Mão Dita e por dizer

Horta Seca, Lisboa, quarta, 14 Abril

Abrimos as janelas de cada dia para nos queixarmos do tempo, assim ele nos fosse exterior. Portanto, tenho as minhas razões de queixa. Cada passo dado, cada gesto emitido, cada esforço, as ideias arrancadas pétala por pétala de uma flor por existir, tudo participa no coro de tragicomédia que traz à cena A Grande Avaliação. Sempre detestei exames, antes de perceber que passamos a vida na navalha da examinação. Talvez o momento e o movimento que atravessamos seja agravadamente mais de balanço por tanto conter de desequilíbrio.

Uma vez mais a pretexto de festival, no caso o 5L que se anuncia para Lisboa nos primeiros dias de Maio, depois da falsa partida de 2020, preparamos outros dois volumes da colecção Mão Dita. Nascida por lembrança e insistência do Luís [Carmelo], que acabou por criar a Nova Mimosa para dar resposta cabal às suas ânsias, pretendia ser versão portátil e laboratorial, ensaio súbito, recolha do volátil da voz alta, chamada para tema e trepidação. O grafismo, muito discutido com a Luísa Barreto sublinharia isso mesmo, com os dois pontos de arame e uma capa de intervenção plástica sem mancha de tipografia, sem guilhotinar as sobras que resultam da dobra dos cadernos.

Testámos logo limites com as 82 páginas do «Tratado», do Luís, que chegou a ser finalista do Prêmio Oceanos, com a erudita abordagem corsária dos grandes textos. «Nunca houve inveja do futuro/ na linguagem das aves […] Nunca houve passado/ na linguagem dos homens». O grande leitor enfrenta espelhos e fantasmas, desdobra paisagens e alinha as invenções. Fôlego assim talvez desminta as premissas, mas um laboratório pode ter correntes de ar…

Mais alinhado com as intenções, Felipe Benítez Reyes fez pequena antologia dos seus poemas que tinham partido ao encontro da sombra de Pessoa. A ela voltamos com a tradução para cabo-verdiano da Ode Marítima, pelo José Luiz Tavares – quem mais teria o atrevimento? –, ele que exilou o mar dos seus versos de ilhéu. «A, tudu kais é un sodadi di pedra!/ I óra ki naviu ta sai di kais/ I dirapenti ta odjadu ma abri un spasu/ Entri kais ku naviu/ Un angústia risenti, n ka sabe pamodi, ta toma na mi,/ Un nébua di sintimentu di tristeza». («Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!/ E quando o navio larga do cais/ E se repara de repente que se abriu um espaço/ Entre o cais e o navio,/ Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,/ Uma névoa de sentimentos de tristeza».)

A dita colecção quis-se ainda hall de entrada. Faça favor, Liliana S. Ribeiro, com as perversas arrumações, da infância, da paixão, das varandas, dos objectos. Entre, Ana Freitas Reis, trazendo forte «Cordão» ligando a universo no qual as palavras possuem carne e portanto física, peso e alcance. Avance sem medos, João Rios, aquele que usa o sarcasmo para descascar os verdetes da História, sem deixar por isso de recolher das marés restos e sujidades do quotidiano. Foi o único a assinar dois títulos e em pleno lançamento do segundo apercebeu-se que havia datas redondas por celebrar. Apesar de faltar mesa às preparações onde nos temos encontrado permitiu com mais facilidade aquilatar da pujança do sopro. Está para mesmo depois do intervalo, esta singela celebração de mais um quarto de século a respigar. «nenhuma idade / é mais sólida/ que as ruínas da casa».

A esta listagem dos novos soma-se agora os velhos, amigo e poema, resgate também de edição perdida há décadas nos dentes da engrenagem. «As Portas de Santo Antão», do mano Luis [Manuel Gaspar], atira-nos para pedaço perdido da alma da minha cidade, bastando para tanto que nos atravessemos neste delírio de atenções, ao lugar, à palavra, às sobras, às ruínas. Seremos bailarinos, acrobatas, nadadores, trolhas, esfaimados e clientes mas sobretudo observadores. Seremos rima e cartaz e tudo e mais alguma coisa. Até Lisboa, a que nunca existiu a não ser entre nós. «Há milhões de criaturas,/ Homens, mulheres e petizes,/ Que dão saltos e pinotes/ E arrebitam os narizes// Numa algazarra medonha, / Procurando a direcção/ Que os leve sem demora/ Às Portas de Santo Antão.»

O Nuno Viegas [algures na página, uma hipótese de capa não escolhida, para não retirar surpresa e para acrescentar valor a este cantinho de licores], que põe humor nas cores, interpretou bem o caos criador. Junta-se a uma galeria que inclui as cores e interpretações de Pedro Proença, José Barrias, Pedro Pousada, Eugénia Mussa e Francisco Vidal.

Em 2018, no voluminho #01, guilhotinado por engano consuetudinário, a Inês [Fonseca Santos], senhora de várias madrugadas – que, aliás, foi assinalando durante o confinamento com leitura diária do céu que lhe assiste –, não se atreveu a vaticinar que acabaríamos todos em uma «Suite sem vista». Bom, suites para os mais bafejados, assoalhadas interiores para a maior parte. A rapariga aguarda que nem cerejeira o desabrochar violento da esperança. Anseia pela colheita, outra além da da solidão, da do tédio. Ia tocando o sangue e Deus, assim como teclas de instrumento. No corpo, como na cama, de olhos abertos. «A rapariga possuía metade da vida./ Estava demasiado velha para a fuga:// regulava a temperatura das palavras/ como quem copia com os dedos// o tom do coro da missa, em si menor.// A rapariga respirava fundo na suite sem vista, recordava:/ a vida inteira, cronométrica, a vida inteira //como quem copia com os dedos o ritmo / da pessoa errada.» A rapariga e nós com ela.

21 Abr 2021