Carlos Morais José h | Artes, Letras e IdeiasO Xiao É longa e vetusta a discussão sobre a perigosidade de certos animais, geralmente de porte relevante, para os seres humanos. Alguns entendem esses bichos como bestas insensíveis, por vezes puros predadores — como os tubarões; doutras meramente perniciosos, ainda que sem intenção — como os ratos. Já sensibilidades de outro tipo, estribadas em observações científicas e numa forma derivada de compaixão, consideram escassas as situações em que um animal ataca um ser humano sem ter sido antes ameaçado. Alegando ser na Natureza extremamente raro o assassinato com fins não-alimentares, replica esta gente não existir nos animais a maldade abundantemente constatada na espécie humana. O tema adopta contornos mais sinistros quando os humanos desejam muito frequentar uma determinada área, mas receiam a presença de um certo animal, cujas práticas agressivas neles inspiram tamanho receio que só em extensos grupos se atrevem a desafiar a presumida ferocidade das bestas. É o caso da Montanha da Ovelha Negra, um lugar belíssimo, pontuado de cerejeiras e bambus de variadíssimas qualidades. Do seu ventre, emergem o jade e o cobre; e pelas suas encostas desce o Rio da Laca que, num vale esmeralda, se funde no Rio Wei. Trata-se de uma paisagem arrebatadora, sobretudo em certas épocas do ano, sedutora de pintores, poetas, calígrafos e aventureiros de sensibilidade requintada. O problema é que, neste paraíso terreal, habita uma espécie de macaco de grande porte, dotado de longos braços, cujo carácter o predispõe para sentir um profundo desagrado pela presença humana nos que considera seus territórios. E, motivado por essa antipatia, não se exime em atirar pedras e mesmo atacar com ferocidade os incautos viajantes. Para o efeito, usa os seus fortes braços, capazes de um abraço mortal, e mesmo os dentes, extremamente afiados por extraírem alimento de cascas de áceres e bambus. Conhecido pelo nome de xiao, este animal mantém os humanos à distância, sem os atacar de surpresa. Pelo contrário, o seu nome (xiao, que quer dizer barulhento) indica que se desdobra em múltiplos guinchos e urros, de carácter agonístico, numa óbvia tentativa de espantar os visitantes. No entanto, se estes insistem em passear pelos territórios que considera como seus, o xiao é bem capaz de partir para a violência e a sua tremenda força e circense agilidade fazem dele um inimigo temível e difícil de derrotar. Certos textos admitem que o grupo de xiaos da Montanha da Ovelha Negra será, na verdade, uma tribo de humanos que, desde a queda de uma dinastia em tempos imemoriais, ali se terá isolado e, desde então, escusado a qualquer contacto com o mundo exterior àquela maravilhosa montanha. A aparência símia, os longos braços e mesmo a cauda, seriam artifícios utilizados para inspirar terror nos que se atrevem a percorrer aqueles domínios. Contudo, poucos subscrevem tão fantasiosa teoria. Mestre Zuo diz: “O mal é uno, embora se manifeste na multiplicidade. Daí que não possamos atribuir a um animal especiais intenções ou mesmo outro objectivo que não seja cumprir um destino que não escreveu. Talvez vos surpreenda saber que incluo os humanos neste grupo.”