Don(ald), Hill(ary) e os clássicos chineses 希拉里.克林顿知道多少

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]êm ideia de quantas vezes os dois candidatos à Presidência dos EUA mencionaram a China durante o primeiro debate eleitoral? Pois é verdade, Pequim está sempre presente na mente dos americanos, se não mesmo nos seus corações.
Coração e mente. Estas duas palavras transportam-me para a literatura chinesa. Gostava de aproveitar a ocasião para falar sobre, ou melhor, falar em torno de um dos quatro clássicos: Os Três Reinos 三国志。
A 22 de Junho de 2015, durante a cerimónia de inauguração do Encontro Económico-Estratégico Sino-Americano, o Secretário de Estado John Kerry congratulou a China por se ter tornado um líder mundial, nomeadamente, por ter ajudado os EUA a combater o Ébola, pela intervenção diplomática no Irão, e pela colaboração conjunta no Afeganistão. Mas o Vice-Presidente americano Joe Biden fez umas declarações menos elogiosas. Afirmou que, se a China quiser verdadeiramente vir a tornar-se num “concorrente responsável,” terá de respeitar a lei internacional, garantir a liberdade das zonas marítimas e proteger os direitos humanos.
Como é que poderemos unir estes dois pontos de vista divergentes e compor uma imagem correcta da China?
Mesmo depois de mais de 200 anos de relações entre os dois países, a China permanece um enigma para os políticos americanos. Como explicar o comportamento contraditório da China? De uma forma geral, parece-me que os ocidentais, neste país, só conhecem Confúcio e a Arte da Guerra. O Ocidente tem prestado pouca atenção a outras eras importantes da história chinesa: o período do Três Reinos (220-280). A obra clássica da literatura Romance dos Três Reinos continua extremamente pertinente na sociedade chinesa actual. Este texto tem sido estudado e profusamente citado, e é uma referência de todos os dirigentes chineses desde Mao a Xi Jinping.
Romance dos Três Reinos decorre após a queda da dinastia Han, em 220. A China, até aí unida, divide-se em várias facções comandadas por temíveis senhores da guerra, cada um deles empenhado em reunificar o país sob a sua liderança. Por fim, os mais fortes conseguiram fundar três reinos: Wu, Wei e Shu.
O Reino de Wu simboliza a hegemonia regional. O Rei de Wu não tinha propriamente ambições imperialistas; só queria proteger o território que desde os tempos ancestrais pertencia à sua família, situado ao longo da costa leste. Mas isso não o impediu de lutar com todas as suas forças para defender a independência e a hegemonia dessa terra soberana. Quando o Rei Wei o defrontou na Batalha de Chibi (Falésia Vermelha), Wu uniu-se com Shu para proteger a hegemonia da sua região. Nos dias de hoje, a China está a posicionar-se pela hegemonia da Ásia. É líder na Organização para a Cooperação de Xangai e fundou o Banco Asiático de Investimento em Infraestruturas, para fazer frente aos ocidentais Banco Mundial e ao FMI. Está também a caminho de estreitar os laços com a Rússia, de forma a manter o alcance deste gigante fora da sua esfera de influência.
Wei era o segundo Reino e representa a tirania. O Rei de Wei, o celerado Cao Cao, um líder implacável que usava as alianças para tornar os estados vizinhos seus vassalos e que, mal podia, quebrava as alianças assim que via uma possibilidade de atacar. A frase mais célebre de Cao Cao foi, “prefiro trair o mundo inteiro antes que o mundo me traia a mim.” Por isso agora podemos juntas todas as peças do puzzle, América Latina e África, Mar do Sul da China e Japão e, por aí fora.
Finalmente, vem Shu, o terceiro Reino, que representa a autoridade humanitária. Liu Bei personifica o rei sábio, que se apoiava na sua reputação e na sua virtude. Benevolente, seguia escrupulosamente a lei e exercia a autoridade de forma humanitária. Liu Bei não se guiava só pelas suas próprias ideias; rodeou-se de um círculo de leais conselheiros. Para defrontar o terrível Wei, Shu teve de aliar-se a Wu. A China dos nossos dias ascende à cena internacional como o rei sábio que desejava representar a autoridade humanitária no mundo. Isto diz-vos alguma coisa? Claro que sim, estou a lembrar-me de uma ideia tão ancestral quanto moderna que tem mantido a China viva no imaginário ocidental através dos séculos. Três Reinos, três caminhos. Querem experimentar com pauzinhos, USA?


Foto: Richard Nixon experimenta comer com pauzinhos durante um banquete dado em sua honra, 1972

5 Out 2016

Cuidado com a Luxúria 魔鬼调教的张爱玲

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] romancista chinesa Eileen Chang 张爱玲 morreu a 8 de Setembro de 1995 em Los Angeles. Mas será possível celebrar a morte de alguém? Eu decidi que sim, porque ela se encontra entre os poucos romancistas chineses contemporâneos que continuo a ler hoje em dia. Eileen Chang repousa ao lado de Lu Xun no meu altar literário, só um bocadinho mais esquecida.
O filme Cuidado com a Luxúria 色、戒, produzido em Hollywood e realizado por Ang Lee, baseia-se num conto publicado em 1979, em Taiwan (ver foto). O trabalho de Chang desenvolve-se em torno de dois temas: a vida do dia a dia no período pré-comunista, marcado pelo encontro entre o Oriente e o Ocidente, e o cosmopolitismo da autora. Em Cuidado com a Luxúria, Lee demonstra ter-se apaixonado por ambos.
A escrita de Chang parece ser o produto natural da sua educação. O pai era a imagem do aristocrata decadente dos finais do Império, a mãe o tipo perfeito da “Nova Mulher”, ocidentalizada e adepta da reforma cultural. Educada e independente, chegou mesmo a deixar a família durante vários anos para viajar pela Europa e esquiar nos Alpes Suíços. Depois do divórcio dos pais, tinha Chag dez anos, a jovem iria crescer no universo contraditório de Xangai, durante o período pré-comunista, dividida entre o moderno apartamento da mãe e a casa aristocrática do pai, que se tinha tornado num covil de ópio. A transição cultural da China evidencia-se nas suas observações acutilantes.
A maior parte da sua obra foi escrita nas décadas do meio do séc. XX, um período de grandes convulsões políticas. A Dinastia Qing tinha sido deposta por uma revolução democrática em 1911, nove anos antes do seu nascimento. Contudo, passado cinco anos esta democracia viria a soçobrar e a transformar-se numa espécie de ditadura militar e, o período entre a década de 20 e a de 40 foi marcado por um aumento de violentas lutas pelo poder de controlar e remodelar a China. Estas lutas culminaram na sangrenta Guerra Sino-Japonesa e na guerra civil entre os Nacionalistas, de direita, e o Partido Comunista Chinês. Enquanto muito escritores consagrados responderam a estes conflitos reafirmando o seu esquerdismo e escrevendo sobre ideais como a Nação, a Revolução e o Progresso, Chang focou-se num tema mais mundano, como as interacções e as relações entre os homens e as mulheres. Cuidado com a Luxúria, é disto o exemplo máximo e, uma das poucas obras onde ela deixa a política conduzir a história. Parece ter sido a resposta de Chang a quem a criticava por tratar a guerra de forma demasiado banal.

Escolhi cinco frases do livro para partilhar com os meus leitores, que passo a citar:

– Se uma mulher não conquistar a admiração nem o amor dos homens, também não será respeitada pelas mulheres.

– Quando te ris, o mundo ri contigo. Quando choras, choras sozinho.

– A fotografia é a concha da vida. O tempo passa, devoras o interior e só tu conheces o seu verdadeiro sabor. A concha vazia é o que sobra para mostrares aos outros.

– Adoro o dinheiro e nunca compreendi que mal pode ele trazer. Nunca ninguém me demonstrou a sua iniquidade, fui-me sempre apercebendo como o dinheiro é bom.

– A Humanidade é o livro mais interessante que existe, nunca acabarás de o ler.

14 Set 2016

Bela e casta será a esposa do cavalheiro 美

O cisne crocita no banco de areia;
Bela e casta será a esposa do cavalheiro

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste poema de amor tem quase 3.000 anos e está incluído no Livro das Odes, um dos Quatro Livros e dos Cinco Clássicos editados (leia-se: censurados) por Confúcio. Confúcio dedicou a vida a explicar ao mundo a importância do carácter e da moralidade na vida do povo chinês. E no fim de contas, damos mesmo importância.
A China foi através dos séculos a casa de uma miríade de mulheres belas e, muitos e diferentes padrões de beleza foram eleitos pela amplitude dos seus conceitos estéticos. Algumas mulheres são louvadas pelos dons no canto e na dança, outras pela natureza virtuosa e ainda outras pela habilidade na intriga política.
Xishi 西施, Wang Zhaojun 王昭君, Diaochan 貂蝉 e Yang Yuhuan 杨玉环 são as chamadas Quatro Beldades, quatro mulheres ancestrais que se destacaram por terem sido “Beldades a Bem do Povo”.
Hoje em dia são ainda recordadas pelo papel significativo que tiveram na História. Quando o Estado de Yue estava na iminência de ser atacado pelo Estado de Wu, Xishi aceitou a missão de seduzir o rei de Wu e induziu-o a mandar matar o seu comandante. O seu patriotismo ajudou Yue a vencer Wu. Diaochan é uma personagem ficcional dos Três Reinos. Ela derrotou um senhor da guerra, um traidor, atraindo-o para uma armadilha e garantindo assim a salvação do seu povo. Wang Zhaojun ofereceu-se para casar no Norte com o bárbaro Khan para garantir a paz do seu povo e, finalmente, Yang Yuhuan enforcou-se para parar um motim.
Estas mulheres foram heroínas, mas acima de tudo, foram figuras trágicas. Os chineses choraram por elas e admiraram-nas por terem sido “boas mulheres”, e uma boa mulher chinesa caracteriza-se ou pelo seu heroísmo, ou pela sua amarga solidão.
A concepção estética chinesa privilegia, mesmo hoje em dia, a virtude sobre a aparência.
Não menos belas eram Daji 妲己e Baosi 褒姒. Mas estes dois nomes provocam aversão e não admiração. Daji, concubina e cúmplice do rei tirano Zhou de Shang, foi cruel para o seu povo. Baosi, foi concubina do rei You de Zhou, e ficou conhecida por raramente sorrir, o que despertava no rei o desejo de a fazer feliz. Um dia o rei ordenou que se acendessem fogos de alerta no cimo dos postos defensivos, enviando aos seus duques um sinal falso de invasão inimiga. Os duques, acompanhados dos seus exércitos, precipitaram-se para a capital onde acabaram por perceber o logro. Baosi estava muito divertida com o caos que tinha causado e, sorria. Mais tarde o inimigo lançou efectivamente um ataque, mas porque o rei, como Pedro, tinha gritado “lobo”, os duques ignoraram os fogos de alerta e o rei acabou por ser morto.
Estas duas mulheres são consideradas a escória das suas nações e dos seus povos. Não são certamente “Beldades a Bem do Povo” e nem chegam a ser uma boa diversão.
Do ponto de vista etimológico, o caracter chinês para beleza é 美 – que é composto por duas partes: 羊 + 大— que quer dizer literalmente “grande ovelha”. Este caracter na sua forma original poderia querer dizer “um sabor delicioso”. Confúcio não se deu ao trabalho de nos explicar.

7 Set 2016

A antiga China e a Dama de Hongshan

Dama de Hongshan é o nome que Michael Du, antiquário e coleccionador de renome a viver actualmente no Canadá, dá a si próprio. Há alguns dias atrás falámos ao telefone e discutimos a sua grande obsessão: a Cultura Hongshan

JOY: O que é a Cultura Hongshan?
MD: É uma cultura neolítica do Nordeste da China. Foram encontrados locais com vestígios da Cultura Hongshan numa zona que se estende desde a Mongólia Interior até Liaoning, datados do período compreendido entre 4700 e 2900 AC. Nestes últimos 20 anos, tenho vindo a dar a volta ao mundo. Já visitei mais de 40 países e regiões da Ásia, África, América Latina, Estados Unidos e outros continentes. De momento tenho mais de 10.000 peças que são verdadeiros tesouros culturais de períodos muito antigos da China. Sou louco? Acho que sim, mas um louco com curiosidade intelectual e o coração no sítio certo.

JOY: Como é que iniciou a colecção de artefactos Hongshan?
MD: Foi em Agosto de 1993, num dia que nunca vou esquecer. Estava em Trieste, na Itália, para visitar uma colecção de mobiliário da antiga Dinastia Qing; tenho um negócio de mobiliário antigo. O proprietário mostrou-me alguns exemplares de mogno muitíssimo originais, com preços proibitivos. Mas, sem me dar conta, o meu olhar foi atraído pela estranha forma de um objecto. Era, só soube mais tarde, um dragão de jade em forma de C, algo característico da Cultura Hongshan. Examinei o material, a densidade, a cor e o modelo. Claro que era chinês, mas de que período? Já tive nas mãos tantos objectos de jade, mas nunca tinha visto nada de semelhante na vida! Este dragão em forma de C era-me completamente estranho e deixava-me confuso…O proprietário conseguiu adivinhar os meus pensamentos. Antes que eu conseguisse formular uma pergunta que fizesse sentido, respondeu-me: “Dragão Hongshan. A Cultura Hongshan é fascinante.” Fiquei de cara à banda. Era a primeira vez que ouvia um estrangeiro mencionar o termo Hongshan! Compreendi naquele momento que estava a segurar o pai de todos os dragões. Fiquei sem palavras por alguns momentos e senti-me envergonhado da minha ignorância. Acabei por conseguir dizer: “Compro-o.” Não regateei, nem olhei para mais nada. Vim imediatamente para casa e consultei alguns peritos, mas ninguém sabia nada sobre este dragão chinês com 20 cm de altura. O acesso à informação era muito mais difícil na altura. Começou então o meu périplo por bibliotecas e livrarias em busca de informação em jornais e revistas da especialidade. Sentia-me um verdadeiro detective Hongshan. Ao tentar compreender o significado meu dragão em forma de C, acabei por ficar absolutamente convencido que a Cultura Hongshan é a verdadeira origem da civilização chinesa. Embarquei numa aventura excitante e de grande valor cultural, para um coleccionador como eu.

JOY: Sr. Du, por favor, explique-nos como é que foi fazendo a sua colecção. Como é que conseguiu reunir 10.000 peças antigas de bronze e de jade?
MD: Há mais de dez anos, soube que um coleccionador americano queria vender os seus objectos porque já tinha muita idade e estava doente. Passei uma semana com ele, a tentar convencê-lo de que eu era a pessoa certa. Acabei por comprar-lhe a colecção, com cerca de 1.000 artefactos Hongshan, por um preço razoável. Os primeiros objectos Hongshan de “jade negro” eram cobertos por uma liga muito antiga, através de uma tecnologia que estudiosos e historiadores nunca conseguiram compreender nem explicar. Daqui resultou que coleccionadores sul-coreanos começaram a comprá-los em grandes quantidades, vendendo-os posteriormente como objectos preciosos, mas sem os identificarem. Muitos locais Hongshan foram pilhados e inúmeros artefactos muito antigos saíram do País. É um duro golpe na nossa herança cultural e magoa-me imenso. Mas eu estou sempre atento às novidades e aos mexericos e, mal apanho qualquer sinal, viajo até onde for preciso para ver as peças. Se tiver a certeza que são objectos genuínos, estou disposto a pagar o dobro do preço de mercado. Tenho hoje em dia na minha colecção muitas peças absolutamente únicas.

JOY: Corre muitos riscos e investe imenso para actualizar a sua colecção. Quais são as suas metas?
MD: Disse que sou intelectualmente curioso e é verdade. De momento, pretendo publicar uma edição de luxo com ilustrações de 600 artefactos Hongshan, todos pertencentes à minha colecção. Esta obra de referência pretende galvanizar amigos, colegas, investigadores e amantes da Cultura Hongshan, provenientes do nosso circulo internacional. Podemos chamar-lhe a “Bíblia Hongshan”. Entretanto estamos a preparar a abertura de um museu privado em Xangai, que deverá acontecer em breve. Vejo-me a mim próprio como um devotado fã dos Hongshan, como um promotor e um anjo da guarda.

Julie O’yang

13 Jul 2016

O “monstro” 独秀

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]obre este homem, Mao Tsé Tung escreveu: “Assim que aprendemos a escrever em chinês vernáculo, ele ensinou-nos que era essencial usar a pontuação e não se cansava de repetir que a pontuação tinha sido uma grande invenção. Foi também através dele que soubemos da existência de “uma coisa” chamada Marxismo. A revista que dirigia, o Magazine da Nova Juventude, abriu as portas ao movimento 4 de Maio, que por sua vez conduziu à criação do Partido Comunista Chinês. O seu impacto era tal que, podemos mesmo dizer que fundou o Partido sozinho. Foi o meu professor e eu fui seu aluno.”
O seu nome era Chen Duxiu 陈独秀 (1879-1942).
A fundação do PCC é celebrada a 1 de Julho, desde a realização do primeiro Congresso do Partido em Xangai, em 1921. Este ano o seu nome foi mencionado numa das páginas oficiais do Partido: “Chen Duxiu, um antigo chefe do Partido, foi eleito líder por cinco vezes. Por favor, reparem no adjectivo: antigo.
Chen Duxiu, fundador do Partido Comunista Chinês e o seu primeiro secretário-geral, não esteve presente no primeiro Congresso do Partido. No entanto, quando olhamos para a História da China moderna, especialmente a História cultural e política, percebemos que Chen foi uma revelação bombástica para os intelectuais do seu tempo. Era admirado por amigos e inimigos e reconhecido como um pensador original e um homem corajoso, o seu carácter avesso a regras não deixou que fosse esquecido. O avô, responsável pela sua educação formal nos clássicos chineses, disse um dia: “Este rapaz nunca vai amadurecer, nunca se fará um homem. Vai ser pesadelo para todos nós. Um monstro!”
Tornou-se realmente um monstro que defendia novas ideias. Chen acreditava que, para estas ideias se imporem e frutificarem numa sociedade feudal, era necessário abater parte dos seus alicerces sem dó nem piedade. Defendeu o parricídio e rejeitava o Confucionismo de forma radical. Chegou a escrever na sua biografia: “Há muito tempo atrás, eu fui uma criança sem pai.”    
A suas ideias sobre a democracia nasceram num contexto de grande erudição. Era fluente em Japonês, Inglês e Francês, as línguas estrangeiras pareciam libertá-lo. A sua escrita era inteligente, incisiva, inovadora e profundamente política. Extrovertido, cultivava paixões e ódios e era muitíssimo obstinado nas suas crenças. Defendia que um homem que persegue um ideal tem constantemente de duvidar de si próprio. É possível que tenha sido o único pensador consciente da China moderna!
Em Janeiro de 1919, publicou a primeira edição do Magazine da Nova Juventude e deu início ao Novo Movimento Cultural (Movimento 4 de Maio). Chen deixou escrito: “Estamos convencidos que o Sr. Dee e o Sr. Sai (abreviaturas chinesas para Democracia e Ciência), são os únicos cavalheiros que nos podem guiar política, moral e ideologicamente. Devemos apoiar estes cavalheiros e combater uma sociedade e um governo opressivos. Devemos defender o Estado de Direito… se a China se quiser afirmar a nível mundial, os cidadãos têm de ser autónomos. Ter uma personalidade independente é sinónimo de liberdade. Não obedeçam a ordens de ninguém, não deem ordens a ninguém. Temos de ser os senhores do nosso próprio País.”
Hu Shi, seu contemporâneo, escreveu: “A única forma de termos democracia é termos democracia.” Chen Duxiu percebeu a ideia como ninguém. Também acreditava na democracia na China como ninguém. Morreu sem nunca se ter submetido aos compromissos e às regras do Partido.
Hoje prestou-lhe a minha homenagem. Que a estrela do verdadeiro pensador brilhe para sempre!

Julie O’yang

6 Jul 2016

Stephen Hawking, aliens e clássicos chineses 中国古典文学与外星人

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] semana passada o meu lado europeu esteve absorvido com os debates deprimentes sobre o Brexit. No entanto, o meu lado chinês exultou com duas notícias vindas do meu País natal. Ambas demonstravam o empenho da China na procura de E.T.s.
No início da semana, o canal CCTV mostrou as fotos de um enorme telescópio de abertura esférica, com um prato de 500 metros de diâmetro, colocado no cimo de uma montanha na província de Guizhou. As instalações ocupam uma área equivalente a 30 campos de futebol, num perímetro de 1.6 quilómetros. Desde 2011, foi investido no projecto um total de 1.2 biliões de yuans. Ligado a um dos mais potentes computadores astronómicos, o Sky Eye 1 天眼 1, o rádio telescópio mais sensível do mundo, deixou a China mais perto de um sonho há muito ambicionado, a demanda por vida extra-terrestre através do espaço sideral.
A segunda notícia falava sobre o fim provável da exclusão da China da ISS (International Space Station), que vigora desde 2011 (por razões de “Segurança Nacional”, é a desculpa formal). Se as políticas terráqueas tiverem algum significado nas esferas celestes é bom ficar a saber que este mês, a Agência Espacial Chinesa e o Comité das Nações Unidas para os Assuntos do Espaço Exterior (UNOOSA) anunciaram uma parceria que permitirá aos cientistas de Países membros das Nações Unidas a realização de experiências e o envio de astronautas para a estação espacial chinesa, a partir de 2020.
Gostei do que li. A escritora que há em mim começou logo a brincar com as palavras e a criar metáforas alusivas à situação. Dei comigo a pensar que, de facto, a China por tradição procura identificar os territórios situados entre a ciência e o pensamento. A propósito, vale particularmente a pena mencionar dois clássicos da literatura.
O Guia das Montanhas e do Mar (山海经), de autor desconhecido. A maioria dos teóricos defende que esta colecção de 18 livros não foi escrita por uma só pessoa. O mais provável é ser a mais antiga colaboração colectiva, uma espécie de wikipédia da altura, que permitia que as pessoas comuns fossem acrescentando conteúdos ao longo dos anos, possivelmente desde a Dinastia Xia (2070 – 1600 AC) até à Dinastia Jin (265-420 DC). As ilustrações dos textos são a parte essencial da obra. Porque a mentalidade chinesa não procura construir e apresentar teorias precisas, o Guia vale sobretudo como um dos primeiros livros de pintura. Apresenta uma panóplia de criaturas míticas oriundas de uma cosmografia única e muito antiga; fantásticos encontros com aliens têm lugar em montanhas, rios, ilhas e mares alienígenas, num cenário decorado por plantas e minerais exóticos. Ao contrário dos seus congéneres europeus, do mesmo período medieval, as criaturas do Guia não são tratadas como figuras alegóricas, mas sim como entidades reais inseridas na paisagem e, é preciso salientar, este manual era originalmente um guia para viajantes. Contem algumas passagens indecifráveis que podem ser lidas como literatura nonsense, ou será que eram resultado dos efeitos de uma curvatura do tempo-espaço?!
Por puro acaso, – ou se calhar não, quem sabe? – em Abril, Stephen Hawking abriu uma conta no Weibo, a versão chinesa do Twitter. Para estabelecer contacto com os internautas chineses, Hawking utilizou uma das minhas histórias favoritas de sempre, que pertence a um outro clássico, Mestre Zhuang 庄子. Hawking escreveu “Mestre Zhuang sonhava transformar-se em borboleta – talvez por ser um homem que amava a liberdade. Eu posso sonhar com o Universo e depois ficar a pensar se o Universo sonha comigo.” Hawking comunicou com sucesso as suas dúvidas sobre a forma como a realidade se abatia sobre um antigo filósofo e cosmologista chinês, ligando a filosofia oriental e a ciência ocidental de uma forma contemporânea e não hierárquica. Conseguiu reunir mais de um milhão de seguidores, logo nas primeiras horas. Actualmente a sua base de fãs já atingiu os 3.4 milhões. Um fã chinês respondeu-lhe e falou sobre uma nova teoria do design que o levava a concluir que o Universo na sua globalidade é uma espécie de borboleta.
Master Zhuang é provavelmente a minha melhor descoberta de sempre dos antigos clássicos.

Julie O’yang
29 Jun 2016

Boy: patriota ou traidor? Em memória do 4 de Junho de 1989 祖国的杂种

Julie O’yang

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]abem quem são os jovens da fotografia? Espero que algum dos meus amigos chineses reconheça nesta foto um dos seus antepassados e que fique orgulhoso de partilhar convosco uma estória há muito esquecida de um destes “boys”.
Tudo começa num jogo de basebol, há 130 anos nos EUA. Este jogo ficou na História por ter sido ganho por uma equipa de jovens tímidos, vindos de um País muito, muito antigo: a China. As crianças da foto tinham, entretanto, crescido e eram, ao tempo, jovens que viviam na América há mais de 10 anos.
A foto foi tirada em frente do edifício da Shanghai Merchants & Steamship Company, pouco antes da viagem que os levaria a atravessar o Oceano Atlântico. Estas crianças tinham em média 12 anos de idade e sobre os seus pequenitos ombros já se fazia sentir o peso da responsabilidade. Nos seus olhos podemos adivinhar o medo e a curiosidade por aquilo que os esperava no Novo Mundo. Quando pisaram pela primeira vez solo estrangeiro, usavam as longas vestes Manchus e saudaram as suas famílias de acolhimento com um tímido dagong (que sejas bem-sucedido). As crianças tinham sido enviadas numa missão que ficou conhecida como: fuguoqiangbing (富国强兵). (Tornem o nosso País próspero e as nossas Forças Armadas eficientes!), quatro caracteres que representam a essência da luta da China moderna, desde essa altura até aos nossos dias.
A seguir foram distribuídos por diversas casas na Nova Inglaterra. Mais de 40 famílias americanas acolheram os jovens chineses, que rapidamente se adaptaram ao exotismo de uma nova vida. Com esforço ultrapassaram a barreira da língua e cada um deles veio a ser o melhor da sua classe. Os adolescentes chineses acompanhavam os seus pares na patinagem, na dança e no basebol e, mais importante do que tudo, passaram a pensar em inglês. Tudo o que era novo passou a ficar inscrito no seu ADN. Quando somos muitos novos todas as experiências têm um impacto tremendo. Os jovens adaptaram-se, não só, à cozinha estrangeira, como e, sobretudo, aos novos valores! Mais tarde foram estudar para as Universidades de Harvard, Yale, Columbia e para o MIT. Passaram a viver lado a lado de algumas celebridades do seu tempo, como por exemplo, Mark Twain. Os valores e os costumes chineses deixaram de estar presentes na sua formação.
Quando finalmente foram obrigados a regressar a casa, prontos para dar o seu contributo e cumprir o dever de cidadãos exemplares, foi com relutância que se envolveram nos meandros da política chinesa. O dilema pessoal destes jovens passou a ser o dilema da Nação: sou patriota ou traidor? As suas histórias pessoais acabaram por sofrer diversas reviravoltas, onde beleza e tragédia andaram de mãos dadas. No fim das suas vidas, cada um dos protagonistas desta foto a preto e branco continuou a preferir que lhe chamassem: boy.
Os episódios históricos na China não costumam ter um final feliz. A vida na China moderna parece-me sofrer uma oscilação febril entre avanços e recuos. É sabido que alguns dos boys ficaram nos EUA e que nunca mais regressaram a casa. Alguns deles não permitiram que os seus descendentes aprendessem chinês.

8 Jun 2016

Cinema na China | “Palácio de Verão” 性爱与政治:重访电影《颐和园》

Julie O’Yang

Palácio de Verão é o quarto filme do escritor-realizador Lou Ye. Embora seja um nome menos conhecido do cinema chinês, Lou é, sem dúvida, o realizador que melhor domina a narrativa do enredo, destacando-se também pela escolha de vários temas polémicos que versam a sexualidade, o género, as obsessões e a política.
Palácio de Verão conta a história do encontro de um rapaz e de uma rapariga. A rapariga, Yu Hong, cresceu numa cidade do Nordeste, perto da fronteira com a Coreia. Admitida numa prestigiada universidade da capital chinesa, a jovem e independente heroína está determinada a viver intensamente e a realizar os seus sonhos. Numa festa disco no campus, Yu Hong encontra Zhou Lei e, não é preciso muito, para que os dois percebam que foram feitos um para o outro. Mas, deve-se saber de antemão, esta não é só uma história de amor. Após conturbadas e inebriantes sequências de sexo, o filme envereda por um registo mais tranquilo. Como pano de fundo temos o clamor da China dos anos 80. Num estilo um tanto ou quanto anárquico, este levantamento não deixou de ter sido corajoso e cheio de promessas. Um tempo de reformas, onde aspirantes a intelectuais desfrutaram de um curto período de liberdade de expressão. No entanto a idade de ouro da democracia chinesa estava prestes a sofrer um golpe trágico quando o Estado promoveu o terror no Verão de 1989. A 4 de Junho, o Massacre da Praça de Tiananmen marcou o ponto de viragem da história da China moderna. Neste argumento, quer o sexo quer a política são levados ao rubro, mas, no fim, das chamas restam apenas cinzas. Sobra uma nação privada de esperança às portas do advento de uma nova era, a do capitalismo “Made-in-China”.
No entanto o filme não se resume só ao amor e à política. A segunda metade aborda questões da família, que por sua vez são colocadas num contexto histórico. Lou Ye capta um período de transformações, durante o qual as bicicletas que deambulavam pelas ruas de Pequim foram substituídas por corridas de Volkswagens e as cartas de amor por emails. A nostalgia dum mundo para sempre perdido insinua-se através de uma atmosfera por onde perpassa uma estética feminina e nos corta a respiração.
Palácio de Verão tem momentos chocantes quando os civis são abatidos pelas Forças Armadas. À semelhança da heroína da história a China parece perdida num limbo, sem objectivo.
Veja o trailer aqui: https://bit.ly/1ZwahkX

Palácio de Verão
140 min Drama | Romance
Falado em: Mandarin | Alemão

6 Abr 2016