A pós-normalidade

[dropcap]A[/dropcap] normalidade parece corresponder a um conjunto de hábitos, uma espécie de teia inconspícua de sentidos a que Wittgenstein chamava “proposições empíricas fossilizadas”. O peso desta teia na determinação de inteligibilidade do que nos rodeia é inversamente proporcional à sua visibilidade imediata. Como dizia Giorgio Colli, “a natureza gosta de se esconder”.

A normalidade como um círculo: reconhecemo-nos “dentro” ou “fora” mas temos dificuldade em perceber a configuração dos seus limites. Mais: aquilo que à primeira vista nos parece anormal pode, com tempo e hábito, tornar-se normal e uma estrutura substitui a precedente.

A normalidade como um par de óculos complexos: uma série de filtros através dos quais estabeleço uma relação com o que está “lá fora”. A mudança de lentes corresponde à mudança na teia de sentidos pelos quais eu me atenho às coisas. Heidegger dizia “os óculos não estão na ponta do nariz, mas nas coisas”.

Nos últimos tempos e por motivos óbvios tenho pensado na normalidade concentracionária, aquela que subjaz a e configura os espaços prisionais. Os campos de concentração nazis são o exemplo clássico. Mas estes eram recortes dentro da realidade mais alargada e complexa do nazismo. Na China de Mao, todo o país era um espaço concentracionário: a liberdade individual não existia, nem na forma mais básica de liberdade de expressão.

As crises fomentam a insegurança e com isso alteram a nossa hierarquia de valores. Nas crises tendemos a negociar segurança por liberdade: entregamos poder ao estado em troca de protecção. Na China – a origem desta pandemia – o interesse do colectivo, do estado, é um valor que se sobrepõe ao interesse do indivíduo. No ocidente – independentemente do que acontece de facto – tendemos a pensar ao contrário: a primazia é o sujeito e o estado existe por causa dele e em função dele.

As transferências de poder decorrentes das diversas situações de emergência que têm sido decretadas têm – deveriam ter – um carácter transitório. Situações excepcionais requerem medidas excepcionais. O problema é que o poder cria habituação. E quem lhe toma o gosto tem tendência a não querer prescindir de o ter.

Um pouco por todo o lado os gigantes da tecnologia delineiam estratégias de acumulação de dados com o propósito de tornar mais eficaz a luta contra o vírus. O problema é que estas empresas sabem, melhor que ninguém, o valor da informação e não se ficam pelos dados estritamente necessários para de facto aperfeiçoar mecanismo de contenção da epidemia. É como a pesca por arrastão: tudo fica na rede. E a tendência é a de estreitar as malhas.

Uma das ideias circuladas consiste numa aplicação para determinar se o utilizador teve contacto com uma pessoa infectada. Tal supõe que todos os utilizadores têm os seus passos monitorizados a todos os instantes. É uma espécie de geografia global das populações. Uma Cambridge Analytica a esteróides. Não é difícil imaginar que, ao lado dos dados estritamente necessários para uma análise epidemiológica, flutuem uma torrente infinita de dados capazes de serem analisados numa perspectiva de marketing de consumo. E não parece improvável conceber que – apesar de todos os contractos e licenças de privacidade firmados – as empresas se aproveitarão de toda e qualquer brecha legal para traçar perfis cada vez mais completos dos sujeitos que instalem as aplicações “antivíricas”. Tudo para nosso bem, claro.

17 Abr 2020

E o que é a normalidade?

[dropcap]P[/dropcap]erceber no nosso tempo onde começa e acaba o território da normalidade é como separar o vinho da água num mesmo copo. Nem sempre foi assim. O. Niccoli relembrou que, em finais do quattrocento e no século seguinte, a palavra “segno” – não confundir com signo, nas suas variadíssimas acepções – traduzia a ideia de tudo aquilo que escapava ao “curso natural das coisas”. O “segno” definia, pois, a fronteira entre o que se impunha como normalidade e o vasto reino das coisas desavindas e seguramente condenáveis.

O diabo, as metamorfoses inexplicáveis, as excrescências da natureza, uma parte significativa das práticas sexuais, os textos (hoje ditos) seculares, os monstros que habitariam a periferia do planeta, os eventos não catalogáveis, os animais fabulosos que respiravam nos relatos de Preste João ou no imaginário trágico-marítimo integravam, cada um a seu modo, esse negro e nefasto mundo do “segno”.

No entanto, para que o “segno” pudesse tornar-se reconhecível, era necessária a existência de uma ordem bem definida que permitisse distinguir o seu mundo de trevas do mundo caracterizado como normal. Sem esse crivo, as bruxarias, os textos proféticos considerados anómalos, as apostasias, os símbolos dissociados da tradição, as heresias e outros “horrores” jamais teriam sido perseguidos.

Curiosamente, o mundo utópico e o mundo ideológico, que irromperam um e outro – com experiências e naturezas diversas – no século XIX, acabaram por trazer consigo, nas geografias do ocidente cristão, a antiga marca das civilizações escatológicas. Só que, em vez de paraíso, convocaram a ideia de um igualitarismo terreno, do mesmo modo que a natureza racional do dogma substituiu o “Livro” divino e a luta “por um mundo melhor” passou a encarnar os exigentes preceitos da antiga fé.

Nesta nova geometria, o “segno” adquiriu outras formas e soube adequar-se ao modo estanque com que a modernidade se passou a organizar, na medida em que as mais variadas esferas de actividade se autonomizaram a partir do final do século XVIII (fosse a esfera jurídica, científica, estética, mediática, ética, constitucional, social, clínica, etc. etc.). Em todas estas esferas, a racionalidade moderna instituiu contrastes férreos entre a normalidade e a não-normalidade.

Pode mesmo dizer-se que a antiga tradição do “segno” acabou por persistir, mas agora tornando-se numa peça de polémica e arremesso em pleno espaço público.

Em cada uma das áreas da sociabilidade moderna, os contrários passaram a digladiar-se com alguma violência, tentando definir do outro lado o campo do “segno” (foi assim nos sistemas políticos, nas modalidades jurídicas, na sucessão vertiginosa de vanguardas artísticas, no debate científico, etc., etc.). Esta sistemática metodologia de oposições trouxe o “segno” para dentro da vida social, libertando-o da sua génese divina, cujas finalidades escapariam à compreensão humana (era esta a explicação de Santo Agostinho para a existência de monstros).

Deste modo, quer no mundo cristão pré-moderno, quer no mundo (cristão) moderno, ainda que com matizes diversas, a separação entre a ordem do “segno” e a ordem do “não-segno” foi preservada. Uma tal continuidade impediu a banalização de valores e de apologias entre visões que sempre se haviam digladiado. Ora o que mudou abruptamente no Ocidente, no final do século XX e no início do século XXI, foi precisamente este aspecto.

A grande mudança dos últimos trinta e poucos anos ficou a dever-se a dois factos: por um lado, a diluição e perda de eficácia (e até de sentido) das grandes referências pesadas e doutrinais de carácter ideológico e similares (o fenómeno atravessou domínios muito distintos e não se circunscreveu apenas ao esboroar da guerra-fria) e, por outro lado, a entrada em cena de uma globalização hipertecnológica associada a um nova morfologia de espaço público aberto, livre e não regulável (ou de difícil regulação).

A nossa era, cada vez mais policentrada, tem-se vindo a revelar através de um apagar gradual dessa fronteira que sempre havia distinguido o “segno” do “não-segno”. Para o bem ou para o mal, uma relativização galopante invadiu todos os debates contemporâneos. Mais: a separação entre “segno” e “não-segno” não só adquiriu novos sentidos como deixou de ser uma questão (ou um problema), da mesma maneira que a superação da divisão clássica entre real e ficcional começou a ser baptizada sob o desígnio da hiper-realidade.

Os efeitos desta transição meteórica estão ainda por determinar. Sem uma distância face ao presente é difícil avaliá-los. Todavia há aspectos que se destacam a olhos vistos, tais como a banalização do mal, as várias faces do hiperterrorismo, as manipulações genéticas ou as pesquisas que nos estão a conduzir ao pós-humano.

A correctness tem sido uma das fugas para a frente que as nossas sociedades inventaram para suprir os muitos vazios de sentido em que vamos vivendo. Fora da arena da correcção, tudo, ou quase tudo parece sair da sua órbita: veja-se o mandato Trump, veja-se a linguagem de Bolsonaro, vejam-se os impactos do Brexit, veja-se a vacuidade doutrinal dos nacionalismos europeus, veja-se o modo como a questão climática é globalmente negligenciada (seremos dez mil milhões de pessoas no final do presente século). Fernando Pessoa ou, se se preferir, Ricardo Reis, parece ter compreendido tudo isto muito antes: “Basta-me que me baste, e o resto gire/ Na órbita prevista, em que até os deuses/ Giram, sois centros servos/ De um movimento externo.”


Niccoli, Ottavia. Prophecy and People in Renaissance Italy. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1990, p. 31. Tít. orig. Profeti e Popolo nell’Italia del Renascimento. Roma; Bari: GIUS, Laterza & Figli SPA, 1987.
Pessoa, Fernando. Poemas de Ricardo Reis. Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994.

6 Jun 2019