Não sermos o que fazemos

You know the nearer your destination The more you’re slip slidin’ away
Paul Simon

 

Faltam menos de dez minutos para o concerto da Lisbon Poetry Orchestra, um colectivo poético-musical que tem a caridade de me albergar como um dos seus. O camarim onde estou, partilhado com músicos e outros que como eu irão dizer poemas ficou miraculosamente vazio, com a excepção da minha presença. Percebo a vozearia nos corredores vinda dos meus colegas e amigos que naturalmente denuncia a excitação que antecede a entrada num palco. Deveria estar também assim, e estou. Mas um ínfimo instante, não mais do que um nanosegundo, foi o suficiente para me deixar assombrar por uma pergunta: “Como é que eu vim aqui parar? “

Na altura não tive tempo para responder. Agora tento, à medida que os dedos se movem pelo teclado com uma autonomia veloz que só me lembra as famosas descrições das experiências “fora do corpo”. A pergunta não se refere apenas à situação em que me encontrava: tem a ver com uma questão maior, quase existencial. Ou seja: nada da minha vida me preparou para entrar num palco e enfrentar plateias. Mas gosto e, ao que parece, não me safo mal.

Por outro lado, também escrevo, sou jornalista e tenho uma série de outras actividades em que me regozijo, muitas vezes díspares entre si.

Como é que vim aqui parar, então? Não sei, ou melhor, suspeito. Mas este frenesim quase renascentista ainda é mal compreendido pela maior parte das pessoas. Percebo: estamos habituados a rótulos que nos apaziguam, a pistas e a uma estranha lógica que me parece perversa e que poderia ser traduzida pelo postulado “diz-me o que fazes, dir-te-ei quem és”. E quando se faz muitas coisas quem aparentamos que somos é incompreensível para quase toda a gente.

Há pouco tempo um amigo contou-me uma história divertida mas que é exemplar a este respeito. Numa promoção televisiva para apresentação de um júri que iria presidir às escolhas de uma famosa gala da estação, apareciam as fotos dos ilustres jurados acompanhadas de uma legenda: fulano de tal, cantor; fulana de tal, actriz e assim por diante. Acontece que um dos elementos do júri era Vasco Graça Moura – poeta, escritor, político, tradutor, gestor, letrista…enfim, muitas coisas. O responsável da legenda, perante esta dificuldade, não hesitou e saiu-se com esta hilariante amenidade: “Vasco Graça Moura, intelectual de múltiplos talentos”.

Esta ontologia da profissão – és o que fazes, mais uma vez – é limitadora e para mim contrária à ideia de liberdade que possuo e persigo. A vida não é planeada e à medida que nela avançamos as surpresas e descobertas são ainda mais gratificantes. Já aqui escrevi uma vez que o diletantismo é seriamente subestimado. O diletante é o verdadeiro amador, o que ama aquilo em que está empenhado em amar. Que isso confunda os outros é apenas reflexo de uma cultura em que a especialização parece ser o garante de responsabilidade. Não é.

Como é que eu vim aqui parar a pouco mais de meio do caminho da minha vida, para parafrasear o padroeiro desta coluna? Não sei, amigos e esse não saber é bom. Mas sei isto: quando numa ocasião social me dirigem a pergunta da praxe, “Então o que fazes?” já consigo responder sem medo ou hesitações: faço o que gosto. E isso, amigos, é o meu humilde troféu que é só meu. E é por essa possibilidade que vim aqui parar.

12 Mai 2021

Regras e pedras

TSF, Lisboa, 21 Março

 

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hamemos-lhe coincidência. Há anos que não estreitava o Fernando [Alves], assim de braços e mãos (as mão dele mexem que nem ramos), mas sobretudo de conversa, até que a poesia, no seu dia mundial, que também diz ser da árvore, fez-se pretexto para vir às torres de onde se divisa o trânsito, que parece bombear e ser bombeado pelo coração da cidade.

Talvez a metáfora se ajuste, mas custa-me a crer que seja o dos carros o movimento que vivifica Lisboa. Por um dia que seja a circulação de versos, muito para além deste concreto noticioso do lançamento dos Poetas Portugueses de Agora, versão dita e musicada pela Lisbon Poetry Orchestra.

O reencontro foi solar e energético, apesar de tintado pela melancolia, e temo não ter estado à altura do inquérito sempre desvelado e delicado do Fernando. Continuarão comigo dia afora alguns versos do Paulo José Miranda, ditos pelo [André] Gago: «a marcha/ o ritmo que nos é imposto/ o tudo que há para fazer/ tanto que não chegamos a horas/ os dias batem-nos à porta/ os dias cobram dívidas/ cobram dúvidas». Não matei as saudades.

Jardim da Parada, Lisboa, 21 Março

Corro para a montagem a Feira do Livro de Poesia, que a Casa Fernando Pessoa organiza no bairro cujas regras foram ditadas pelo [Fernando] Assis Pacheco. Reza uma delas: «não deixes nunca de contrastar os homens sobre as pedras». Os livros são boas pedras de contraste. No jardim não encontrei pedras que não as de calçada. Homens circulavam ou assentavam em minúcias de alheamento. Este ano, por via da chegada ao bairro do Espaço Llansol, a escritora sobrevoou a praça. Na véspera, ignorando que, para ela, «a ideia da poesia é a prosa», escolhi para levar apenas os livros de poesia e fiquei surpreendido: já enchem uma barraca. Queria pôr sobre a mesa negra apenas um livro por dia e convidar quem passava a entrar. Não era boa ideia, logo a realidade mo explicou. E depois também acrescentámos, a pedido, prosa e ilustração. Isto anda tudo ligado. Ou desligado: os folhetos ignoram as editoras e os livreiros que alinharam. «Faz-te conhecer pelos gestos de todos os dias; mesmo os gestos neutros, mesmo os inúteis», diz o Assis Pacheco.

Templo da Poesia, Oeiras, 21 Março

No cume do Parque dos Poetas desponta «Templo» que ainda não tinha visitado. Vista esplendorosa, horizonte esticado a verso do engenheiro, bizarra arquitectura cruzando insecto e nave, um vento de nos atirar para longe. Trocámos por miúdos o livro a que vínhamos, o navio dos de agora da LPO, para jornalistas curiosos e plateia rendida, prestes a zarpar. Andei por ali às voltas a tentar perceber a estranheza do lugar. Ecoou outra regra, tão boa, do Pacheco. «Saboreia os teus trajectos com uma paixão minuciosa».

Auditório Ruy de Carvalho, Carnaxide, 21 Março

Perante uma plateia calorosa, assistimos à dança, por vezes combate, das altas vozes com a música luxuriosa, enriquecida para a ocasião com o quarteto de cordas Naked Lunch. São variadas as paisagens sonoras, permitindo e até solicitando a dureza, a suavidade, a interpelação daas leituras, quando um corpo se desloca do escuro para chegar à frente e dizer. Aqui e agora, vestem-se os diseurs de personagens principais, primordiais leitores. Os poetas recolheram-se ao silêncio criador, depois de terem respondido às melodias lançadas, ainda assim conservando o que possuem de único, o que acrescentam ao hoje das letras. E acrescentam bastante: pensamento, ritmo, crueza, experiência. Dita aqui e assim, para palco e auditório, a palavra, o verso, o poema transfigura-se, ganha tonalidades, formas, um corpo distinto. Prevejo até que vá mudando de concerto para concerto, de uma audição para outra, mesmo em casa. Daí o diálogo que o livro procura estimular, com convite ao desenho, à colagem, às notas, ao constante regresso. (A foto de Vitorino Coragem reúne os «criminosos»).

CCB, Lisboa, 22 Março

Neste Obra Aberta (https://www.abysmo.pt/obra-aberta), gerido desta vez pela Dina Soares, cruzaram-se o [António] Valdemar, a interpretar Almada Negreiros como se de cidade se tratasse, desenhando com absoluta liberdade as personagens que a habitam, e a Aldina Duarte trauteando o luto e o amor e a espiritualidade a partir de Llansol (e outros), sem perder a raiz do fado. Gente assim, cruza tudo, merece um bairro de íntegros cidadãos onde se possa aplicar nova regra assispachequiana: «Vive direito. Vive claro. Evita enganar-te neste ponto.»

Horta Seca, Lisboa, 22 Março

Manda-me o José Luiz [Tavares] relatos de triste episódio triste, passado com ele à porta da Casa Fernando Pessoa. Disparei mensagens na vã tentativa de impedir que se alastrasse o mal-entendido, que outra coisa não poderá ter sido.

«Passados instantes entrevi, afirma um Zé Luiz travado na entrada quando se preparava para ouvir versão da Tabacaria em crioulo «uma senhora de fogachos loiros nos cabelos, que entretanto descera até ao patamar da recepção, falar com o vigilante, acenando que não com a cabeça. Logo este se dirigiu a mim, que se encontrava do lado de fora, dizendo: «Lamentamos, cavalheiro, por razões de segurança…». […] Quando já ia embora pelo passeio do outro lado da rua, sorrindo como o Esteves sem metafísica, vi aproximarem-se duas senhoras, cuja tez ainda divisei no lusco-fusco de fim de inverno, e sem delongas sumiram casa adentro. […] Aconteceu num dia mundial da poesia – e sou poeta. Aconteceu na cidade de lisboa – e dediquei-lhe em livro um monumento de palavras intitulado Lisbon Blues.

Foi no bairro de Campo de Ourique, e estavam os meus livros numa feira no jardim da parada. Aconteceu na Casa Fernando Pessoa, e sou tradutor dele. Foi num dia mundial contra a discriminação racial e senti-me profundamente preto.» A sensibilidade não se ensina, cultiva-se. Lá diz o mestre, «pratica a arte da boa vizinhança: estás numa terra pequena, não sejas opaco».

Titanic Sur Mer, Lisboa, 22 Março

Quando me encontro perdido, não procuro orientação, mas jazz. Nenhuma sustância me explica o modo como as coordenadas da percepção se desdobram (para baixo?, para cima?) em sólido alicerce. De ponte ou arranha-céus. Arrasto vários pesos, o das tarefas cumpridas, o das inacabadas e insatisfeitas, o da chuva que por acaso me dissolve, o dos gestos neutros que escondem na sombra a agressão, o das contas e navalhadas por ajustar. Não tenho aqui o meu whiskey, deixei no bengaleiro o parco carisma, abanco de olhos na linha de terra do palco, no Titanic demasiado acima do gelo, e espero que passe, na paragem certa, a do autocarro, os Lokomotiv, do Carlos [Barretto], do José Salgueiro e do Mário delgado, mai-lo seu comemorativo «Gnosis», título roubado ao [José] Anjos.

Percebo de imediato a bússola, pois tocam com o corpo. O instrumento dissolve-se em cada qual para subir ao palco, este que desafia, que chama a si o outro, com arranques e riffs e batidas, usando as mãos, os braços, os lábios para definir o etéreo. «Cair com Mãos nos Bolsos» (todo um programa intransmissível), ou o «Porta Líquida» podem servir para começo de conversa. Eles riem e o diogo do sorriso logo se torna corda a ressoar a cumplicidade, gozo, desafio, o andalá que tudo resolvia nos tempos da rua. Mal me apanho a deixar-me ir, o rock ergue-se sacrificando à energia, desbaratando a dita, beliscando a pele que pede repouso.

Na noite longa longuíssima dos que partem tudo com um sopro, a boa criação dos malcriados que inventam céu quando o ar lhes falta, que descobrem degrau quando o chão se move, em escuridões deste calibre precisamos mais uns dos outros. A arte feita trampolim, a âncora de súbito evola-se nuvem.

28 Mar 2018