a roda do céu.”
Carlos Morais José EditorialPara que serve a ONU? [dropcap style=’circle]A[/dropcap] propósito da recente destruição do templo de Bel, em Palmyra, e do assassínio de Khaled Assad, eminente arqueólogo sírio de 82 anos, muito se tem discutido sobre o que vale mais: as pessoas ou as pedras. Ou: trocar-se-ia a vida de uma pessoa pelas obras completas de Shakespeare? Estas perguntas são estúpidas e mal intencionadas. E isto porque se trata de uma e da mesma coisa. A vida de nada vale sem a memória e a memória é a vida de milhares de pessoas, o que delas resta e nos sustenta como humanos durante as nossas vidas. Nós não existimos sem a memória e a memória também não existe sem nós. Somos uma e a mesma coisa, por isso ambas têm de ser defendidas a todo o custo. Será que é assim que acontece? Não. Inúmeras vidas e património universal da humanidade são diariamente destruídas perante os olhos impassíveis dos que neste mundo detêm o poder. As perguntas que se impõem perante a escravatura e abuso de crianças, execuções em série de inocentes, limpeza étnica, destruição de artefactos de valor histórico-cultural incalculável e insubstituível é: Por que razão não intervém a ONU de modo a pôr cobro às atrocidade do ISIS? Que empecilhos existem à formação de uma força internacional que extirpe de vez esta raiz? Que outras atrocidades ou eventuais acções justificarão então a existência da ONU? Nunca, desde a II Guerra Mundial, ou seja, desde a sua criação, que a ONU não desempenha um papel tão ridículo e tão ineficaz, como no actual conflito no Médio Oriente. Parece claro que nenhuma nação no mundo apoia a ideologia que o ISIS quer implantar no mundo, nem as práticas desenvolvidas para o conseguir. No entanto, as grandes potências, com assento no Conselho de Segurança, assistem imperturbáveis a crimes que se acreditavam impossíveis no século XXI. Se assim é, no limite, para que serve a ONU?