Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasLevinas – Segundo movimento [dropcap style≠’circle’]2.[/dropcap] A minha experiência do Outro, se assim podemos dizer, dá-se na morte do outro. Porque a minha própria morte é a morte do outro. O cuidado que cada um tem em tardar a sua própria morte, em cuidar de si, não deriva de nós, mas do outro. É outro quem eu vejo morrer e não eu mesmo. A minha morte, aquela que ninguém pode viver por mim – ninguém morre a morte de ninguém, cada um tem de morrer por si – vem do outro. É pelo outro que eu sei da minha morte. Na sua “Nota de Apresentação” a “Deus, a Morte e o Tempo”, de Levinas, Fernanda Bernardo diz mesmo que “a morte é agora pensada e sofrida a partir da morte do outro. A partir da mortalidade inscrita no seu rosto que nos reclama. E que nos reclama através do grito lançado da sua vulnerabilidade extrema. (…) Um grito que solicita, em suma, a nossa responsabilidade ou o nosso amor.” (p. 27) Esta solicitação levantada pelo outro, pela sua vulnerabilidade extrema faz também ver o sentido do amor. Levinas escreve: “Aquilo a que, através de um termo um tanto gasto, chamamos amor é, por excelência, o facto da morte do outro me afectar mais do que a minha. O amor do outro é a emoção da morte do outro. É o meu acolhimento de outrem, e não a angústia da morte que me espera, que é a referência à morte. Encontramos a morte no rosto de outrem.” É indissociável, em Levinas, este pensamento filosófico acerca do outro do pensamento religioso judaico. Em conversa com um amigo e escritor judeu, Ricardo Ben-Oliel, ele diz-me: “O problema do Outro assume no judaísmo a maior das importâncias. O monoteísmo vem substituir os deuses por um só que não se vê, que não se ouve, mas que está. É, no fundo, o absolutamente Outro. A relação religiosa passa a ser, em grande medida, uma relação ética e de respeito para com a Criação, obra desse Deus que não se vê, do absolutamente outro. Ora a maior das criações será o próprio homem, o Outro, que tem de ser estimado e respeitado como a mais significante das criações divinas. O judaísmo assume, assim, um carácter fundamentalmente ético; é uma religião para adultos, como diz o próprio Levinas. A importância do Outro assume no judaísmo uma tão grande dimensão que nem Deus desculpará no dia de Yom Kippur [– Dia do Perdão ou Dia da Expiação, é o mais sagrado de todos os dias do ano judaico, durante o qual se faz jejum absoluto, se reza pelo perdão das ofensas contra a lei divina e se pede perdão àqueles a quem ofendemos –] as faltas que alguém tenha cometido para com o Outro. Deus desculpará, sim, as faltas cometidas para com Ele, no desrespeito pelos princípios da Tora. Mas Deus não intervém para desculpar as faltas que alguém tenha cometido para com Outro. Só o Outro, o ofendido, o poderá fazer. Deus, o Todo Poderoso, vê a sua ‘competência’ limitada, pois transferiu parte dela para o Homem. E nessa qualidade, tem o homem o poder de não perdoar. Mas já o perdão humano devera ser concedido se o ofensor sinceramente o solicitar.” De facto, podemos ler na Mishna: “As faltas do homem para com Deus são-lhe perdoadas no Dia da Expiação; as faltas para com os outros não lhe são perdoadas no Dia da Expiação se não se apaziguou com os outros.” Esta relação do Outro connosco, pois é do Outro que vimos, quer seja os pais ou Deus, assume uma concretude no Rosto. O Rosto é a parte visível do infinito, e a palavra que o dá a ver é responsabilidade. A responsabilidade é a estrutura essencial, primeira, fundamental da subjectividade. Deve entender-se a responsabilidade como responsabilidade por outrem, como responsabilidade por aquilo que não fui eu que fiz, ou que não me diz respeito. Levinas, em Ética e Infinito, cita uma passagem fundamental de Os Irmãos Karamazov, de Dostoievsky: “Somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, e eu mais do que os outros.” E continua, Levinas, “Não devido a esta ou àquela culpabilidade efectivamente minha, por causa de faltas que tivesse cometido; mas porque sou responsável de uma responsabilidade total, que responde por todos e por tudo o que é dos outros, mesmo pela sua responsabilidade. O eu tem sempre uma responsabilidade a mais do que todos os outros. Sou eu que suporto outrem, que dele sou responsável. (…) De facto, trata-se de afirmar a minha própria identidade do humano a partir da responsabilidade.” (p. 82 e 84) Esta filosofia é uma ética. Mas é uma ética muito distante da deontologia, do utilitarismo ou de uma moral virtuosa. A ética aqui é uma filosofia primeira, como ele mesmo a define.