António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasCinestesia 2 [dropcap]O[/dropcap]bjectos parados parece que estão em movimento. Objectos em movimento parece que estão parados. A nossa perspectiva influencia o aspecto das coisas. Ganho perspectiva que me permite ver uma coisa que antes não via, antes de a perspectiva ter sido constituída. Levanto-me da secretária e vejo o livro que caiu. Sento-me. De novo, perco o livro do horizonte da visão, mas sei que está junto à parede, onde caiu. Perco a perspectiva, perco o alvo em mira. Abaixo-me e estico-me para apanhar o livro. O livro parece aumentar de tamanho. Só no tacto é do mesmo tamanho. Pequenas são as coisas ao longe. Não: parecem pequenas. Não: parecem menores. À medida que nos aproximamos delas ou elas de nós parecem ser maiores. As coisas parecem aumentar e diminuir de tamanho: tão perto que não percebemos as suas formas geométricas e tão longe que deixamos de as ver. Há um cânone: entre o longe e o perto, entre a quantidade máxima com que nos surgem e a quantidade mínima com que nos podem surgir. Mas as coisas têm sempre o mesmo tamanho, a mesma forma, a mesma configuração. É com essa identidade em vista que achamos que as coisas não se deformam, nem mudam de configuração, não se transformam. Também sucede que julgamos bem quando dizemos que as coisas estão paradas ou estão em movimento, quando aparentam estar em movimento ou paradas. Na estrada, vejo lá ao fundo as bermas intersectarem-se mas sei que a largura da estrada é a mesma, aqui onde me encontro e lá ao fundo onde estarei daqui a breves instantes. Tenho a percepção tácita de que para trás a base do triângulo também não se alarga, mas mantem exactamente o mesmo paralelismo. Se olho para trás, tenho a sensação de que lá ao fundo de onde venho também as linhas paralelas das bermas se encontram. Não há o acompanhamento do juízo lógico: a base do triângulo alarga. Antes estreita. Mas as linhas paralelas definidas pelas bermas da estrada não se encontram apenas aparentemente. Tenho a sensação de que a estrada lá ao fundo está mais elevada, que é como se estivesse a subir uma alameda. Eu encontro-me num plano inferior relativamente ao plano superior da estrada lá ao fundo. Olho para trás e não tenho a sensação de que a estrada no ponto de partida esteja num ponto ainda mais inferior. Antes pelo contrário, verifico que o ponto de partida como o ponto de chegada estão em planos superiores. O que sucede é então provocado pela perspectiva criada pela distância. Tudo o que está ao longe está à frente ou atrás num plano mais elevado, superior. O longe tende a conglomerar as coisas. Os pontos onde as coisas se encontram não são tão dispersos pelos diversos planos que definem entre o ponto em que nos encontramos e o plano de fundo criado pela linha do horizonte. Os pontos são atraídos, sugados e puxados pela linha do horizonte, pela abóbada celeste, tendem a estar no plano definido pela abóbada, lá ao fundo: pontos concentrados e colados todos eles pelo longe. Todas as coisas que se encontram em pontos que definem planos entre o nosso ponto de vista e o plano de fundo estão espalhados. Cada coisa em cada ponto, no seu ponto, define um plano. Mas há muitos mais planos do que os que são definidos pelas coisas que realmente aparecem. Eu estou no meio de uma esfera, de uma atmosfera, de um horizonte hemisférico que define potencialmente planos em todos os pontos em que eu possa focar a visão. Há tantos hemisférios quantas as perspectivas que se abrem no horizonte. Posso olhar absorto para o horizonte, como quando estou no lugar do morto e alguém conduz o carro ou como quando estou a olhar para a frente sentado no banco do autocarro. Mas quando fixo o olhar na estrada, é no carro da frente ou no outro a seguir. Ou então olho para a frente para o ponto em que de modo aparente as linhas definidas pelas bermas da estrada se encontram. Mas posso olhar também para o céu ao crepúsculo e ver as estrelas do céu ou as nuvens que passam. Deixo de olhar para a frente que noto que o faço através do vidro do carro. Olho para o porta luvas para apanhar um CD ou então um lenço de papel. Entrego-o à J. que conduz. Olho de novo em frente. Constitui sempre alvos diferentes. Consoante os sítios em que se encontram percebo que estão definidos hemisférios diferentes. O plano de fundo pode ser o interior do carro, sem que perda a noção do seu exterior. Quando olho de novo para o horizonte, o exterior do carro é o campo extremo da minha percepção que engole não apenas o interior do carro mas a estrada com todas as viaturas que aí transitam. É também interior o céu e as nuvens que passam ou as estrelas espalhadas e distribuídas pela sua vasta extensão. Para onde quer que olho, frente, trás, cima, baixo, direita e esquerda, dentro e fora, percebo sempre um plano de fundo Relativamente a esse plano de fundo defino potencialmente diversos planos onde as coisas estão distribuídas. Fixo os meus óculos, e os olhos e o nariz e parte do bigode. Entre o aqui muito próximo em que me encontro e o ali há todo um conjunto de planos definidos entre o mais próximo coincidente comigo e o mais longínquo longe. Tudo é sempre frente. Eu tenho a noção da nuca e da parte de trás invisível do meu corpo, das nádegas, das costas assentes na cadeira, tenho noção do interior, mas eu vejo apenas de frente. Tenho noção dos objectos que vejo de frente, mas percebo que só vejo deles o lado deles que está virado para mim: não vejo nunca o interior dos objectos e não vejo o lado deles tapado por outros objectos. Entre nós e as coisas só há o plano definido pelo espaço intermédio entre o aquém e o além de nós e dos objectos. Tenho noção de coisas atrás de mim. Elas não desaparecem apenas por deixar de vê-las, elas não desaparecem quando passo por elas. O lado dos quartos que não vemos não desaparece e está a fazer sistema com o lado dos quartos para que estamos a olhar. Eu não vejo o quadro na sala atrás de mim e posso ver a porta lá ao fundo. Não vejo a porta porque estou a olhar para o ecrã do computador. Ainda assim, penso na porta lá ao fundo como uma ausência tão completa para a visão como o quadro que sei que está pendurado atrás de mim. Olho para a porta e deixo de ver o computador. Olho para trás e vejo o quadro. Deixo de ver tudo o que estava a ver. Estamos continuamente a poder deixar de ver tudo o que estamos a ver ou poderíamos ver, ao olhar de frente, quando mudamos de enfoque. Se da esquerda passamos para a direita, se de cima para baixo, se do longe para o perto, se do interior para o exterior: e tudo continuamente ou nunca. Mesmo que nunca virasse a cabeça ou fixasse pontos diferentes do espaço, nunca faria a ideia de que as coisas desapareceriam se eu deixasse de me focar nelas e passasse a focar outras noutros planos. Do mesmo modo se estivesse continuamente e mudar de enfoque, a alterar a perspectiva, a constituir aspectos diferentes às coisas, não me perderia na velocidade estonteante com que tudo se altera convulsivamente. E o que se passa com a atenção prestada e não dada às coisas?