João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasPaisagens dispersas Horta Seca, Lisboa, 4 Junho [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] ceifeira continua o seu trabalhinho, passou por Marraquexe e levou Juan Goytisolo, aos 86 anos. Dançaram logo à minha volta as bruxas-saudades do desafiante desassossego, do pensamento insaciável, da mística curiosidade, da fracturante narrativa, da carpintaria identitária, da ternurenta solidão de mais um dos derradeiros intelectuais, no velho e explosivo sentido da palavra. «La libertad y aislamiento serán la recompensa del creador inmerso hasta las cejas en una cultura múltiple y sin frontera, capaz de trashumar a su aire al pasto que le convenga y sin aquerenciarse a ninguno.» Vou à estante e colho Makbara, para me acompanhar nos dias próximos. Os livros são excelentes ressuscitadores. S. José, Lisboa, 6 Junho A subida da colina de Santana tornou-se rotina. Gosto deste pedaço da cidade, onde se cheiram outras épocas, de versos à maneira de Cesário, onde as ruínas possuem alma. Não durará muito, bem sei. Lisboa tem no corpo mistérios, como um cemitérios dos prazeres, ou de insistir em fazer coincidir hospital e miradouro, um dos mais belos, por não sacrificar apenas ao mar da palha. Na cama, o meu pai insistia em localizar-se. Sem se mexer, estava perdido. Com a patética condescendência com que tratamos os doentes, insistia em explicar-lhe as geografias enquanto piscava o olho à Senhora do Monte. Não, não estava no inexplicável Campo Grande, nem o mais perceptível S. Sebastião da Pedreira. «Sabes, filho», disse-me, «a minha cabeça tem andado por paisagens dispersas». CCB, Lisboa, 8 Junho As últimas sessões do Obra Aberta (https://www.abysmo.pt/obra-aberta/) foram brilhantes na sua diferença. Nada de substancial, que o terreno de ambas foi o da inteligência, melhor, da lucidez, se uma foi tintada de negro, estoutra mais recente fez-se solar que nem dia de praia, mas dos meus, feitos e conversa e sombra à beira-mar. Isto mesmo eram as nossas pretensões para o programa, conversa solta sobre livros, os seus temas, o que eles em nós suscitam, mudam, provocam, isto é: leituras. O historiador António Araújo quis falar do Gulag, de Alexander Soljenítsin, sem esquecer o nazismo, já que trouxe ainda o texto de Hannah Arendt sobre Eichmaan, esse relato da presença do supremo carrasco na cidade que se ergueu sobre as vítimas. Pairou uma ideia essencial: não há anormalidade no horror, qualquer um de nós, nas circunstâncias exactas, pode tornar-se algoz. O escritor de origem judaica, Richard Zimler, dialogou a partir de um propósito ético da literatura, mas brilhou com a diatribe contra essa aparente excrescência do homem comum que se chama Donald Trump. Gerida pela Maria João Costa, a segunda conversa juntou Sérgio Godinho e Isabela Figueiredo num distendido elogio à literatura, à imaginação, enfim, ao modo como a escrita permite aceder ao mundo, torná-lo maior e ao mesmo tempo acessível. Mas nunca domesticado. Em qualquer dos casos, aconteceram testemunhos na primeira pessoa de quem acredita no valor redentor da palavra. Com uma autenticidade que me parece rara e sem esta pompa que não consigo escovar da frase. Horta Seca, Lisboa, 8 Junho A galeria está impossível, parece o anticiclone dos Açores, o cruzamento das mais díspares correntes de ar. Pode até parecer exagero, mas fixa comprovado nos rostos de quem se confronta com a luxuriante inocência dos cartazes de Bráulio Amado (Almada, 1987). Há vozes e silêncios, gritos e sussurros, rostos e membros, corpos e olhos, murros e carícias, música electrónica e punk rock, fanzines e revistas de arte, a opinião e um convite, festas e tristezas, vastas paisagens e detalhes mínimos, décadas distantes e o dia de ontem, tudo a acontecer em simultâneo, apenas porque se imprimiram em grande formato estes posters. Afixam, não tanto uma qualquer circunstância, mas a contemporaneidade. Esta é a pele dos nossos dias. Como o próprio conta, no Bráulio Amado 2016, que a Stolen Books editou por estes dias, os cartazes eram uma perturbadora encomenda de uma amiga para um clube nova-iorquino de house/techno que tinha que ser feito no dia de fecho da Bloomberg Businesseweek, da qual era art director. O resultado era apressado, muito influenciado pela música que mais ou menos desconhecia, pela vontade de experimentar e pelo humor. E assim nasceu um estilo. Surpreendente na diversidade; inteligente na combinação dos elementos, na inserção da tipologia, muito dela manuscrita; divertido no uso das cores. Revejo-me neste cabeçudo (ao lado), imenso balão branco, preso à âncora de um rosto tombado. Digam-me porquê ou encham-me de cor. Horta Seca, Lisboa, 9 Junho Faz meio ano que comecei estas linhas arrevesadas. A princípio, era apenas outro afazer em lista atulhada até aos impossíveis. Depois tornou-se exercício, de ganhar músculo, de voltar a andar. O fim da tarde de terça, deste lado do globo, assinalava-se com a chegada do pdf. Dei por mim a lamentar a quantidade de quartas-feiras que foram feriado em lugar tão distante. Agora, a minha semana não é sem este ponto da situação. Estranhamente, não estendo este diário com entradas para a gaveta, mais íntimas. Esta semana, por exemplo, sofri duas conversas, dolorosas chamadas à realidade, que justificariam isso mesmo. Ainda não dei esse passo, provavelmente não darei: entre gaveta e preguiça, escolherei sempre a segunda. Mas surgiu-me isto a propósito do sortilégio do papel. O mano António [de Castro Caeiro] cometeu a gentileza de trazer da sua incursão macaense um exemplar do Hoje Macau. Raios! Que diferença, poder desdobrar os 25 x 38,5 cm de papel de jornal. Não há brilho, não consigo ampliar detalhes, mas os olhos percorrem o filete, param nas cabeças, regressam ao título, descansam no branco, penduram-se nas colunas, sentem-lhe os dentes. As mãos erguem o lençol em busca de luz. O toque parece transmitir o cinza leve do fundo. A tinta rima com o mundo. (E depois ao lado estão os clássicos Ruis, o Cascais da palavra, e o Rasquinho da imagem, com quem aprendo sempre e até parece que acertamos assunto, são assim os clássicos e mereciam edição, meus caros.) Sou, concluo, duplo cronista, o do ecrã e o da folha.