Rita Taborda Duarte h | Artes, Letras e IdeiasPara lá do horizonte da angústia [dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário, não dos queixumes, mas antes dos temores e inquietações sussurradas pelos livros que me passam pelas mãos. O livro não é simplesmente coisa que se leia com mais ou menos prazer, menor ou maior proveito. Pois sim, meu secretário, eles oferecem-nos resistência: uns são fluidos e deles se sai como se entra, com facilidade relativa, portanto; mas outros carregam material de fibra, de antes quebrar que torcer. Se neles embatermos de chapão, ganhamos mazelas, guardamos marcas, mossas, arranhões; por vezes, cicatrizes que nos atravessam a vida. Arregaçam as mangas da camisa, com olhar enviesado, e sabemos bem que, dali, não escaparemos incólumes ao meliante: esses livros ameaçam-nos, exigem-nos a alma ou a vida: nós damos as duas, embrulhadas, como se fossem uma só, e entregamos, já agora, a bolsa, também. Fazem de nós o que querem, gato sapato. Assim é, tal e qual, meu tão certo secretário. Pois, notai: a minha intenção era aqui confiar-vos mais um livro de poesia, como de uso, mas foram reeditados, de uma penada, num só volume, «Tanta gente, Mariana» e «Palavras Poupadas», de Maria Judite Carvalho. Este punhado de contos ( ou de novelas e vários contos) podem mais do que eu e a minha vontade, pelo que não poderei deixar de vos entregar em confissão, meu secretário, sempre fiel, os padecimentos, sinais, que me provocou o volume. E foram tantos…. Comigo, é certo, ainda assim, os livros não fazem muita farinha. A leitura é uma guerra e eu não sou de tréguas fáceis. Com os demais leitores, correm talvez as coisas de outra feição, que também os há cobardes, cheios de mesuras, punhos de renda e rodriguinhos. Leitores haverá que, mesmo que um livro lhes dispense tratos de polé, e lhes aplique um murro no estômago que obrigue regurgitar a vida, as memórias, as crenças, tudo em borbotão, se deixem ficar, intimidados; e ao livro que os deixou derreados: nem uma página se lhe despenteia, nem um sublinhado a arranhar-lhe as folhas, nem páginas dobradas; sequer capas esfarelando-se nos cantos, a arquejar. Ah, meu tão certo secretário, comigo não: livro com que ande eu à bulha, fica com marcas no corpo, que não sou de apanhar e não dar troco. Mas deitemos água pouca em muito fogo, para um tudo nada mais inflamar. E ensino-vos já aqui de uma penada um método infalível para aferir do gosto literário, sem que a canga da opinião curve os ombros derrotados; sem a necessidade de vos confiar a titubeante tradução frouxa por palavras do prazer de ler (ou da sua dor), sem o uso de uma mancheia de adjectivos puídos, coçados por terem servido de casaca pobre a tantos outros livros. Como fazer fazer prova da marca que nos deixa um um livro, sem gasto de tinta ou saliva, que, ela por ela, são afinal a lã rafada da mesma meada, a farinha agra do mesmo saco. Como fazer a prova de que um livro nos marcou? Marcando-o, também: dobrando-lhe as páginas, sublinhando-o, com resposta viva e rápida a cada estocada, cada golpe que ele nos aplica. Por exemplo, o exemplar desta edição novíssima de «Tanta Gente, Mariana» está feito num oito, como quem diz feito num fole, cada página a sua marca, seja para assinalar uma metáfora certeira, uma descrição, a singeleza de um adjectivo pungente no sítio exacto, a construção de personagens e ambientes tão densos. Livro que nos golpeia assim, tem de receber a paga. Quase só mulheres, tristes até ao imo, tão sós (e tanta gente, à volta, tanta gente), habitam estas páginas massacradas. Como é possível que estas personagens, no fundo nomes grafados numa folha, ganhem tanta força que sirvam de diapasão, modelo amargo, para deformarmos o mundo em torno? Poucos livros comovem como este, mas não pelos grandes dramas, a grande tragédia, ou impossíveis amores, mas pela consciência de que fica sempre dentro do peito um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei de onde, e dói, sabendo bem nós porquê: é, sim, por um fascismo entranhado que ensombra a narrativa, mas não o político, às escâncaras (quando é assim, pressente-se bem, e personagens e leitores, a par, põem-se em guarda); o fascismo que bafeja o livro, e se insinua, nasce dos quotidianos pobremente tristes das personagens, da prática, da vida baça, do dia-a-dia abafado, em que habitam. Um fascismo de costumes bem enraizado no viver das personagens (medo, solidão, vidas sem saída, infelicidades crónicas, bem profundas). E porque são essencialmente mulheres as personagens do livro, esta mesma tristeza atravessando os contos de Maria Judite Carvalho têm «também aquela beleza da tristeza de se saber mulher», como na canção do Vinicius. E angustia esta tristeza branda, mas escavada no peito, sem grandes histórias para contar, só a pequena e aflitiva tortura de se viver… Poucos autores transmitem, como Maria Judite de Carvalho, esta angústia amena que nasce com a certeza de que há sempre ainda mais por onde se sofrer. A amargura triste e mediana é o horizonte das páginas do livro; mas bem se sabe, meu secretário tão certeiro, a linha do horizonte é uma miragem sempre cada vez mais longe. Por mais que se ande e caminhe, fica-se sempre ainda aquém. É que a terra é redonda como o sofrimento: não tem início nem fim. Quase todas mulheres ao longo dos contos: Mariana («Também deste por isso. Há gente que vive setenta ou oitenta anos, até mais sem nunca se dar conta. Tu aos quinze…todos estamos sozinhos, Mariana. Sozinhos e muita gente à nossa volta. Tanta gente, Mariana! E ninguém vai fazer nada por nós. Ninguém pode. Ninguém queria se pudesse. Nem uma esperança.»), ou Arminda, «menina, apesar dos seus quase quarenta anos», ou Emília e também a sua mãe, ou Graça, ou ainda mulheres sem nome, feridas, humilhadas pela vida, desbotadas e incolores: «Era uma mulher alta, muito branca, de fartos cabelos claros, um pouco flácida já e desbotada, incolor, como uma freira reclusa.» Vidas frígidas de mulheres-satélite, gravitando em torno de outros centros, que não elas, ambíguos e à deriva, também, por sua vez; por vezes, esse centro corresponde a um punhado de homens baços, de vidas igualmente turvas e macilentas. Tristes, desfocadas: Armindo, Duarte, e outras personagem, homens, também, sem nome… Que fazer desta comoção tão forte por pessoas de papel, nomes impressos na página que tão bem sabemos não existirem? Sim, tendes razão, meu tão certo secretário: é mesmo assim, a suspensãozinha da tal descrença, consabida, aquele momento em que nos quedamos cegos pelas letras, deixando de as ver, para somente confirmar, lá por trás, o real a desabar. Mas mais amargura provoca este desalento que vem de manso do que grandes tragédias: Aristóteles afinal pouco percebia da poda… é a impressão ao de leve, subtilmente crescente que corrói e leva, sim, à catarse e não necessariamente a anagorisis que conduz ao pathos. Cada personagem de cada história do livro, seu sofrimento, é um poço que se vai escavando cada vez mais fundo. Que dizeis, meu tão certo secretário? Que comecei por insinuar que de pouco servem as palavras estafadas, ou as metáforas, para justificar o apreço por um livro? Que bastaria exibir as marcas que nele deixamos para atestar as marcas que ele nos deixa? E que esta figura de estilo que diz que não vai dizer o que afinal está dizendo é uma espécie de antífrase fácil? Pois sim, tendes razão, que bastaria o regozijo, sem redundâncias, por a editora Minotauro (Almedina) estar resilientemente a reeditar as obras completas de Maria Judite Carvalho. É uma felicidade poder ler esta tristeza mansa e profunda, até ao âmago, que sobrevém aos seus contos. Maria Judite de Carvalho, Obras Completas [Tanta gente, Mariana/As palavras Poupadas], Lisboa, Minotauro, 2019