Isabel Castro VozesO último acto [dropcap style≠’circle’]1.[/dropcap] Este texto devia ser, em rigor, sobre as eleições do próximo domingo. Devia ser um texto de análise, profundo e revelador de algum conhecimento sobre a matéria, um texto acerca das diferentes opções ao dispor do eleitor. Não é. Não sei se sei e, mesmo se soubesse, não me apetece. Também não é um texto baseado em teorias da semiótica das artes visuais, uma abordagem à estética eleitoral, ao modo como se pretende passar as mensagens políticas do momento. Este texto devia ser sobre o momento político mais importante do território, mas não é. O momento não se dá à importância, não se dá ao respeito. Não se dignifica, nem dignifica os outros, os cidadãos comuns pelos quais deveria ter consideração. O que temos visto por aí é um pequeno circo ao ar livre, por entre os escombros do vento, as árvores e as tabuletas que continuam pacificamente derrubadas. Sendo certo que, independentemente da geografia, as campanhas eleitorais tendem a ser excessivamente burlescas, as da terra estão cada vez mais trágico-cómicas. Cómicas porque são arlequinescas; trágicas porque tudo isto é sério. Demasiado sério. O que guardarei desta campanha eleitoral. Um candidato que acha que Che Guevara reencarnou junto ao Mar do Sul da China. Uma candidata que acha bonito andar por aí, na televisão, a falar dos filhos dos outros. Uma polícia que gosta de demonstrar o quão musculada é. Um IACM que diz que respeita os tribunais, como se tivesse outra opção. Umas carrinhas podres com uns cartazes fraquinhos. Uma Comissão de Assuntos Eleitorais que precisa de amadurecer. Promessas dirigidas única e exclusivamente a determinados sectores profissionais, como se andássemos todos a baralhar cartas em casinos. O que guardarei desta campanha eleitoral. A conversa vaga e vã do costume. O que resultará destas eleições. Uma Assembleia Legislativa mais pobre, mais fraca, menos interessante. Ainda menos interessante. Não sabendo o que vai acontecer no próximo domingo, aposto um avo em como sairão vencedores aqueles que mais arroz distribuem, mais ajudam os necessitados e mais palmadinhas nas costas dão a velhinhos e crianças, como se política e beneficência se misturassem, como se melhor político fosse aquele que mais dinheiro tem. Este texto devia ser, em rigor, sobre as eleições do próximo domingo. Não é. É sobre aquilo que eu não gostaria que Macau passasse a ser. Ainda assim. Quando o próximo domingo chegar, vote, senhor eleitor, vote em consciência, coisa que falta à grande maioria dos candidatos. Mas vote, vote sempre. Ponha o carimbo no quadrado que a alma lhe indicar. Se não houver caminho para nenhum dos quadrados, vote na mesma, não escolha nenhum. Compreendo a indecisão, mas vá lá e vote, faça tudo como vem nos livros. 2. Há precisamente 20 anos, em Setembro de 1997, entrei numa redacção e nunca mais de lá saí, apesar de ter vindo para o outro lado do mundo e de ter conhecido algumas redacções, das quais também nunca mais saí. Muitas voltas dadas, este jornal. Casa de portas abertas onde cheguei uma e outra vez, sempre de maneiras diferentes. Que me ensinou o que é pensar nos outros, que me pôs a discutir, a perguntar, a perguntar muito, no desassossego constante sem o qual não é possível ser-se jornalista. Que me ensinou que tudo isto vale a pena, mesmo que amanhã já não tenha qualquer importância e estas páginas sirvam para embrulhar os copos em mais uma mudança de casa, para limpar vidros ou embrulhar peixe, funções todas elas nobres dos matutinos e vespertinos deste mundo. Não sei como vim aqui parar, a esta redacção e às outras todas. Aconteceu e nem sequer consigo precisar o momento. Talvez tenha acontecido por gostar das palavras, do acto da escrita, e depois a vida e as pessoas que se atravessaram nela fizeram o resto. Ensinaram-me o resto. E ensinaram-me que, nisto dos jornais e do jornalismo, não se é, nem se está pela metade. Quando as palavras nos custam, nos doem, mesmo que nos escorram pelos dedos às centenas, aos milhares, é porque só já somos metade de nós. E eu não sei ser só meia-eu. Este é o meu último texto. Obrigada aos que me ensinaram a ser em contramão.