Relógios e a divisão do tempo na China

[dropcap]E[/dropcap]ra tal o desenvolvimento de Macau que em 1586 o Vice-rei da Índia D. Duarte de Meneses a passou a cidade, dando-lhe o nome de Cidade do Nome de Deus na China, assim como proibiu “a entrada na China a outros missionários além dos jesuítas”, segundo monsenhor Manuel Teixeira, que refere terem em Macau todos os frades espanhóis sido substituídos pelos portugueses em 1589.

Para finalizar a História dos relógios como presentes, seguimos usando as informações deste religioso historiador, que refere, Ricci na China tornou-se o deus dos relojoeiros.

Matteo Ricci chegou em Setembro de 1598 às portas de Beijing, mas encontrou um ambiente hostil contra os estrangeiros devido à invasão da Coreia pelo Japão e por isso foi para Nanjing, à espera que o clima na capital desanuviasse. Daí remeteu um memorial ao Imperador Wan Li referindo querer-lhe oferecer um sino que tocava sozinho. O tempo foi passando, até que um dia o Imperador se lembrou da carta escrita por forasteiros e logo os mandou chamar. Ricci e Diogo Pantoja partiram a 18 de Maio de 1600 num junco que transportava mercadorias pelo Grande Canal para a capital, onde chegaram a 24 de Janeiro de 1601 e três dias depois foram recebidos na corte imperial. O Imperador, que já ouvira falar de Ricci, ficou encantado com os presentes. Seguimos aqui a descrição do padre Manuel Teixeira do resto dessa história, “Explicaram então ao que os relógios eram instrumentos que, de dia e noite, davam as horas ou pela campainha, que os tocava, ou pelo mostrador, onde uns ponteiros as indicavam. Todavia, para isso, era preciso que S. Majestade destinasse alguém que aprendesse a tratar deles e que, em dois ou três dias, lhe seria ensinado tudo o que era preciso.

Foram destinados para isso quatro eunucos; mas o imperador Van-li sentenciou: . Os mandarins tremeram e eles, que até ali se opunham a que os Padres se fixassem na capital, eram agora os primeiros a suplicar-lhes que ficassem ali. É que tinham medo de perder a cabeça se qualquer peça se desarranjasse. Como o relógio precisou de várias reparações, os Padres iam à corte fazê-las e entretinham-se com o imperador.”

Os relógios mecânicos eram ainda uma novidade em todo o mundo, sendo normalmente usados os relógios de Água, os de maior precisão. Os relógios de Sol eram comuns e de fácil leitura, enquanto as ampulhetas de areia, as velas e os pauzinhos de incenso, exigiam alguém a tempo inteiro para deles cuidar, pois era preciso serem mudados quando chegassem ao fim.

Nas cidades muralhadas chinesas as portas eram abertas ao amanhecer por oficiais locais com um toque de sino e à noite eram fechadas com uma batida de tambor. Os tambores davam as horas à noite e os sinos durante o dia. O marcar das horas era assinalado com 18 rápidas batidas e 18 lentas. Nas torres do tambor existiam desde a dinastia Song as clepsidras ou relógios de água e mais tarde paus de incenso, para que os toques não se realizassem fora de tempo. Já na dinastia Qing, a noite começava às 19 horas, quando os tambores tocavam por treze vezes, o que correspondia a acertar as horas.

Divisão do tempo na China

Na antiguidade o ser humano descobriu o Tempo através do ciclo diário de dia e noite e logo de seguida, durante o dia pela mudança do tamanho da projecção da sua sombra criada pelo Sol. A necessidade de fixar o Tempo e a sua passagem levou-o a observações mais atentas e se o relógio de Sol terá sido o primeiro instrumento que encontrou, outros foram aparecendo.

“O relógio astronómico inventado na China muito antes da Europa ter descoberto o relógio mecânico no século XVII é considerado por Joseph Needham como o primeiro protótipo de relógio no mundo”, segundo refere Maria Trigoso.

Desde a dinastia Zhou do Oeste (1046-771 a.n.E.), o dia contava com 12 shichen, relacionados com os ramos/raízes terrestres do sistema sexagenário (12 Di Zhi 地支) e adicionado a este talvez ainda antes, na dinastia Shang (1600-1046 a.n.E.), o dia estava já dividido em 100 ke (cem partes), relacionado com os dez caules celestes (10 Tian Gan 天干). Se na dinastia Qin (221-206 a.n.E.) cada dia tinha dez partes, cabendo à noite cinco, já na Han (206 a.n.E.-220) apareceu o geng (a dividir o período nocturno em 5 geng) e o dia passou a estar dividido em 120 ke. Na dinastia Liang (907-923) um dia tinha 96 ke e 108 ke (108 número budista), até que na dinastia Ming, com a chegada dos relógios mecânicos provenientes do ocidente, ficou dividido em 96 ke tornando-se tal oficial na dinastia Qing. Ke Zero caia na meia-noite e Ke 50 no meio-dia, enquanto o início de quatro Ke coincidia com um shichen. Apenas o início de 96 ke precisava de ser anunciado.

Já quanto à divisão do dia por os 12 ramos terrestres do sistema sexagenário, na dinastia Zhou do Oeste o dia contava com 12 shichen, correspondendo o primeiro a Zi Shi, mas tinha também outra denominação, Ye Ban (meio da noite), tornada oficial na dinastia Han; o segundo, Chou Shi ou Ji Ming (canto do galo); o terceiro, Yin Shi, ou Ping Dan (Sol abaixo do horizonte); o quarto, Mao Shi ou Ri Chu (Alvorada); o quinto, Chen Shi ou Shi Shi (tempo para comer); o sexto, Si Shi ou Yu Zhong (próximo do meio-dia); o sétimo Wu Shi ou Ri Zhong (meio do dia); o oitavo, Wei Shi ou Ri Die (após o meio do dia); o nono, Shen Shi ou Bu Shi (tempo de jantar); o décimo You Shi ou Ri Ru (Sol cai dentro da montanha); o décimo primeiro Xu Shi ou Huang Hun (Sol abaixo do horizonte); e o décimo segundo, Hai Shi ou Ren Ding (tempo para dormir). Se até ao início da dinastia Tang (618-907), Zi Shi, pela divisão actual das horas, começava à meia-noite e ia até às duas da manhã, a partir daí, Zi Shi passou a corresponder das 23h à uma da manhã e assim decorria sucessivamente pelos restantes onze shichen.

Na dinastia Song, quando em 1088 Su Sung (1020-1101) criou o seu relógio de água, cada shichen passou a ter duas partes: a primeira era chu e a segunda zheng, isto é, zichu e zizheng, passando assim o dia a estar dividido em 24 partes.

Com a chegada dos relógios mecânicos trazidos pelos jesuítas e o conceito de dia de 24 horas, para distinguirem os dois sistemas, as pessoas chamavam Xiaoshi (Pequeno Tempo) ao dia de 24 horas e Dashi (Grande Tempo) ao dia de 12 shichen e como já desde a dinastia Song cada shichen era dividido em dois passou cada um a ser chamado xiaoshi, correspondendo a uma hora. Assim apareceram os números a denominar as horas. Já quanto aos minutos, eles foram retirados da divisão do dia, que no início tinha 100 ke e mais tarde 96 ke, o que dava para cada hora 4 ke, correspondendo 1 ke a 15 minutos.

Segundo J. Gernet, “os relógios serão uma das primeiras novidades importadas na China pelos jesuítas e Matteo Ricci parece ter-se tornado mais tarde o deus patrono dos relojoeiros chineses: no século XIX era venerado em Xangai com o nome de Bodhisattva Ricci.”

20 Jan 2020

As primeiras embaixadas católicas à China

[dropcap]O[/dropcap] Cristianismo entrou de novo na China em 1583 através do padre jesuíta Matteo Ricci (cujo nome em chinês era Li Ma-tou), a trabalhar no Padroado Português, reinava ainda a dinastia Ming. Longe da memória estavam já os privilégios dos cristãos durante a anterior dinastia, a Yuan dos mongóis. Nos artigos ‘Os primeiros cristãos na China’ e ‘Os primeiros católicos na China’ publicados no HojeMacau a 19 e 26 de Fevereiro de 2016 a História contada leva-nos a deixar aqui um aditamento para a complementar.

O franciscano Frei Lourenço de Portugal em 5 de Março de 1245 foi designado pelo Papa Inocêncio IV (1243-1254) embaixador ao Khan dos mongóis, enquanto outra expedição aos mongóis da Pérsia (os Il-Khan) era feita pelos dominicanos. Na China dominavam já a Norte os mongóis. Frei Lourenço tinha sido ministro provincial da Província de Santiago de Compostela e o Papa nomeou-o Penitenciário Apostólico em S. João de Latrão, passando dois anos como Legado Apostólico no Oriente, durante o conflito entre Roma e Bizâncio. Mas só regressou à Santa Sé em 1248 e assim não foi como embaixador ao Oriente, pois logo em 1245 o Papa enviara à corte mongol o italiano Giovanni del Carpini. Este chegou a 22 de Julho de 1246 à capital Karakorom, onde existia uma tenda a fazer de capela nestoriana. Trazia uma carta para o “Rei e povo tártaro” e vinha negociar com o novo Khan, Guyuk, uma aliança contra o Islão, pois pensava-se ser a campanha mongol contra o Islão. A missão de del Carpini nada conseguiu por não levar presentes e também não prestou homenagem, não se tendo prostrado perante o khan, pois só se prostrava perante Deus. Assim falhou esta embaixada, tal como a de 1252, quando o Rei de França Luís IX mandou o franciscano Guilherme de Ruysbroeck à corte dos Khan, com resultados iguais aos da primeira missão. Chegaram no ano seguinte e encontraram uma grande tolerância dos mongóis à religião, havendo nestorianos, budistas e islamitas na corte.

Os irmãos Pólo, Mafo e Nicolo, o pai de Marco Pólo, encontraram-se com os nestorianos quando chegaram em comércio ao reino dos mongóis. Recebidos por Kublai Khan, o imperador Shi Zu, fundador da Dinastia Yuan, na sua nova capital Khambaliq (Beijing), construída em 1267. O Grande Khan em 1269 nomeou-os embaixadores e partiram para em seu nome pedirem ao Papa o envio de cem sábios, sendo mandados para a China apenas dois dominicanos que nunca lá chegaram.

Em 1286, o Khan da Pérsia, Argun enviou a Roma o nestoriano Bispo Rabban Sauma (Bar Sauma, 1225-1294, mais tarde Vigário-Geral da China, título que recebeu do Patriarca nestoriano de Bagdad, segundo António Carmo) a dizer estar Kublai Khan disposto a receber os católicos.

Franciscanos com os mongóis na China

Meritório trabalho de missionário realizou o franciscano Giovani Montecorvino, escolhido como Legado e Núncio da Santa Sé pelo primeiro Papa franciscano Nicolau IV (1288-1292). Montecorvino partiu em 1291 “cheio de presentes e munido de cartas para o Khan Argun, para o grande Imperador Kublai Khan, para Kaidu, príncipe dos Tártaros, para o Rei da Arménia e para o Patriarca dos Jacobitas. Os seus companheiros eram o dominicano Nicolau de Pistoia e o comerciante Pedro de Lucalongo”, segundo o P. Manuel Teixeira.

Estava investido de toda a autoridade para tratar com o grande Khan, mas ao chegar a Dadu (Beijing) em 1294, ficou a saber ter Kublai Khan morrido e Timur (Imperador Cheng Zong, 1294-1307) sucedido no trono. Este, sem ser Cristão, não pôs obstáculos ao zelo missionário que ali se estabeleceu e pôde-se pregar livremente o Evangelho. Montecorvino em 1300 baptizara já seis mil cristãos quando lhe foi permitida a construção de uma igreja em Dadu e cinco anos depois.

“Em 1305 levantou uma segunda igreja mesmo em frente do palácio do Imperador, juntamente com oficinas e habitações para duzentas pessoas. Aqui reuniu cerca de cento e cinquenta rapazes, de sete a onze anos de idade, ensinou-lhes latim e o grego e estabeleceu as horas canónicas cantadas, como nos seus conventos da Europa, com grande gosto do Imperador, que se deleitava a ouvir as vozes melodiosas das crianças. Eram também estas crianças que faziam o ofício de acólitos, ajudando à missa”, segundo o padre Manuel Teixeira, que refere Montecorvino “familiarizou-se com a língua nativa, podendo assim pregar e traduzir para chinês o Novo Testamento e os Salmos. As maiores dificuldades e obstáculos encontrados na árdua empresa da evangelização da China vieram-lhe da parte dos nestorianos, que então abundavam na China.”

Os sucessos da missionação de Giovani Montecorvino levaram o Papa Clemento V (1305-1314) a enviar sete bispos franciscanos encarregados de o consagrar pela bula Summus Archiepiscopus, mas a Dadu só chegaram três, Geraldo, Peregrino e André de Perúgia. Estes em 1308 nomearam-no Arcebispo de Pequim e Patriarca de todo o Oriente e rumando para Quanzhou sucederam-se uns aos outros como bispos na Sé de Zaiton, estabelecida por Montecorvino. Em 1312, o Primaz de Pequim e de todo o Extremo Oriente recebia mais três novos prelados franciscanos e instituía novas dioceses, para além das já existentes. Depois de trinta e oito anos de vida apostólica na China, Giovanni Montecorvino, com 81 anos, morreu na sua sede Arquiepiscopal de Pequim em 1328. Dez anos após a sua morte, o último dos soberanos da dinastia mongol Yuan, Shun Di (1333-1368), enviou ao Papa uma embaixada, solicitando o envio de mais missionários e um outro legado pontifício. Apelo correspondido, pois o Papa Bento XII nomeou João de Marignoli legado pontifício, seguindo com ele mais vinte e dois padres, que chegaram em 1342 a Dadu, após uma viagem de quatro anos. Mas Marignolli, apercebendo-se que os mongóis nunca conseguiriam conquistar a estima das populações que ocupavam, regressou à Europa em 1345.

Então, o Papa Inocêncio VI ordenou ao superior dos franciscanos o envio de missionários para a China, sendo nomeados três bispos para a Sé de Dadu, mas nenhum aí chegou.
O Khan da Pérsia, Timur (1336-1405) em 1362 começou a perseguir os cristãos, levando à dispersão destas comunidades para a Índia do Sul. Quando o católico quarto bispo de Quanzhou, Giacomo da Firenze foi martirizado em 1363, encerrou-se mais um ciclo da evangelização cristã na China.

Na China, a queda da Dinastia Yuan deu-se em 1368 e com a chegada dos sedentários chineses Han, que formaram a Dinastia Ming, os cristãos saíram do país e acompanharam os mongóis para as terras do Norte.

Durante a Dinastia Yuan, os franciscanos converteram mais de trinta mil chineses, maioritariamente de etnia mongol e como os católicos foram seus protegidos, quando a Dinastia Ming se sentou no trono da China proibiu o Cristianismo. Só duzentos anos depois, em 1583, o jesuíta Matteo Ricci conseguiu reestruturar a missão Católica na China, esquecido que estava o período de terror na qual a população chinesa Han vivera, pois classificada no nível mais baixo do escalão social mongol.

22 Jul 2019

Confúcio e a Questão dos Ritos

[dropcap]O[/dropcap] jesuíta Matteo Ricci (1552-1610) numa primeira abordagem interpretou como supersticiosos os ritos chineses, mas para os compreender melhor estudou a doutrina de Confúcio, na qual se baseava a sociedade chinesa e o seu sistema político com os princípios de Ordem, Paz e Harmonia.

O nome de Confúcio foi dado por Ricci a Kong Fu Zi (孔夫子, 551-479 a.n.E.), mestre Kong (Kongzi), que nascera no Período Primavera-Outono (770-476 a.n.E.), havia dois mil anos. Viveu durante a Dinastia Zhou do Leste, quando centenas de pequenos reinos até então federados começaram a ser conquistados e grande instabilidade surgia pelas contínuas guerras entre os reinos cada vez maiores e mais fortes. Sem governantes capacitados para esse novo espaço de gestão estratégica, apareceram muitos ilustrados mestres, entre eles Kongzi, que ofereciam os seus conhecimentos, colocando-os ao serviço do rei para a governação.

Kongzi reorganizou os conhecimentos antigos e sendo um grande educador transmitiu-os aos discípulos. Incutiu o respeito pelos Antepassados, como modo de vida propunha o aperfeiçoar da ética pela rectidão, benevolência e virtudes. Como filosofia, o caminho da sabedoria prática pela harmonia na vida social, na educação e na política, atribuindo grande importância à Paz, Harmonia e Ordem como princípio do bem governar e organizar o Estado. Após a sua morte em 479 a.n.E., os ensinamentos, apesar de no tempo terem passado à margem, tiveram seguidores confucionistas, administradores exímios e poderosos. Em 213 a.n.E. boa parte dos escritos foram destruídos pelo fogo, mas reproduzidos de memória perpetuaram-se na sociedade chinesa a partir da dinastia Han (206 a.n.E-220).

Kongzi advogava o conceito de Harmonia: um Universo ordenado, em que o ser humano deve procurar manter as relações harmoniosas com a Natureza, consigo mesmo e com o próximo.

Regulou as relações humanas, para as quais encontrou cinco fundamentais: soberano e súbditos, pais e filhos, marido e mulher, irmão mais velho e os mais novos e entre amigos. “Observados os deveres entre uns e outros há harmonia; de contrário, reina a desarmonia. A relação mais importante é a do pai e filho e a virtude central que a governa é a piedade filial (孝, hau). Sobre esta virtude e as que a acompanham – obediência, respeito e serviço – construiu-se a estrutura da sociedade chinesa.” Entre aspas está o que creio ser do Padre Benjamim Videira Pires, mas poderá ter outro autor e por esta falta me penitencio e agradeço a quem corrija e nos desfaça tal dúvida. O artigo a partir daqui está estruturado sobre esse texto, de onde provêm as citações, pois creio merecer o assunto importância suficiente para ser publicado.

O kau-tau nos ritos

“A piedade filial não deve cessar com a morte dos pais; o filho deve continuar a servi-los como se vivessem, e este dever estende-se a todos os antepassados da família. Confúcio ao estender a piedade filial aos mortos fomentou essa virtude em vida”, levando as acções a serem realizadas como mostra de respeito aos antepassados e desejo de alcançar as suas perfeições com a ajuda do exemplo, imitando-os; – a melhor maneira de honrar a família.

Em memória dos Antepassados realizavam-se rituais nas casas onde se encontravam as tabuletas em madeira inscritas com os nomes dos defuntos antepassados masculinos, pai, avô e bisavô, pois chegando a trisavô passava a tabuleta a ter direito a constar no Templo de Família, até entrar ao fim de algumas gerações no dos Ancestrais. Às tabuletas dirigiam-se expressões de reverência e respeito, num ambiente com flores, velas, incenso, pois a intenção é “arranjar um certo lugar ou termo para onde possam elevar as suas mentes; e para o qual, como para uma pintura, possam dirigir as costumadas honras, como se eles estivessem presentes.” Nesta cerimónia fazia-se “o kau-táu (bater cabeça), em que uma pessoa se ajoelha e inclina profundamente até tocar com a testa no solo. É o costume chinês do respeito: nove prostrações ao trono nas recepções imperiais; prostrações nos tribunais perante os magistrados e dos filhos perante os pais e sogros. Assim, nada há de religioso nas prostrações nos funerais diante do caixão e não se podia afirmar que se tratava de adoração dos mortos.”

Tudo isto levou Ricci a modificar a primitiva opinião: “o que ao europeu parecia superstição e adoração, para o chinês era apenas uma expressão simbólica da piedade filial. O facto de usarem as mesmas cerimónias para os vivos levava a crer que não se tratava de actos religiosos quando aplicados aos mortos. Tal era o caso da queima do incenso (…). As pessoas educadas costumavam receber os hóspedes com incenso, que era parte do cerimonial da etiqueta, que dava graça e harmonia às relações sociais, sendo um sinal de respeito. Não havia, pois, razão para lhe dar um significado religioso quando era usado nos funerais, perante as tabuletas ou nas salas de Confúcio.”

Após longas discussões com os amigos chineses, Ricci concluiu nada haver de idólatra nos ritos ancestrais nem talvez de supersticioso e “submeteu estas opiniões a Valignano, que as discutiu com os seus consultores. A conclusão foi ser permitido participar nos ritos solenes em honra dos antepassados da família com a condição de não se queimar o papel-dinheiro, mas não era permitido tomar parte nas cerimónias solenes em honra de Confúcio com o sacrifício duma vítima, porque, segundo dizia Furtado, (Cit. por Dunne, Generation of Giants).” Em dias prescritos pelo ritual, com aparência de sacrifícios religiosos, oferecia-se aos antepassados um animal (imolado no local), vinho, seda…, seguindo um banquete familiar.

Outras cerimónias os jesuítas permitiam e até observavam. “Por ocasião da morte de alguém, os amigos, que vinham dar os pêsames, envergavam, como luto, uma veste de seda branca; ao entrar no quarto, faziam quatro vezes o kau-t’au diante do defunto; os filhos do defunto repetiam então o mesmo gesto; o visitante, aproximando-se mais do caixão, voltava a fazer a mesma cerimónia.

Os ritos em honra de Confúcio eram apenas praticados pelos letrados e não diferiam no essencial das cerimónias ancestrais,” sendo após a “passagem nos exames feitas prostrações perante a tabuleta de Confúcio numa sala dedicada ao mesmo. Iguais ritos, prostrações e queima de incenso eram observados pelos oficiais e letrados nos dias da lua nova e lua cheia.”

O confucionismo baseia-se nos ensinamentos de Kong Fuzi, reformador que a partir dos ritos dos Zhou reorganizou a ordem da sociedade e estruturou na China o pensamento humano pelos conceitos de virtude, justiça, tolerância e generosidade. Para a sabedoria prática, a importância da Astronomia e na preparação do Calendário, pois qualquer incorrecção perturba o balanço entre o Céu e a Terra.

15 Jul 2019

IC | Lançado livro das dinastias Ming e Qing sobre Matteo Ricci

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Instituto Cultural lançou, em Xangai, um novo livro, intitulado “Documentos Chineses das dinastias Ming e Qing sobre Matteo Ricci”, da autoria de Tang Kaijian, docente da Universidade de Macau. A obra é fruto de uma parceria com a editora de clássicos chineses de Xangai.

Foi padre jesuíta, missionário na China, renascentista, cartógrafo. O homem que nasceu em Macerata, Itália, e que viria a falecer em Pequim, em 1610, deixou uma enorme obra que ainda hoje é alvo de estudos e de compilações. Na China, foi missionário durante o reinado da dinastia Ming, onde tinha o nome chinês de Li Madou, e onde foi o grande responsável pela introdução do catolicismo.

O Instituto Cultural (IC) acaba de publicar, com o apoio de uma editora de Xangai, mais um livro sobre o jesuíta, intitulado “Documentos Chineses das Dinastias Ming e Qing sobre Matteo Ricci”, da autoria de Tang Kaijian, docente da Universidade de Macau.

Segundo um comunicado no IC, trata-se de uma “colectânea de materiais históricos relativos aos estudos sobre Matteo Ricci provenientes de arquivos documentais das dinastias Ming e Qing”, estando dividido em seis partes, com “biografia, prefácio e posfácio, documentos públicos, artigos de opinião, poemas, cartas e artigos variados”.

O livro fala da vida de Matteo Ricci, relatando “acontecimentos concretos da sua vida na China”, além de apresentar “uma compilação do seu pensamento e repercussões e análise da sociedade chinesa”.

O conteúdo da obra inclui “mais de quatrocentos documentos de todo o tipo provenientes de bibliotecas de todo o mundo, de diferentes bases de dados e colecções privadas”. O livro “procura reunir materiais de Matteo Ricci já publicados e traduzidos do italiano e de outras línguas ocidentais com registos do missionário em língua chinesa, a fim de permitir uma compreensão mais clara e precisa de Matteo Ricci e da sua época”, explica o comunicado do IC.

Das dificuldades

Reunir e analisar a obra de Matteo Ricci não tem sido fácil nos últimos anos, como denota o IC.

“Uma dificuldade recorrente no passado era o facto de, por um lado, os académicos do ocidente não terem capacidade de compreender na totalidade e tirar pleno proveito dos materiais de Matteo Ricci escritos em língua chinesa.”

Além disso, “os académicos orientais deparavam-se com os mesmos obstáculos relativamente aos materiais do missionário redigidos em línguas ocidentais”.

Tang Kaijian, o autor da obra, dá aulas no departamento de história da UM, sendo também orientador dos cursos de doutoramento. Dedica-se ao estudo da história de Macau, debruçando-se também sobre a história do catolicismo na China.

O académico já publicou um total de 21 obras e recebeu mais de dez prémios na sua área nas regiões de Cantão, Gansu e Macau. “Graças ao seu notável contributo para o estudo da história e cultura francesas, em 2009 foi galardoado com o título de Chevalier de L’Ordre des Palmes Académiques, sendo o primeiro académico das regiões de Macau e Hong Kong a receber tal honra”, explica o IC.

17 Nov 2017