O erro ontológico de Machado de Assis na análise de O Primo Basílio Parte quatro e última

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]as então porque continuamos a multiplicação do desejo, sabendo que isso nos faz mal, que isso nos enche de nada? É o próprio Eça nos dá a resposta, através de uma conversa, muitas páginas antes, entre Luísa e Leopoldina:

– Pois olha que com as tuas paixões, umas atrás das outras…

Leopoldina estacou:

– O quê?

– Não te podem fazer feliz!

– Está claro que não! – exclamou a outra. – Mas… – procurou a palavra; não a quis empregar decerto; disse apenas com um tom seco: – Divertem-me!

Eis então aqui diante de nós a resposta à pergunta que fizemos antes: divertimento. Leopoldina sabe bem que a multiplicação do desejo a conduz a nada, a uma aumento de nada, mas continua a fazê-lo pela simples razão de que a diverte. Cá estamos de volta a este nosso tempo, e como Eça de Queirós tão bem o descreveu: o nosso tempo é o tempo da multiplicação do desejo e do divertimento.

O que é o divertimento ou a diversão? E qual a relação entre ele e o desejo? Na sua obra Pensamentos, Pascal separa as estruturas do amor e da diversão ou divertimento. Pascal usa o termo divertissement em sentido etimológico, isto é, em sentido de distracção, de diversão. Cair no divertimento é cair para fora de si mesmo, perder-se num alheamento de si próprio, deixar de se importar com a sua própria vida. Aquele que se diverte, esquece-se de si. Diz Pascal: “Não tendo conseguido curar a morte, a miséria, a ignorância, os homens lembraram-se, para serem felizes, de não pensar nisso tudo.” Ora, o divertimento é o ambiente natural do esquecimento. O ambiente natural do esquecimento de si próprio e da vida, das dificuldades da vida. Por conseguinte, um amante a seguir ao outro não concede felicidade a Leopoldina, mas concede-lhe um bem muito precioso: “ficar fora de si”, não se lembrar que existe, com todas as preocupações que daí advêm. Um amante a seguir a outro e a outro e outro dá a Leopoldina a possibilidade de não se ver a si mesma, de viver sem si mesma. E aquela que vive sem si mesma precisa de algo ou alguém que a preencha, isto é, não só não a aborreça, mas fundamentalmente a afaste do aborrecimento. Ou seja, da angústia não me livro, mas livro-me de senti-la. Livro-me de me sentir a mim mesma, diz, sem dizer, Leopoldina. Ao fim de alguns anos de amantes, chega à conclusão de que nenhum homem tem poder para fazer isso. Nenhum homem pode erradicar de vez o aborrecimento que a assalta continuamente e cada vez mais. Leopoldina espera na multiplicação do desejo, no incremento contínuo de nada, a salvação da sua vida, um sentido para ela, algo que a faça viver como se viver fosse um bem e não um mal. Leopoldina vive como se fosse preciso inventar fugas da própria vida. Pascal escreve ainda que a melancolia – que invadia Luísa na ópera, ao lembrar Jorge, por exemplo – é a diminuição da estima de si, diminuição da estima de si pelo esvaziamento da pessoa e a incapacidade de descrever o objecto perdido. Caídos aqui, e ainda segundo Pascal, resta ao humano a volúpia, a volúpia é uma adesão aos prazeres dos sentidos. E esta é a atitude própria de quem perdeu a estima de si. O divertimento produz um esvaziamento do humano e do sentido do amor. Divertimento e desejo são irmãos. Ambos lutam dentro de nós contra nós próprios. Divertimento e desejo é nós contra nós, nós a comermo-nos a nós próprios, a enchermo-nos de vazio, a enchermo-nos de nada. Mas enquanto o desejo nos empurra para a angústia, seu irmão, o divertimento, tenta fazer-nos esquecer dela, através de uma técnica semelhante à da terra queimada, isto é, o divertimento queima qualquer lembrança que possamos ter de nós mesmos, qualquer lembrança da nossa condição humana. Leopoldina sabe que não é feliz, mas diverte-se, isto é, enche-se mais e mais de nada, até que tudo se acabe. Melhor seria dizer: até que ela se acabe. Pois o que lhe custa na vida não é a vida, mas ela mesma na vida. O que lhe é insuportável é ela mesma. Assim, e reconhecendo isso, embora de modo um bocado enevoado, isto é, sem toda esta reflexão que aqui fomos seguindo, ela diverte-se. Para Leopoldina, viver é divertir-se, isto é, viver é esquecer-se, ir caindo continuamente para fora de si. Quanto mais se enche de nada, mais necessidade tem de se divertir, pois mais necessidade tem de se esquecer do nada a crescer. E esta experiência de Leopoldina, Luísa sente-a precisamente naquele momento que causa tanta perplexidade ao leitor Machado de Assis, em que ela ao arrumar a sua mala para sair de casa e deixar o marido, se dá conta de que o desejo de Basílio não chega. O desejo de Basílio não lhe chega. Ali, naquele momento, Luísa dá-se conta de que o desejo não chega para nada, embora nos coloque em presença de nada e do nada.

8 Ago 2017

O erro ontológico de Machado de Assis na análise de “O Primo Basílio” (3)

[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]á vimos que Eça deixa bem claro em O Primo Basílio que a multiplicação do desejo, ao incrementar o nada, enche-nos de aborrecimento. Um aborrecimento do tamanho do mundo. Um aborrecimento do tamanho do mundo, bem que deve ter uma outra palavra, palavra mais forte do que aborrecimento. De imediato, passaremos a analisar este aborrecimento do tamanho do mundo, o que esconde ele, e qual a sua relação com o nada e com a multiplicação do desejo.

Será necessário então tentarmos entender um pouco melhor o que é o nada. Que se quer dizer quando se diz nada? Antes de mais, devemos fazer uma distinção fundamental, para a qual Heidegger já nos alertara, no seu célebre curso de 1929, Was ist Metaphysik? [Que é a Metafísca?], entre nada e nulo, se quisermos ser bem sucedidos na compreensão do nada. Segundo Husserl, o nulo é uma “indeterminação determinada”. Que se pretende dizer com isto? Imagine-se que estamos em casa e alguém toca à campainha, sem que esperemos. Do outro lado da porta está alguém indeterminado, um nada que não se pode saber, até que se pergunte “quem é?”, a campainha toca e abre um mundo de possibilidades: “será o carteiro?”, “será um vendedor?”, “será um amigo inesperado?” “será publicidade?”; por fim, nas sua mais indeterminada formulação, “quem será?” Ora, este “quem será?”, esta pergunta é nada para nós, isto é, apresenta-nos um nada de saber acerca de quem está do outro lado da porta. É o indeterminado. Mas este indeterminado tem ainda assim um determinado, isto é, não sabemos quem é, mas sabemos que é alguém, sabemos que não é um cão ou um gato, sabemos que muito provavelmente não é o Presidente da República Portuguesa – se bem que o actual presidente possa muito bem contrariar isso – ou o filósofo Edmund Husserl. Cães e gatos não tocam à campainha, os mortos também não (Husserl) e a probabilidade do Presidente da República Portuguesa nos tocar à porta é ínfima. Por outro lado, as hipóteses adiantadas anteriormente, do carteiro ao amigo inesperado ou ao vendedor são também determinações. Estas determinações indeterminadas são o nulo e não o nada. Ou seja, são qualquer coisa, mas que nós não sabemos o quê ou quem. O nulo é um nada do ponto de vista epistemológico, um nada de conhecimento.

O nada também não é uma negação. Quer seja uma negação do ponto de vista lógico-predicativo, por exemplo, “p não é q” ou “o homem não é imortal”, quer seja do ponto de vista de um juízo existencial, por exemplo, “não há cerveja”, pondo como possibilidade pedir mais ou ir comprar. A negação, o não, tem como horizonte de sentido um sim, o haver que não há. Neste sentido, o não, a negativa é também um nulo, uma nulidade. Não é aqui que podemos perguntar pelo nada. De qualquer modo, perguntar, seja pelo que for, implica necessariamente uma informação acerca do que se pergunta. Imagine-se alguém que na Avenida da Liberdade nos faz esta pergunta: “desculpe, pode dizer-me onde fica o Teatro Dona Maria?” De uma coisa podemos estar certos, ele não sabe onde fica o teatro pelo qual pergunta. Mas podemos também ficar igualmente certos de que ele sabe o que é um teatro, e que existe em Lisboa, e que é perto da Avenida da Liberdade. Ele sabe algo acerca do que não sabe. Por isso pergunta. Perguntar é ter já um conhecimento prévio e indefinido do que não se sabe e pelo que perguntamos. Ou seja, o não saber tem um horizonte de saber, ainda que cheio de imprecisão, cheio de indeterminação. Uma indeterminação determinada, diria de novo o nosso amigo Husserl.

Mas qual é então a situação hermenêutica que nos deporá no nada? Se ele não é o nulo, nem o não, nem a negação? Todos estes são sombras de sim, sombras de afirmação, sombras de existências, sombras de saber ou, se preferirmos, são negativos de afirmações, negativos de predicados atribuídos, negações de coisas. E o que pretendemos saber é o que é o nada, que nos invade através da multiplicação do prazer. O nada não pode ser encurralado como o fazemos em relação às estruturas de negatividade. O nada não pode ser interrogado como fazemos em relação à ausência de uma coisa, de um conhecimento, de um predicado. O nada só pode ser interrogado em relação ao seu todo. Por conseguinte, como saber o que é o todo do nada, o que é o nada e não o nada disto ou daquilo ou daqueloutro que, como vimos anteriormente, não é nada, mas nulo, estruturas de negatividade. Perguntar pelo nada é perguntar pela possibilidade do ser; esta é que é a grande visão de Heidegger. Não se pode perguntar pelo nada isolado do ser. Do mesmo modo que não se pode perguntar pela negativa isolada da afirmativa, ou do não isolado do sim, ou do não há isolado do há. O nada só pode ser encurralado em nós. Só identificando em nós o nada, podemos responder ao nada. Só nós podemos responder ao nada, porque só nós somos nada.

O problema do nada é que ele é. O nada é expansionista, tem tendência para alargar, para crescer, para tornar em nada tudo o que toca. Heidegger diz: “das nichten des Nichts; nichten não existe em alemão, pertence ao heideggerês, que traduzindo para português, seria qualquer coisa como nadadar (nada-dar), no sentido em que o nada se torna verbo e actua sobre o mundo. O nada traz um todo de ausência ao todo da presença. Para quem tiver mais dificuldades com esta incursão fenomenológica cerrada, imagine a namorada, o namorado, a esposa ou o marido abandoná-lo ou abandoná-la, quando ainda fervilham de amor. O mundo, literalmente, transforma-se num todo de ausência, isto é, o mundo, onde quer que se vá, fica preenchido com a falta de quem nos abandonou. Os carros, o café, a cerveja, a música, os livros, a comida, a cama (essa então…), os outros com quem nos cruzamos na rua ou ocasionalmente falamos, tudo isso traz até nós quem não está. Quem não está, e só esse ou essa deveria estar, é o nada. O nada que somos. O nada é a ausência materializada em tudo o que vemos, sentimos, pensamos, tocamos. E, agora, para usarmos a metáfora que Heidegger usa: através do nada – a ausência em presença – o mundo fica com um ambiente de cortar à faca. O nada só não existiria se conseguíssemos controlar o destino da nossas vida. Usemos antes a palavra que Heidegger usa, Stimmung, disposição, em inglês seria mood. A palavra vem de stimme, voz, e Heidegger usa metáforas musicais, de ritmo e meteorológicas, de diferentes climas, de o tempo a mudar. De facto, não dificilmente a nossa disposição muda. Ou seja, estamos expostos à intempérie, quem anda à chuva molha-se, humano que anda na vida leva com o nada em cima do lombo. E esta experiência de nos faltar o mundo, da nossa própria vida se estreitar, aquando do abandono a que fomos votados, sem que pudéssemos sequer ter uma migalha de decisão nessa história, é a angústia. A angústia é a vida a ficar cada vez mais estreita, cada vez mais estreita… tão estreita que até parece que nos custa a passar por ela com o que somos ou com o que já não somos. O nada, em suma, não é passível de interrogação à laia do que quer que seja, senão através da nossa experiência no mundo connosco. Não se pergunta pelo nada como se perguntássemos pela terceira lei da termodinâmica ou como se perguntássemos onde é o teatro Dona Maria ou porque caiem os corpos. Pergunta-se pelo nada do mesmo modo que se pergunta a quem se ama, se nos ama. Pergunta-se pelo nada, não à espera de saber, mas à espera de vida, à espera de se conseguir viver. Por conseguinte, multiplicar o desejo é estar mexendo com o fogo, estar mexendo com o fogo do nada. Porquê? Porque muito simplesmente um corpo a seguir ao outro traz em si mesmo a ausência de uma presença, um vazio total de permanência. Ninguém passa da loira para a morena, da morena para a ruiva, da ruiva para quem quer que se siga, sem que traga no seu pobre coração um aborrecimento do tamanho do mundo. Com o nada a nadadar em alta rotatividade, nada nos chega. Esperemos que a nossa digressão pelo nada e seus derivados tenha sido profícuo para a compreensão da conexão entre a multiplicação do desejo e o crescimento do nada. Porque, podemo-lo dizer agora, este nada é a angústia. Talvez se possa dizer, junto com a Leopoldina, que a angústia é um aborrecimento do tamanho do mundo.

Mas então porque continuamos a multiplicação do desejo, sabendo que isso nos faz mal, que isso nos enche de nada? É o próprio Eça nos dá a resposta, através de uma conversa, muitas páginas antes, entre Luísa e Leopoldina:

– Pois olha que com as tuas paixões, umas atrás das outras…

Leopoldina estacou:

– O quê?

– Não te podem fazer feliz!

– Está claro que não! – exclamou a outra. – Mas… – procurou a palavra; não a quis empregar decerto; disse apenas com um tom seco: – Divertem-me!

Eis então aqui diante de nós a resposta à pergunta que fizemos antes: divertimento. Leopoldina sabe bem que a multiplicação do desejo a conduz a nada, a uma aumento de nada, mas continua a fazê-lo pela simples razão de que a diverte. Cá estamos de volta a este nosso tempo, e como Eça de Queirós tão bem o descreveu: o nosso tempo é o tempo da multiplicação do desejo e do divertimento.

1 Ago 2017

O erro ontológico de Machado de Assis na análise de O Primo Basílio (I)

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]uma passagem da célebre crítica de Machado de Assis a Eça de Queirós, e mais particularmente a O Primo Basílio, lemos: “Para que Luísa me atraia e me prenda, é preciso que as tribulações que a afligem venham dela mesma; seja uma rebelde ou uma arrependida; tenha remorsos ou imprecações; mas, por Deus! dê-me a sua pessoa moral.” Ora, é precisamente isto que Eça não dá, nem quer dar. O que Machado de Assisquero deixar bem claro que me refiro ao senhor Machado de Assis enquanto leitor e não ao escritor Machado de Assis. Não se trata aqui do escritor Machado de Assis, mas sim do leitor, da leitura que Machado de Assis fez do romance do escritor Eça de Queirós O Primo Basílio – não via, não conseguia nem ver nem aceitar, era que Eça concedesse à pessoa, na figura do personagem, tão pouco valor. Mas para Eça, é isso que é o mais importante. Para Eça, o importante é mostrar o quanto a nossa vida está longe de ser nossa; o quanto a nossa vida está longe de nos pertencer e de respondermos inteiramente sobre ela. E, neste sentido, Eça é profundamente ontológico. O humano sabe muito pouco de si, da sua condição, daquilo que lhe está acontecer, das forças que decidem o seu destino. Isto é o que Eça de Queirós – o escritor, talvez não o homem – viu muito bem. Pois se o humano é assim, porque têm os personagens de ser diferentes? O que importa a Eça não são bons ou maus efeitos literários, bons ou maus episódios, sequer moral, que parecia ser tão importante para o leitor Machado de Assis, o que importa a Eça é o humano. O humano na sua situação no mundo.

Comecemos então por apurar as estruturas do humano que ardem em O Primo Basílio, as fundamentais, de modo a entender melhor a célebre passagem de Luísa, a que Machado de Assis se refere. As estruturas a analisar são: desejo, prazer e nada.

Encetemos então, e primeiramente, a distinção entre desejo e prazer, através de uma passagem do livro, onde Leopoldina conversa com Luísa, já muito perto do fim do livro. Leopoldina era uma mulher casada, um pouco mais velha do que Luísa, 27 anos, muito bela, “o corpo mais perfeito de Lisboa”, reputada de mulher viciosa, de ter vários amantes e com quem o marido de Luísa, Jorge, proibira esta de se encontrar. Luísa tinha crescido com Leopoldina e tinha admiração por ela, pela sua beleza e, de algum modo, pela forma decidida com que vivia. E gostava muito de ouvir o que a outra lhe contava acerca dos seus amantes. Antes de avançarmos para a passagem que se pretende analisar, veja-se outros episódios com Leopoldina. O primeiro, ainda Jorge está em Lisboa, de partida, embora não esteja em casa, e Leopoldina fala-lhe de Basílio, que ele havia chegado a Lisboa. Depois, o que não deixa de ser curioso, aliás bastante curioso, já com o marido fora, quando Luísa se preparava para ir visitar Leopoldina, e estava contente por isso, seu primo, Basílio, apresenta-se pela primeira vez desde o regresso, fazendo com que ela se decida a já não visitar a amiga, mas antes a ficar em casa com o primo. Era como se o Eça fizesse com que, ao invés das conversas da Leopoldina acerca dos seus amantes, ela iniciasse também um caminho de fazer as suas próprias conversas. Mais tarde, sendo já amante do primo e num ataque de arrependimento, querendo e não querendo acabar, pensa em falar com Leopoldina acerca do assunto, escreve Eça:

Sacudia a cabeça com impaciência, como se aquelas imaginações fossem os ferrões de insetos importunos; esforçava-se por pensar só em Jorge; mas as idéias más voltavam, mordiam-na; e achava-se desgraçada, sem saber o que queria, com vontades confusas de estar com Jorge, de consultar Leopoldina, de fugir para longe, ao acaso. Jesus, que infeliz que era!

Quando Eça escreve “consultar Leopoldina”, obviamente não quer que pensemos que se trataria de uma procura de começar a trilhar o curso do arrependimento. O que ela pretendia, seguramente, com essa hipotética consulta era uma concordância fora dela com os seus desejos dentro dela. Ou seja, o que ela pretendia de Leopoldina era que esta lhe falasse dos enormes benefícios de se ter um amante e de como isso não traz mal nenhum ao mundo, pelo contrário. Luísa queria duas coisas que lhe pareciam irreconciliáveis: sossego, paz de alma, como se usa dizer, e satisfazer seu desejo no corpo do primo. Trata-se, portanto, de uma situação que todos nós aqui presentes conhecemos bem. Não necessariamente em relação a um amante, mas em relação a alguém com quem costumamos dormir e queremos ouvir de uma amiga ou de um amigo que devemos continuar a fazê-lo, contrariamente a um possível fim. Não é que Luísa não continuasse amante de Basílio, sem a hipotética consulta – como nós não deixamos de continuar a ficar com alguém, se outros não nos apoiarem nessa nossa decisão –, mas depois da consulta com Leopoldina, sempre continuaria a sua aventura mais aconchegada, isto é, não continuaria sozinha, levaria consigo para o seu amante um “não sou só eu que penso assim”. Este “não sou só eu que penso assim” é de extrema importância para quem sabe que está a cometer uma falha ou apenas suspeita disso. Que essa consulta nunca se realize, não tem aqui importância, pois o que está em causa, o que importa mostrar é como Leopoldina, na economia do texto, aparece sempre ligada a uma agressão contra a convenção social. Pensar em consultar tal pessoa, só pode significar não querer se pôr de bem com o status quo, com o que é convencional. Por outro lado, quando diz “Jesus, que infeliz que sou!” está a dizer a verdade, a verdade que atinge a natureza humana nessa situação em que Luísa se encontra, isto é, sentir dentro de si, em si mesma, dois quereres contraditórios: um a exigir dela que se comporte como seria de esperar de uma senhora da sua condição; outro a exigir dela a satisfação do desejo pelo primo. A infelicidade dela, aqui, na frase acima, resulta da sua vida estar a ser assaltada pelo desejo, à sua revelia. O desejo que sente faz com que não tenha mão nela, não tenha possibilidades de se segurar, isto é, Luísa não tem o controlo da sua vida. Esta é a sua infelicidade. Aqui, a infelicidade não é o desejo. A infelicidade são duas coisas: o desejo agindo sobre ela de modo a tomar-se senhor dela, seu dono; e ela sentir, saber que não o deve fazer devido à sua condição de mulher casada. E que diz então Leopoldina a Luísa de tão relevante para a nossa análise? Estas seguintes e extraordinárias palavras, quase no fim do livro:

Não, realmente tinha vontade de outra coisa, não sabia bem de quê! As vezes lembrava-se fazer-se freira! (E estirava os braços com um tédio mole.) Eram tão sensaborões todos os homens que conhecia! Tão corriqueiros todos os prazeres que encontrara! Queria uma outra vida, forte, aventurosa, perigosa, que a fizesse palpitar – ser mulher de um salteador, andar no mar; num navio pirata… Enquanto ao Fernando, o amado Fernando dava-lhe náuseas! E outro que viesse seria o mesmo. Sentia-se farta dos homens! Estava capaz de tentar Deus!

E, depois de escancarar a boca, num bocejo de fera engaiolada:

– Aborreço-me! Aborreço-me!… Oh, céus!

Ficaram um momento caladas.

Iniciamos então aqui a nossa distinção entre desejo e prazer, na economia do texto de Eça e na apresentação da situação humana. O desejo, já havíamos mostrado anteriormente, com Luísa, tem o poder de nos transformar em escravos. Luísa, através do desejo, deixa de ter poder sobre a sua própria vida – quando estamos sobre esse efeito, costumamos dizer “deixei de pensar” –, Luísa deixa de ser ela no desejo. Mas agora, com Leopoldina, dá-se uma avanço na compreensão do desejo e seus mecanismos. O desejo é auto-fágico, ele traz em si mesmo a vontade de acabar, de se comer a si próprio. O desejo devora o desejo. Depois do desejo saciado, devorado, o prazer termina. Mas o desejo traz também em si, além da vontade de se acabar, uma promessa de prazer. O desejo promete prazer. É essa promessa de prazer, esse canto da sereia, que o humano não suporta ouvir, acabando por ceder ao que o desejo quer. Desejo e prazer não são o mesmo. Desejo é uma coisa que promete outra. Desejo promete prazer. Promete e dá (pelo menos, a maioria das vezes). O prazer é a morte do desejo, é o desejo a acabar-se, o desejo a comer-se a si próprio. No fim, acaba-se tudo: o desejo e o prazer. Por isso, tantas vezes acontece dizermos a nós próprios que o melhor é cair logo naquela mulher de uma vez (ou naquele homem), para depois termos sossego; pois o desejo por saciar não nos deixa sossegados, mas uma vez saciado acabou-se, voltamos a nós; e a mais das vezes é mesmo o melhor que temos a fazer, pois a promessa de um enorme prazer anunciada no desejo acaba-se por se tornar apenas fracções dessa promessa, pequenas fracções de um prazer, que faz com que isso não volte a acontecer e, quanto a esse assunto, ficamos sossegados. Mas o desejo renasce das suas próprias cinzas através de um aliado poderoso: a memória. A memória traz até nós o desejo e a sua promessa de prazer. A memória traz até, nesse trazer, aquilo que se não passou, se for caso disso, mas principalmente a idealização do que se passou. Um update do passado, daquilo que se passou. Seja com ou sem update, a verdade é que a memória devolve-nos o desejo, instiga em nós uma vontade de repetir o prazer. É assim que o desejo se tende a multiplicar. Tende a multiplicar-se em nós numa procura vã de encontrarmos um prazer que se não acabe, um prazer que veja o fundo ao desejo. Tudo isto porque a memória não nos dá descanso e permite uma entrada livre, ao desejo, em nós. A multiplicação do desejo acabará sempre, no seu melhor, numa frase assim: “E outro que viesse seria o mesmo. Sentia-se farta dos homens! Estava capaz de tentar Deus!” De facto, uma vez caídos na multiplicação do desejo, nenhum homem (ou mulher) nos pode salvar, só Deus. (continua)

18 Jul 2017