Andreia Sofia Silva EventosLivro | História de Ng Iun Peng inspirou romance de Maria Helena do Carmo Chama-se “A Menina da Casa Grande” e é o novo romance de Maria Helena do Carmo, editado com a chancela do Instituto Internacional de Macau. Trata-se de uma história inspirada na vida de Ng Iun Peng, uma mulher chinesa nascida em Cantão, numa família rica, que viu a vida mudar completamente com a ocupação japonesa e a guerra civil chinesa. O lançamento decorreu ontem em Lisboa Maria Helena do Carmo, ex-residente, professora e autora, está de regresso aos livros. Desta vez o lançamento faz-se com o cunho do Instituto Internacional de Macau (IIM), que já tem à venda, nas suas instalações, “A Menina da Casa Grande”, um romance inspirado em factos reais, nomeadamente na história de vida de Ng Iun Peng, “uma mulher nascida em Cantão, que viveu a ocupação japonesa, a guerra civil chinesa e a Revolução Cultural, acabando por se refugiar em Macau”. Depois de ter lançado, em 2021, um romance centrado no século XIX em Macau, nomeadamente na vida de Pedro Gastão Mesnier, secretário do Governador Visconde de São Januário, Maria Helena do Carmo remete-nos agora para o século XX e os complexos anos da II Guerra Mundial em Macau e no sul da China, sem esquecer todos os acontecimentos bélicos e políticos que daí surgiram. Ao HM, Maria Helena do Carmo conta que conheceu a história de vida desta mulher no contexto das aulas do curso de patuá que frequentou em Lisboa, no Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM). Um dos docentes, Joaquim Ng Pereira, filho de Ng Iun Peng, contou alguns episódios da vida da mãe, e aí Maria Helena do Carmo percebeu que tinha todos os ingredientes para um novo romance. Escrito com base em relatos gravados com a senhora, já no final da sua vida, e em relatos feitos pelos próprios filhos, Maria Helena do Carmo construiu então a história desta mulher que teve várias vidas, saindo da China, vivendo em Macau já numa situação financeira remediada e, depois, em Portugal, graças ao casamento com um português. “Ela [Ng Iun Peng] nasceu numa casa grande porque o pai era muito rico, tinha terras a perder de vista, indústrias, comércio. Nasceu, portanto, numa casa que ocupava um quarteirão inteiro, e foi uma menina mimada. Estudou em casa com professores particulares, depois fez o ensino secundário e um curso superior. As guerras empurraram a família para Macau”, disse. Ng Iun Peng viveu então as dificuldades que tantos chineses enfrentaram nestes anos, ao fugirem da China e procurarem refúgio em Macau e Hong Kong. “O pai, a primeira senhora do pai e ela foram para Macau, mas a mãe dela foi para Hong Kong com outras mulheres do pai e as meias-irmãs. Em Macau, ela trabalhou numa fábrica de tabaco, depois foi professora numa escola chinesa, enamorou-se de um português, e pronto.” Esta fase em que se viu obrigada a trabalhar numa fábrica “foi difícil para ela”. “Ficou com problemas nas costas durante muito tempo. Claro que é diferente, se a pessoa tinha uma vida rica e, de repente, passa a ter uma vida de trabalho”, acrescentou. Mudança religiosa A paixão por um português levou Ng Iun Peng para o outro lado do mundo no final dos anos 50, quando Portugal era um país fechado, sob um regime ditatorial. “Passou por todas as dificuldades. Imagine-se, em 1957, numa época em que não havia ainda uma compreensão pela maioria das pessoas. Sentiu-se marginalizada, ostracizada, incompreendida, porque falava mal português. Foi uma época muito traumatizante para ela.” Ng Iun Peng teve dez filhos e até acabou por se divorciar do marido português. “É a história de vida de uma pessoa que não é importante, não era nenhuma governadora, mas é a história de uma mulher comum, que se apaixona, casa, tem dez filhos e que faz de tudo para os criar, para que estudem. É um exemplo de vida que merecia ser divulgado.” Nascida numa família budista, Ng Iun Peng tornou-se missionária em Portugal, depois de ter lido uma bíblia. “A história começa que em 1958, pouco tempo depois de estar em Portugal, quando foi a uma feira do livro e encontrou um livro em chinês. Era a única coisa que ela sabia ler, e o senhor ofereceu-lho o livro. Leu essa bíblia como um romance, e depois acabou por aceitá-la com mais fé, e pedia a Cristo que a ajudasse em momentos difíceis, e acabou por se tornar cristã evangélica”, disse a autora. Esta conexão a uma nova religião dá-se em Vila Real, quando surgiu um pastor e um grupo de culto. “Quando foi para Macau com os filhos, acabou mais tarde por se tornar missionária em Cantão.” Maria Helena do Carmo considera que esta é uma história que representa não apenas as dificuldades vividas por tantas mulheres chinesas na época, mas “da mulher em geral, no mundo, quer seja chinesa, muçulmana ou portuguesa”. “Temos em Portugal, ainda hoje, tantas mulheres que sofrem, que têm de arcar com a responsabilidade de criar os filhos, de serem donas de casa e ainda terem de trabalhar para ganhar dinheiro e auxiliar a casa. Acho que esta história é um exemplo para toda a gente”, acrescentou a autora. O lançamento de “A Menina da Casa Grande” aconteceu ontem em Lisboa na Casa de Macau e contou com a presença de Ana Rute Santo, filha de Ng Iun Peng, “uma fonte fundamental para a pesquisa da autora, a par dos irmãos, Joaquim Ng Pereira e Vítor Ng Alves”, descreve-se na nota de apresentação da obra.
Andreia Sofia Silva EventosNovo livro de Maria Helena do Carmo conta a vida de Pedro Gastão Mesnier, secretário do Governador Visconde de São Januário Se dominasse a língua chinesa, Maria Helena do Carmo escreveria sobre Deng Xiaoping, que segundo a sua óptica mudou a China para sempre. Por enquanto, é sobre a história de Macau que se debruça. O seu mais recente livro, “Macau no tempo áureo do comércio”, conta a história de Pedro Gastão Mesnier, secretário do Governador Correia de Almeida, Visconde de São Januário, e do fim do comércio de cules Como chegou a Pedro Gastão Mesnier, uma figura histórica ligada a Macau e que é quase desconhecida? Eu também a desconhecia, até que António Aresta escreveu sobre o Pedro Gastão Mesnier e finaliza com a frase “quem sabe se um dia Maria Helena do Carmo não faz daqui um romance”. Fiquei intrigada. Foi um desafio, um estímulo ele escrever isso. Fui verificar quem era o sujeito e vi que tinha morrido muito novo, com 37 anos. Questionei-me como alguém que morreu tão novo se tornou numa figura tão importante. Investiguei em Macau e na Biblioteca Nacional em Portugal coisas que escreveu. Durante a pandemia tive a sorte de encontrar online os boletins da província de Macau e Timor nos anos em que Pedro Gastão Mesnier lá esteve. Ele era um dos escritores dos boletins. Consegui saber o que ele fez na Índia. Soube da história anterior, da ida para Londres aos 17 anos, e que já estudava línguas orientais ainda em miúdo. Tive acesso a extractos da sua vida, porque ele escreveu nesses boletins sobre a viagem que fez com o então vice-rei da Índia, que depois foi Governador de Macau, Januário Correia de Almeida, Visconde de São Januário. Deram uma volta pela Índia e depois encontrei testemunhos sobre tudo o que se passou em Macau. Achei extraordinário, um homem que conviveu com o príncipe da Rússia, futuro Czar, com o rei do Sião. Mas houve outro aspecto que me intrigou bastante. Qual foi? Estudei a história de Macau desde os seus primórdios e sempre achei que Macau era uma cidade muito pobre, mesmo já tendo entrado no negócio do ópio. Falamos de que data? Até ao século XVII Macau não estava muito mal porque havia negócios de Goa para o Japão. A partir de 1640 tudo se transformou, deixámos de ter Malaca e em Macau começa a sentir-se um certo empobrecimento. A minha tese foi sobre a primeira metade do século XVIII, sobre a pobreza que se prolongou até à segunda metade do mesmo século. E estranhei que no século XIX tenha surgido imensa riqueza. Deu-se então o “tempo áureo do comércio”, que dá nome ao livro. Exacto. Os chineses que levavam uma vida muito humilde, mas alguns construíram palacetes, e isso intrigou-me. Dei então com o comércio dos cules, que já tinha começado em Amoy, com uma firma francesa, que, entretanto, foi seguido por outros portos, inclusivamente por Hong Kong. Mas foi sendo proibido o comércio por outros portos, devido aos tratados de comércio assinados com a China. Só Macau não concluiu o tratado. Não foi ratificado. Sim. E assim aproveitaram Macau para ter uma porta de escoamento dos cules. Eram feitos contratos por oito anos, e claro que os chineses estavam interessados em sair [do país], porque no tempo dos imperadores pagavam muitos impostos e eram extremamente pobres. Como acabou a escravatura, a necessidade de mão-de-obra levou os franceses a buscarem trabalhadores [chineses] com contrato de trabalho. No início não havia problemas, mas depois quando virou negócio encontrámos uma série de chineses a aliciarem outros, porque ganhavam com isso. Gerou-se um caso diplomático e de violação de direitos humanos. Macau era o único porto onde continuava esse comércio e aquilo começou a ser abusivo. Havia macaenses e chineses envolvidos no negócio, donos de embarcações e com armazéns. Nessa altura, os pobres lavradores [chineses] já iam para as Américas, Cuba, África, sobretudo América Central, para os caminhos-de-ferro na Califórnia. Era mão-de-obra barata. E depois começa um comércio de quase escravatura, porque quem os recebia ficava com as suas cédulas e não os deixavam ir embora. Qual o papel do Visconde de São Januário para travar este comércio, já na qualidade de Governador? Teve de facto atitudes muito correctas, mas não foi o primeiro a tentar formas disciplinadas de negócio. O Visconde da Praia Grande foi talvez o primeiro. Mas o Visconde de São Januário conseguiu terminar com o negócio dos cules. Mas quem teve a mão mais forte para a proibição deste comércio? Foi o Governador de Macau ou o ministro da metrópole, à época, Andrade Corvo? Tenho a impressão de que os ministros aqui em Portugal não tinham muito a ideia do que se passava noutros locais. Não estavam presentes e sabiam apenas o que lhes era contado. É natural que tenha sido o Visconde de São Januário, através do correio diplomático, que tenha levado à decisão de Andrade Corvo. O comércio dos cules era uma pedra no sapato nas relações entre Portugal e a China? Era, apesar de o Visconde de São Januário já acordado verbalmente em 1872… e penso que o Pedro Gastão Mesnier também teve um papel importantíssimo porque investigou muita coisa e foi emissário do Visconde de São Januário a Cantão, com outros sinólogos. Fez um trabalho de investigação muito importante sobre o que se estava a passar. E era ele que informava o Governador. O que mais a surpreendeu na figura de Pedro Gastão Mesnier? O facto de ser um aventureiro, de ser extremamente inteligente. Nunca concluiu um curso, mas esteve cinco anos em Coimbra. Devia ser uma daquelas pessoas que queria saber tudo. Ele retornou a Coimbra [depois de sair do Oriente] para ir novamente com o Visconde de São Januário para as Américas, largou de novo a sua licenciatura. Mas era um escritor admirável. Os extractos que encontrei sobre o tufão [um dos maiores que assolou Macau] mostra como era admirável na sua escrita. Admiro as pessoas cultas e ele era muito culto. Algumas coisas inventei, como o amor que teve [no Japão]. Mas há um enredo amoroso verdadeiro. O romance macaense? Sim, o do barão que se apaixonou pela cunhada e teve uma filha com ela. O nome dela está registado nas Famílias Macaenses. A filha ficaria em Hong Kong órfã, porque os pais morreram cedo, quando tinha 13 anos. E era ilegítima, o que naquela época era igual a ser renegada. Falo da Madre Teresina, que no livro é Teresa de Trento, e coloco-a a falar com a amante do barão. Há uma rua em Macau com o nome Madre Teresina. O livro acaba por abordar também como era a comunidade macaense na época, mais conservadora. Exacto, e logo pelo facto de serem cristãos. Tinham posições elevadas, porque os macaenses eram os únicos intérpretes dos europeus e nasceram na terra, dominavam o terreno. E a maioria dos macaenses eram ricos. Na altura, muitos chineses preferiam pertencer a Macau e serem considerados macaenses, dava um certo estatuto. Mas claro que a China mudou imenso desde então. Admiro imenso Deng Xiaoping. Se tivesse capacidade para ter acesso a fontes chinesas, se soubesse traduzir, era para mim um homem excepcional [para escrever sobre]. Fala de um romance? Não, uma biografia. Eu vou muito para o real. Escrever sobre Macau e a sua história continua a ser um desafio? Ainda existem muitos temas por explorar? De facto, existem. Não sei se vou continuar devido a vários factores. O primeiro tem a ver com a minha idade, a visão, a saúde. Tenho também de encontrar um tema muito apaixonante que consiga investigar.
Andreia Sofia Silva EventosLivro | “Pássaros de Ferro”, de Maria Helena do Carmo, apresentado em Lisboa Maria Helena do Carmo apresentou recentemente, na Fundação Casa de Macau, em Lisboa, o seu novo livro, intitulado “Pássaros de Ferro”, que aborda o período da Guerra Sino-Japonesa e do Pacífico. Em entrevista, a autora revela que a obra será também apresentada em Macau em Outubro e explica a sua ligação ao romance histórico [dropcap]”P[/dropcap]ássaros de Ferro” é o mais recente livro de Maria Helena do Carmo, escritora que foi docente em Macau. Lançado em Março em Lisboa, com o apoio da Fundação Casa de Macau, a autora tenciona trazer o novo romance para Macau, em Outubro. Em 2017 a autora publicou “Estórias de Amor em Macau”, uma edição do Instituto Internacional de Macau (IIM), que acabaria por ser fundamental para “Pássaros de Ferro”. Isto porque a obra de 2017 é composta por “doze contos sobre mulheres de diferentes etnias, que se destacaram das suas contemporâneas durante a ocupação portuguesa, do século XVI ao século XX, e foi aí que encontrei o tema para o este novo livro”. “Como já havia escrito sobre o séc. XVII – “Nhónha Catarina de Noronha” -, do séc. XVIII o romance “Mercadores do Ópio” e “Bambu Quebrado”, referente ao séc. XIX, decidi investigar o período das Guerras Sino-Japonesa e do Pacífico”, adiantou ainda ao HM. “Pássaros de Ferro” mantém, assim, o mesmo estilo dos livros anteriores, onde a História assume o protagonismo. “Este livro tem ainda mais investigação, por haver muita matéria publicada desse período em arquivos e uma vasta bibliografia.” Macau surge neste livro retratada, de acordo com a autora, “com a maior fidelidade possível, de acordo com testemunhos da época, escritos e orais”. É também um livro “cronologicamente correcto, com relatos de factos verídicos, então ocorridos, dando às personagens os seus nomes verdadeiros”. “A ficção intromete-se apenas para dar corpo ao conteúdo do romance”, frisou. Por contar Formada em História e depois de ter dado aulas em Macau durante vários anos, Maria Helena do Carmo assegura que nunca abandonou as duas carreiras que abraçou. “Ainda não saí da investigação e do ensino. Não se pode escrever de uma época sem a investigar, e ainda lecciono História na Academia Cultural Sénior de Lagoa. Portanto, acho que sim, que os processos se complementam.” A autora assegura que ainda não teve vontade de se aposentar. “A atracção pela escrita é antiga, só que nunca arranjei tempo para tal antes de me aposentar. A ideia do romance histórico surgiu quando investigava para a minha dissertação, ao encontrar inúmeros casos dignos de relevo, e de verificar que muitos documentos se contradiziam, ou pecavam por falta de fidelidade. Talvez de propósito, por uma política de sigilo do Governo, ou por desconhecimento da realidade, comecei a duvidar que fossem fidedignos, o que prejudicaria qualquer trabalho histórico. Porém, um trabalho de ficção dá toda a liberdade ao autor.” A autora defende também que o território continua a ser fértil em temas para a escrita de novos romances. “Não faz ideia de quantas sugestões me são feitas por amigos, para explorar este ou aquele tema. Assim tivesse eu tempo para me deslocar a Lisboa e me entregar aos arquivos.” Neste sentido, e numa altura em que se celebram os 20 anos da transferência de soberania de Macau para a China, Maria Helena do Carmo não tem dúvidas de que há ainda “muitas histórias” por escrever. “Umas que vivi nos anos em que residi na cidade, outras de amigos que lá moraram, ou ainda por lá estão, histórias que os textos deixam nas entrelinhas, figuras do passado que merecem destaque, enfim… Não penso parar, porque parar é morrer. Enquanto Deus me der vida, saúde, vista e esta vontade de trabalhar, continuarei a escrever no meu canto, onde me sinto tranquila”, concluiu.