A visibilidade trans

As mulheres trans são continuamente excluídas e discriminadas. A probabilidade de um adolescente trans desenvolver ideação suicida, ou tentar o suicídio, é de 5 a 7 vezes maior ao de um adolescente heterossexual e cisgénero, isto é, que se identifica com o género designado à nascença. A discriminação está no acesso ao trabalho, na educação ou na saúde. Uma discriminação estrutural que retira espaço ao direito de se ser trans.

No dia 19 de Janeiro, no Teatro São Luiz em Lisboa, uma mulher trans assaltou o palco. Em cena estava uma peça com duas personagens trans em que uma era representada por uma actriz trans, e a outra, a personagem principal, por um actor cis. A Keyla Brasil num acto de coragem saltou para o palco e conseguiu trazer ao holofote teatral uma tendência discriminatória e de exclusão, que ainda não tinha entrado no debate público: as histórias e narrativas trans precisam de ser contadas pelos corpos trans, até nas artes performativas. A produção da peça vai agora contratar uma actriz trans para ser a personagem principal.

Uns aplaudiram a coragem. Foi uma batalha vencida pela representatividade e visibilidade que não descura a reforma necessária no processo de selecção de artistas. Outros mostraram indignação pela forma como esta batalha foi ganha. A Keyla apareceu no palco semi-nua, expondo toda a violência a que é diariamente submetida. Falou do sexo oral que faz em troco de dinheiro, pelas poucas oportunidades no mundo do trabalho, falou da arma que lhe apontaram à cabeça, falou dos assassinatos constantes, violentos, nas tentativas de apagamento que ela, e muitas outras, estão sujeitas. Apontou o dedo ao homem que foi escolhido para o papel e quis responsabilizá-lo pelo apagamento das vivências e narrativas trans.

A forma poderosa como esta batalha foi ganha, ainda que falte travar uma guerra, foi alvo de intenso escrutínio público. Muitos queixaram-se que foi um método “violento”, apesar de concordarem com a premissa de base: se não é com a história de uma mulher trans que o corpo e a alma trans têm visibilidade, então quando? Muitas activistas trans já tinham contactado a companhia de teatro exigindo respostas e mudança. Sugeriram boicotes e nada aconteceu.

A mudança só veio depois, com a acção “violenta” da Keyla, carregada de tensão, antagonismo e conflito daquele que provoca desconforto. Mas esta “violência” é só um sintoma, uma resposta à violência que é vivida. De um lugar onde a outra realidade mundana nada se assemelha porque se vive distante. A “violência” de ver uma peça de teatro abruptamente terminada é que parece mais importante para os proponentes desta discussão.

Quando os actores cisgénero recebem papéis trans, eles encaram-nos como o desafio da sua carreira. Jared Leto ganhou um Óscar ao fazê-lo. Mas esta não é uma condição de desafio que possa ser apropriada pela indústria criativa sem uma reflexão profunda sobre o seu papel na contínua exclusão de artistas trans nos seus projectos. A condição trans não é um adereço, como activistas reclamam, para catapultar carreiras.

Muitas vezes produtores optam por homens e vestem-nos de mulheres, porque as actrizes trans não reflectem os seus próprios estereótipos ou ideias pré-concebidas. A máquina de exclusão está oleada e em funcionamento, não é a responsabilidade de uma pessoa transfóbica. Desde os produtores, ao encenador e até ao actor que aceita fazer o papel, todos contribuem para isso.

Recentemente Hale Berry e a Scarlet Johanson recusaram papeis de homens trans porque foram confrontadas com a pouca representatividade trans em diálogo com as pessoas que mais são afectadas por estas escolhas.

Mas a minha voz não é a que mais interessa neste debate, ouçam as pessoas trans que tentam consciencializar sobre as muitas formas de como estão a ser invisibilizadas. Elas lutam de muitas outras formas também, fazem-no na discussão de ideias, na academia, nas manifestações na rua e no seu dia-a-dia. O confronto ou a violência é tão parte desta luta como a diplomacia. Neste caso, a suposta “violência” foi o resultado de uma não-escuta. Do outro lado onde nos situamos, pede-se reflexão. Se vos chocou, confrontem o desconforto e interroguem-se de onde vem.

Reflictam sobre as oportunidades perdidas de fazer de forma diferente, e de dar espaço a outras pessoas ou realidades. Nós não vemos pessoas trans em posições de destaque, protagonizando séries, a serem pivots de telejornal ou a contracenarem em peças de teatro. Com os níveis de saúde mental desta minoria sexual absolutamente desastrosos (e vergonhosos nos olhos de qualquer profissional de saúde), as pessoas trans precisam de saber que o mundo deve ter – e tem – espaço para todas.

26 Jan 2023

Maria João Vaz, actriz e artista plástica: “Sinto-me mais feliz do que nunca”

Maria João Vaz, actriz e artista plástica, nasceu num corpo de homem com o qual nunca se identificou. Manteve o seu lado feminino em segredo durante a maior parte da sua vida, mas aos 56 anos de idade teve a coragem de se assumir finalmente como mulher

 

[dropcap]C[/dropcap]om que idade começou a sentir que era uma mulher num corpo de homem?

Olhando retrospectivamente para a minha vida, o primeiro sinal de alguma coisa fora do comum, foi aos 5 anos. Sei exactamente a idade porque frequentava a pré-primária. Eu gostava imenso de trocar de sapatos com as minhas colegas de aula… era uma sensação indescritível… um prazer enorme e desconhecido. Aquela escola era péssima, havia vários castigos, levar reguadas na mão, ficar virada para um canto, e havia um castigo para os meninos, em particular, quando se portavam mal: vestiam-lhes um bibe de menina cor de rosa que formava uma saia com um laço atrás e uma fita no cabelo, e faziam-nos subir para cima da mesa. Era suposto ser a suprema humilhação, mas para mim não era, para mim era muito prazeroso. Nos verões com um amigo, fazíamos espectáculos para os nossos pais e irmãos, vestidos com roupas da minha mãe, com brincos de mola, malinhas e maquilhagem…, nós gostávamos imenso. Depois, não me lembro – se calhar é um recalcamento qualquer…

Deixou de fazer isso?

Sim, a partir de uma certa altura deixei de fazer isso em público e passei a fazer em privado. Com roupas das empregadas lá de casa, com as roupas da minha mãe, sentia-me muito bem, mas não havia qualquer consequência. A questão é que naquele tempo – estamos a falar do início dos anos 70 – não havia informação nenhuma, não se ouvia falar de homossexualidade nem de outras sexualidades. O meu pai era uma pessoa um bocadinho machista e o meu irmão mais velho, que era o meu “role model”, era um cowboy, um conquistador, o rei dos skates, do surf e o meu protetor, mas apesar de eu o amar muito, ele tinha uma atitude agressiva para tudo o que era relativo a homossexualidade, que eu – apesar de não me identificar – sentia-me magoada. Para mim era claro que o que eu fazia secretamente não era normal e era condenável, e pronto…toda a vida mantive uma vida paralela em que me assumia como mulher em privado. Levava coisas para a casa de banho às escondidas da família, ou vestia-me dentro da cama – eu dormia com mais 2 irmãos no quarto – e vestia-me dentro da cama e assim ninguém sabia. Agora, eu conscientemente, não sabia o que aquilo significava. Achava que era uma pessoa estranha, uma pessoa esquisita e que mais ninguém era assim, por isso nunca me abri com ninguém e fui sempre uma pessoa muito frágil e sensível, nunca gostei de confrontos … como o dinossauro do Toystory (filme da disney) “i don’t like confrontations”. Quando fiz o meu “coming out” as pessoas disseram “nunca imaginámos, nunca houve qualquer indício”, isso significa que fiz um bom trabalho para me proteger e manter tudo secreto.

Namoradas?

A minha primeira namorada, é a mãe das minhas filhas. Mas apesar de ter sido namorado dela e de termos casado nunca deixei, por um momento, a minha prática de Cross-dressing e desejar não ter o que tinha entre as pernas, apesar de ter 3 filhas. Estive sempre muito presente na vida delas, os biberões, as fraldas, os banhos, o adormecer, o acordar, o vestir e despir, na grande maioria das vezes era eu que tratava disso. Gostava muito de ter sido mãe. Percebi cedo que havia uma grande incompatibilidade emocional com a minha parceira, mas tinha 3 filhas que dependiam emocionalmente de mim, e a coisa foi-se arrastando. Nunca imaginei ser uma pessoa que se divorciasse ou que alguma vez me fosse assumir como mulher transgénero.

Também não havia muita informação.

Pois. Com o aparecimento da internet comecei a ver coisas, a informar-me. Ainda casada, a disforia era tanta, que mesmo com pouca informação comecei a medicar-me, mas depois tive medo pela minha saúde e parei. Comprava todo o tipo de coisas na net que me tornassem mais feminina. Foi um processo muito lento. Às vezes, preparava-me, pegava no carro e ia meter gasolina ou comprar qualquer coisa, e falava com as pessoas que me recebiam e atendiam como mulher. Uma vez fui de carro até Madrid fazer um workshop com a directora de casting Sara Bilbatua. Completamente “en femme”, pus gasolina, fiz check in no hotel… eu sentia-me no paraíso. Só que depois havia sempre um complexo de culpa, uma negação. Sempre. Deitava tudo fora. Depois voltava a comprar. E voltava o complexo de culpa. Nunca percebi efectivamente o que tudo aquilo queria dizer, o que de facto significava. A frustração, o desespero colocavam-me num beco sem saída, tive inclusive uma série de ataques de pânico, tendo um deles acabado no hospital. Percebi que não podia continuar em casa, tinha de sair e mudar as coisas.

E saiu?

Saí.

E quando se assumiu como mulher Trans?

A minha epifania deu-se entre 2017 e 2018, consultei aliás psicólogas especializadas que confirmaram o que subitamente se tornou claro. O meu “coming out” para as filhas foi na Primavera de 2019 e para o resto da família no fim do Verão de 2019. Para o mundo, foi dia 3 de Agosto deste ano, depois de um ano de tratamento hormonal e de um confinamento que veio em boa hora para me dar tempo de adaptação e desenvolver a minha auto-confiança.

É muito recente.

Sim, e o confinamento deu-me imenso jeito porque o meu corpo foi-se modificando sem olhares indiscretos.

Como é que a sua família reagiu?

As minhas filhas reagiram bem… se é o que eu quero e me faz feliz. Elas apoiam-me e querem o melhor para mim, são as minhas melhores amigas.

Há uma grande falta de informação sobre as pessoas transgénero e é muito comum pensar-se – no seu caso – que são pessoas homossexuais que gostam de se vestir de mulher. A identidade de género é erradamente confundida com a orientação sexual.

Exactamente. A identidade de género é o sexo com que uma pessoa se identifica, no meu caso é o feminino. A orientação sexual diz respeito ao sexo que nos atrai emocionalmente e fisicamente. Se eu me sentir atraída por mulheres transgénero ou cisgénero, serei lésbica, se for por homens trans ou cis serei heterossexual, se gostar de homens e mulheres trans ou cis ou não binárias, ou intersexo, serei pan-sexual, há muitas definições.

Já encontrou alguma dificuldade no seu dia a dia como mulher?

Não. Até estou muito bem impressionada com as pessoas. Tive algum receio de me cruzar com os vizinhos e algumas pessoas do bairro mais radicais, o que me causava alguma apreensão, mas as minhas filhas respondiam a esse receio com “oh pai, isso pode acontecer nas primeiras semanas, mas depois vão habituar-se e já não vão ligar nenhuma”, e tinham razão. Já ouvi umas bocas, como qualquer mulher ouve, de grupos de homens que passam de carro, mas sem drama. Claro que a violência acontece, e em países como o Brasil e os Estados Unidos, dezenas de mulheres trans são assassinadas por ano, especialmente afro descendentes.

Há uma resistência nas pessoas em geral em aceitar e compreender a igualdade de género e ainda mais as escolhas de identidade de género.

Infelizmente isso é verdade que existe, no entanto felizmente ainda o não senti na pele. No microcosmos que é o meu prédio, onde vivem pessoas de origem social e profissional completamente diferentes, houve uma recepção calorosa e encorajadora. Talvez eu tenha uma vantagem porque as pessoas sempre me viram na televisão, nas séries ou nas telenovelas, habituaram-se a ver-me transformada, cabelos, bigodes, barbas se calhar acham que é mais uma personagem … não sei. Eu já lhes disse…”agora é assim, e chamo-me Maria João”. E recebo muita simpatia. Sempre nos demos bem e continua assim.

Como olha para o seu passado como homem?

Está morto, essa pessoa já não existe. Não gosto de contemplar a minha imagem, o meu invólucro antigo, causa-me desconforto e não me reconheço. É muito estranho porque olho para uma fotografia e parece uma pessoa muito mais velha do que eu…é passado sim, mas é uma pessoa mais velha. Porque eu sinto que fui transportada para 20 ou 30 anos para trás… há quem diga que as hormonas produzem uma segunda puberdade, talvez seja isso, sinto-me renascida.

Quais as diferenças entre antes e depois? Se é que há diferenças?

Houve uma transformação física e também psicológica, as hormonas têm certamente alguma coisa a ver, se eu era sensível, agora estou ainda mais. A percepção do mundo é diferente, o toque, os cheiros, o gosto pessoal das artes em geral sofreu também alterações, na música, no cinema, etc. Por outro lado sentindo-me liberta, muitas facetas que estavam encerradas em mim, podem agora expressar-se livremente, as outras pessoas notam-no mais do que eu, no fundo sou como sempre fui mas assumidamente, não há nada a esconder. Sinto-me feliz como nunca. Houve um momento marcante para mim, o momento em que me encontrei cara a cara com outra mulher trans, foi um dos dias mais felizes da minha vida, uma sensação indescritível de identificação e pertença, porque tudo o que tu dizes a outra pessoa e ela te diz a ti é instantaneamente compreendido como por mais ninguém. Há uma ligação fortíssima.

Assusta-a o crescimento dos discursos de ódio dos partidos populistas de extrema direita?

Em Portugal, no “país dos brandos costumes”…  as pessoas são pouco interventivas socialmente, mas são dissimuladas e violentas nas redes sociais. Há pouca iniciativa cívica de lutar pelos direitos humanos. E agora temos este novo deputado que apareceu (André Ventura) que diz à boca aberta o que muita gente diz à boca fechada. Foram fenómenos destes que levaram ao poder o Trump e o Bolsonaro, e a comunicação social tem alguma responsabilidade porque lhes dá cobertura, é vendável. Esse deputado aproveita a ignorância e o medo, e recorrendo a um discurso demagógico tenta ganhar dividendos dessa massa anónima e aparentemente descontente para levar a cabo a sua estratégia de perverter o sistema, afirmando coisas como “os imigrantes e os refugiados vêm tirar-nos o emprego”; “os gays e as lésbicas vão estragar as nossas famílias”.

A teoria do medo.

Sim, houve uma crise recente e as pessoas arranjam bodes expiatórios e esses partidos aproveitam-se do descontentamento da população e é nessas áreas problemáticas, entre aspas, que vão buscar os votos porque é a teoria do medo, exactamente. Manter o povo ignorante, manter as pessoas assustadas e depois aparecem como protectores. As pessoas dedicam cada vez menos tempo aos filhos, as crianças são educadas com Ipads e telemóveis …é a cultura do espectáculo, a teoria do medo e a teoria do desconhecido, porque a percentagem de pessoas no mundo e em particular em Portugal que conhece alguém transgénero é diminuta, porque nós somos poucas, somos menos de 1 por cento da população.

Acredita que chegará a altura em que ser mulher ou homem não passará pela genitália mas apenas pela sua identidade? Em que os direitos humanos são respeitados independentemente da opção de cada um?

Vamos acreditar nisso. Eu quero acreditar nisso.

ENTREVISTA Teresa Sobral
FOTOS Inês Oliveira

12 Nov 2020