Paulo José Miranda Artes, Letras e IdeiasA maldição de Salieri Andrzej Górzki é professor de Antropologia Cultural na Universidade de Lodz e autor do ensaio «O Lado Solar de Salieri». Durante os últimos anos têm-se também destacado como activista dos direitos humanos e dos LGBTI, o que o torna «persona non grata» para o actual governo polaco e presidência. Em Outubro passado, o tribunal constitucional proibiu a interrupção voluntária da gravidez, várias pessoas protestaram nas ruas e isso foi pretexto para a BBC fazer uma entrevista a Górzski. O jornalista fez-lhe a seguinte pergunta: «Neste momento, na Polónia, o aborto é permitido apenas em casos de violação, incesto ou quando a vida da mãe estiver em perigo, foi uma decisão referendada? É esta a vontade do povo?» Ao que o autor de «O Lado Solar de Salieri» respondeu: «O governo polaco e o seu presidente são prepotentes, se a ideia de diálogo é impensável, a de referendo é distópica.» Nessa entrevista, Górzki acusa a Comunidade Europeia de não se interessar pelos direitos dos seus cidadãos, principalmente no tocante às comunidades LGBTI. «Porque», disse Górzki «não são apenas cidadãos polacos que estão a ser desrespeitados nos seus direitos, são cidadãos europeus. Nós somos cidadãos europeus. Ainda no ano passado [2020], o Presidente afirmou que a defesa dos nossos direitos [LGBTI] era uma ideologia pior do que o comunismo. Para mim, parece-me claro que a Comunidade Europeia aceita que haja na Europa cidadãos com menos direitos do que outros. Não se pode aceitar que, na Europa, haja pessoas mais europeias que outras. Pelo menos, não deveríamos aceitar.» Quando, em 2017, Andrzej Górzki publica o ensaio chamado «O Lado Solar de Salieri», tornou-se de imediato alvo do «regime» polaco. Górzki nunca chega a citar quaisquer nomes, nunca pessoaliza, embora o governo polaco se tenha sentido atacado, conseguido retirar o livro de circulação e obrigando o autor a pagar uma multa, sem qualquer base constitucional. O ensaio é dividido em três partes distintas. Mas antes avançarmos para o livro, é preciso ter em atenção duas coisas prévias: primeiro, o Salieri de Górzki não é o de Pushkin, embora seja fundado neste; segundo, à personagem de Pushkin, Górski retira-lhe a inveja ou outras fraquezas, ficando apenas aquilo a que o autor polaco chama «capacidade de apreciar o génio que não tem». Aquilo que Górzki pretende é, por um lado, conceptualizar a apreciação e o conhecimento, que são os instrumentos de se poder compreender o génio e, por outro, mostrar como isso pode e deve levar sempre a defender o que mais importa. Porque a tese de fundo do autor é educacional. Posto isto, na primeira parte do livro, Górski introduz a personagem de Salieri como conceito que descreve todo aquele que não é suficientemente estúpido para não dar importância ao génio, nem tão inteligente quanto o génio, apenas o suficiente para entendê-lo, perceber a diferença que há entre ambos e com isso prestar-se a defender aquilo que ele cria. Leia-se o que o autor entende por «estúpido» e por «génio»: «[…] estupidez enquanto incapacidade de entender aquilo que está a ouvir, a ler, a acontecer. A estupidez é a surdez da alma. E surdez é metáfora para incapacidade de apreciar não apenas o que a grandeza humana nos dá, mas também a beleza da natureza e o gesto de que pode conduzir a melhorar a cidade. Génio é a capacidade de acrescentar, de modo radical, beleza, conhecimento ou bem-estar ao mundo.» Quanto a Salieri, e enquanto conceito, escreve: «Se a estupidez ou o génio são incontroláveis, pois ninguém pode fazer nada quando a ser um ou outro, ser-se Salieri depende inteiramente de nós. E quem é este que podemos ser? Aquele que se esforça por ser melhor do que é, a cada dia, a despeito de saber que não pode ser Mozart.» No fundo, Salieri é «[…] aquele que somos. Aquele que aprendeu a conhecer e a apreciar a beleza e o conhecimento, e embora não seja suficientemente inteligente ou genial para produzi-los, consegue defender o génio, ao entendê-lo e promovê-lo. A beleza e o conhecimento são também visíveis no espaço público, na política e na educação. Educar, desde a Antiga Grécia, a par da boa gestão pública da cidade, é a mais bela das actividades humanas.» Estender o conceito de génio à política e à educação e à transformação da cidade foi o que lhe trouxe todos os problemas que tem tido com o «regime». «Salieri compreendeu o génio de Mozart quando mais ninguém o compreendia. Porquê? Porque foi educado para isso. Não se pode ser educado para o génio, mas pode-se ser educado para o entender. Ninguém é educado para a ditadura, mas pode ser educado para a democracia.» Na segunda parte do livro, Górzki afirma que o nosso tempo é o tempo onde já não há «Salieris», apenas estúpidos e raramente génios. O génio tem também uma decadência neste nosso tempo. «O génio hoje é aquele que joga à bola, que apresenta um programa de televisão ou forma um partido de matriz prepotente. […] E a maioria das vezes são os estúpidos a consagrar os génios. Porque o génio do nosso tempo é ter sucesso e falar mais alto e o que a maioria quer ouvir. […] estúpido não é não contrário a não ser eficaz numa profissão ou numa qualquer actividade, mas surdo para a alma, incapaz de se abrir ao que é o belo e o melhor para todos». Na terceira parte do livro, o autor polaco tenta mostrar-nos como Salieri – o Salieri Solar, como lhe chama – nos faz falta e de que modo deveríamos privilegiar a formação de «Salieris» na nossa sociedade. Escreve: «A educação, desde a mais tenra idade, deveria concentrar-se em formar “personalidades Salieri” ao invés de estimular a formarem-se “Mozarts”. Até porque, como já vimos anteriormente [páginas antes, no ensaio], não é possível formar “Mozarts”, apenas aprender a apreciá-los. Mozart pode ser um Hitler, mas Salieri seria sempre um Churchill. Os humanos formam-se.» Infelizmente, este Salieri solar acabou se tornar uma maldição para o autor. Além do livro ter sido proibido, o autor foi atacado na rua por uma milícia de extrema-direita, no mês passado, que gritava «enfia o Salieri no cu», acabando por ser hospitalizado com ferimentos graves. Pouco dias depois, uma jornalista polaca, Agnieska Kapuscinski, escreveu um artigo em que incitava os leitores a partilharem online o texto de Andrzej Górzki, em todas as plataformas que pudessem e em todos os formatos possíveis, não apenas como forma de repor a justiça da proibição inconstitucional do livro, mas principalmente como forma de resistência e de contestação à falta de liberdade e de escamoteamento dos direitos humanos. Começava o artigo com estas palavras: «Não se pode atacar uma pessoa, por não se concordar com o que ela pensa ou de com quem ela fode. O Salieri de Andrzej Górski é mais humano do que aqueles que atacaram o escritor e aquele que lhe proibiram o livro.» Depois, e devido a Andrzej ser também o primeiro nome do Presidente, terminava o artigo deste modo: «Andrzej só há um, Górzki e mais nenhum».