Caso Rota das Letras no relatório sobre direitos humanos da ONU

A suspensão da vinda de três escritores ao festival literário Rota das Letras, depois do aviso do Gabinete de Ligação do Governo Central, consta no mais recente relatório sobre direitos humanos enviado pela Associação Novo Macau à ONU

 

[dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] sétima edição do festival literário Rota das Letras ficou marcada pelo cancelamento da presença dos escritores Jung Chang, Suki Kim e James Church, depois da organização do festival ter recebido um aviso do Gabinete de Ligação do Governo Central na RAEM de que a sua presença não seria “oportuna”.

O caso chega agora à Organização das Nações Unidas (ONU) pela mão da Associação Novo Macau (ANM), que abordou a questão no seu mais recente relatório sobre o panorama dos direitos humanos no território. A participação foi feita no âmbito da revisão da convenção da ONU nesta área.

“Em Fevereiro de 2018, a organização do Festival Literário de Macau [Rota das Letras] retirou o convite a três proeminentes autores depois do seu director ter recebido a sugestão do Gabinete de Ligação de que ‘não seria garantida a entrada em Macau” desses três escritores”, lê-se no relatório ontem apresentado. De frisar que o caso foi uma das razões para o pedido de demissão do director de programação do festival, Hélder Beja, que, numa entrevista, confessou que esta situação levou à abertura “de um precedente”.

Na visão dos activistas da Novo Macau, “os laços históricos, culturais e económicos entre Macau e as regiões vizinhas fizeram com que a liberdade de entrada e saída de Macau fosse parte da vida das pessoas”.

Tendo referido também os casos de proibição de entrada de deputados e académicos de Hong Kong, bem como de jornalistas da região vizinha durante a passagem do tufão Hato, o relatório alerta para a necessidade de divulgação das verdadeiras razões para a proibição de entrada de pessoas em Macau.

A Novo Macau pede que a ONU exija ao Governo “que crie os recursos efectivos para que as pessoas impedidas de entrar em Macau tenham acesso às verdadeiras razões para a entrada no território”. Tudo para que “se possam defender da avaliação das autoridades”. Neste sentido, os activistas consideram fundamental a revisão da lei de protecção dos dados pessoais, em vigor desde 2008. Tudo para que se possa “providenciar medidas efectivas para que os cidadãos, cuja entrada no território é recusada, tenham acesso à informação que as autoridades detém sobre eles”.

Até ao momento o Governo sempre negou que haja uma “lista negra” de pessoas proibidas de entrar no território, tendo afirmado que a negação de entrada se deve a questões de segurança interna. Contudo, a ANM diz que “o senso comum leva-nos a crer que estas justificações não são muito convincentes”.

 

Olha o passarinho

A proposta de lei da cibersegurança é outro dos pontos que a ANM destaca no seu relatório, sendo referido que “o público não tem possibilidades de verificar se a lei [Regime jurídico da videovigilância em espaços públicos] é respeitada pelas autoridades policiais”, além de que “o mecanismo para proteger os cidadãos de abusos ao nível dos dados pessoais é fraco”.

Isto porque “apesar de Macau ter adoptado a lei de protecção dos dados pessoas em linha com [as directivas da União Europeia], os actos do Gabinete de Protecção dos Dados Pessoais (GPDP) têm posto em causa a sinceridade no que diz respeito à protecção da privacidade dos cidadãos”.

A Novo Macau recorda que, nos últimos tempos, “o GPDP tem unido forças com a polícia para reprimir iniciativas civis”, além de que “apoiou a proposta de lei da cibersegurança sem reservas”.

Neste sentido, o relatório aponta não só para a obrigatoriedade das autoridades em revelarem “informação completa e verdadeira sobre as capacidades das tecnologias de vigilância em rede, no que diz respeito à nova proposta de lei da cibersegurança”

A revisão da lei de protecção de dados pessoais, de que fala a Novo Macau, iria também criar um mecanismo mais efectivo no tratamento das queixas apresentadas, uma vez que nunca há conclusões sobre os processos.

A desigualdade de género existente na legislação local, sobretudo na lei de prevenção e combate à violência doméstica, e a ausência de eleições directas para o futuro órgão municipal sem poder político, Chefe do Executivo e deputados à Assembleia Legislativa são outros dos pontos referidos no documento.

5 Abr 2018

Câmaras em uniformes da polícia podem não ter base legal

A partir de amanhã, 100 agentes da PSP vão receber câmaras de filmar que serão usadas nos uniformes. Apesar de Wong Sio Chak ter garantido que só serão usadas em caso de necessidade, e seguindo instruções claras, a aplicabilidade da medida pode não ter base legal. As instruções específicas e o parecer do Gabinete para a Protecção dos Dados Pessoais que lhe deu luz verde ainda não foram tornados públicos

 

 

[dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] partir de amanhã serão disponibilizadas 100 câmaras para as forças de segurança de Macau, que numa primeira fase serão atribuídos a agentes dos comissariados policiais e os do Grupo de Patrulha Especial. A medida foi anunciada pelo secretário para a Segurança, Wong Sio Chak, durante o fim-de-semana, tendo assegurado que os aparelhos apenas serão ligados em caso de necessidade e que existem instruções claras sobre a sua utilização.

Porém, a medida aparenta a carência de base legal, ou seja, o uso destas câmaras não está regulado no ordenamento jurídico de Macau.

“Não sei qual é a base legal para esta medida, se não houver pode colocar em causa o princípio da legalidade e, se for usado como prova constituirá um acto nulo”, explica Luís Cardoso, advogado. “Mal, ou bem, tem de haver uma lei que regule devidamente esta situação prevendo, por exemplo, quem tem acesso a estas imagens, a não ser que se queiram refugir nos argumentos da ordem e tranquilidade públicas, conceitos indeterminados para mim”, acrescenta o jurista.

Ao HM, a Polícia de Segurança Pública (PSP) referiu que “os agentes policiais podem fazer uso da câmara em situações que põem em causa a ordem pública, o interesse público, a segurança de pessoas, bens e valores”, quando ocorram “confrontos, ou quando as acções policiais são impedidas”.

Em relação às regras que os agentes devem observar, a PSP limitou-se a reproduzir as palavras do secretário afirmando que o uso do equipamento segue “estritamente as regras do seu uso”. Não há informação quais as regras que estão em causa, ainda assim, a PSP refere que “assim que puderem, os agentes devem sempre gravar o motivo do uso” do equipamento, “garantindo que o uso e acesso dos dados estejam em conformidade com o princípio da confidencialidade dos dados pessoais e as leis e regulamentos relevantes”.

É aqui que começam os problemas legais desta medida. No ordenamento jurídico de Macau, um dos diplomas mais próximos da realidade em questão é a lei que regula a videovigilância das câmaras de CCTV espalhadas pela cidade, o regime jurídico da videovigilância em espaços públicos. De acordo com informação dada ao HM pelo Gabinete para a Protecção de Dados Pessoais (GPDP), esta lei não se aplica à medida dos agentes policiais munidos com câmaras. Neste caso, Luís Cardoso acha que “se não se remete para a lei da videovigilância dos espaços públicos, então, aí há um vazio legal”.

 

Por cumprir

A questão da vigilância tem sido um dos desafios legais de maior complexidade enfrentado pelas autoridades na Era da tecnologia. Catarina Guerra Gonçalves, advogada e jurista especializada na área dos dados pessoais, entende que “só com casos concretos é que se pode ver a aplicabilidade desta medida”.

A advogada recorda que em casos desta natureza há dois valores, “de certa forma conflituantes”, a segurança/ordem pública e a reserva da intimidade da vida privada. Como tal, é necessário avaliar a adequação e proporcionalidade dos meios utilizados, “tendo em conta os direitos fundamentais que estão a ser atingidos e as finalidades que estão estabelecidas”, uma competência do GPDP. A entidade já se pronunciou favoravelmente à medida, tendo adiantado ao HM que o parecer será publicado em breve.

Segundo Catarina Guerra Gonçalves, “há partida, pode haver conflito de valores” entre segurança e privacidade. A jurista prevê que o fundamento legal para esta medida se situe no nº4 do Art.º 6 da Lei da Protecção de Dados Pessoais. Ou seja, que o tratamento destes dados seja feito no exercício de uma missão de interesse público, ou exercício de poderes da autoridade pública. O mesmo artigo, que estabelece as condições de legitimidade do tratamento de dados, diz no número 1 que estes só podem ser efectuados “se o seu titular tiver dado de forma inequívoca o seu consentimento”.

 

À queima-roupa

“Como é que isto vai resultar na prática não sei, poderá dar azo a alguns abusos”, projecta Catarina Guerra Gonçalves. A advogada ouvida pelo HM considera que, “talvez a medida seja pouco ponderada do ponto de vista legal”. Apesar do GPDP afirmar que a lei da videovigilância em espaços públicos não se aplica a esta medida, é um diploma que prevê situações aproximadas. Assim sendo, e como se trata de uma câmara de vigilância, é obrigatório que os agentes que usam o equipamento estejam devidamente identificados como tal.

Outro requisito prende-se com a necessidade de publicar em Boletim Oficial um despacho que autorize o uso das câmaras, que indique quantas são e quem as irá usar. Depois de uma pesquisa em Boletim Oficial, verificámos que estes requisitos não foram cumpridos. “A necessidade do titular saber que está a ser filmado talvez não tenha tido sido levado em conta pelo GPDP”, comenta a jurista especialista em protecção de dados.

“Se não houver publicação em despacho do Boletim Oficial do número de câmaras que passa a funcionar, por esta via esta medida está inquinada por não observar um requisito legal”, elucida Catarina Guerra Gonçalves.

É de salientar que, legalmente, se estivermos perante um caso em que está a ocorrer um crime, o consentimento do titular é dispensado porque há um interesse maior em questão.

Caso não se verifique um crime, se não existir um aviso às pessoas de que estão a ser filmadas estas não podem dar o seu consentimento. Nesse caso, segundo Catarina Guerra Gonçalves, “a legitimidade para fazer a filmagem terá de ser em parâmetros muito estritos, só em casos realmente muito excepcionais”.

 

Linha azul

Esta medida é utilizada, com algumas falhas reveladas por casos trágicos, pela polícia norte-americana. Em Inglaterra, o uso de câmaras nos uniformes dos agentes de autoridade também foi implementada, mas estes são obrigados a informar a pessoa de que vão iniciar a filmagem.

De acordo com a PSP, “sempre que puderem, os agentes devem gravar previamente para a câmara” a razão do seu uso, referindo o tipo de ocorrência em causa e entregar o equipamento no final do serviço.

Foi também revelado que “os agentes têm de seguir os procedimentos”, e que “o acesso aos dados deve ser feito em conformidade com o princípio da confidencialidade dos dados pessoais e as leis e regulamentos relevantes”.

Luís Cardoso até concorda “que todos os polícias fardados usem câmara”, mas que estas filmagens “não devem servir de prova apenas para a acusação, mas também para a defesa”, apesar de não ver qual é a base legal para a implementação desta medida.

Quando necessita recorrer a imagens de câmaras CCTV, Luís Cardoso enfrenta constantes barreiras. “Eu, como advogado, e muito dos meus colegas, quando requeremos ao tribunal para que oficie a polícia ou a DSAT para nos fornecer imagens devido a acidentes de viação, muitas vezes a resposta é negativa”, conta.

13 Mar 2018