Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA mais recente provocação de Lars von Trier [dropcap]O[/dropcap] novo filme de Lars von Trier, estreado este ano em Cannes e que tem estreia marcada para o Nimas neste início de 2019 – amanhã, 3 de Janeiro – tem como foco um serial killer, Jack (Matt Dillon), Mr. Sophistication, que vai estabelecendo um diálogo com Vergo (Bruno Ganz), numa clara analogia à Divina Comédia de Dante. Podemos ver o filme de dois modos distintos, mas que se entrecruzam: o modo literal e o modo metafórico. Irei começar pelo primeiro modo de ver. Aqui o filme terá de ser visto através do distúrbio radical que conduz um ser humano a matar outros. A história de alguém que está entre nós como se não fosse um de nós – e não é, de certo modo – e despede a grande maioria dos espectadores de identificação. Na literalidade da narrativa, o espectador fica no lugar daquele que no início do século passado ia a uma feira ver as aberrações que a natureza produzia no ser humano. Porque, felizmente para a maioria de nós, Jack é uma aberração, um desvio radical do comportamento humano. Ele não mata pessoas por dinheiro ou porque em algum momento se enfurece e reage intempestivamente, ele mata pessoas por prazer e por considerar um acto artístico. Ele compara a morte às maiores criações humanas. Ao longo do filme assistimos a um excerto de um documentário em que aparece Glenn Gould a tocar Bach ao piano. Mas também compara a decomposição do corpo humano à decomposição da uva na criação dos vinhos licorosos como o Sauternes. Jack não só mata, como guarda os corpos numa câmara frigorífica. Estamos claramente nas franjas do humano. Ninguém ou muitos poucos se podem aqui identificar com Jack. Jack é um monstro, uma aberração humana, um erro de Deus e da natureza. Visto neste modo literal, a própria narrativa do filme torna impossível a identificação do espectador, pois a descida ao Inferno inviabiliza essa mesma identificação. Lars von Trier impede a identificação ao estabelecer a cumplicidade entre este novo Virgílio (Bruno Ganz) e Jack. E na literalidade do filme Jack não somos nós. É também neste modo de ver o filme que explode um dos pontos mais polémicos do filme, a aproximação deste fazer a morte à arte. Jack fala mesmo de Hitler e de Estaline como ícones. Mas a pergunta mais pertinente é a que nós mesmos fazemos: aonde é que termina a violência que pode ser considerada arte? Qual é o grau de violência a partir do qual deixa de haver arte? Por exemplo, de modo geral estamos de acordo que os filmes de Van Damme, de Stevan Seagal, de Chuck Norris não são arte, mas entretenimento, e mau entretenimento. E, por outro lado, em que pé ficam os filmes de Tarantino? Desde o violentíssimo Resevoir Dogs até à parodia Kill the Bill? E filmes de autores ainda mais independentes, como sejam os casos de Pasolini – por exemplo o Salò ou os 101 Dias de Sodoma – e de Abel Ferrara – por exemplo o The Bad Lieutenant ou o Funny Games de Michael Haneke? Até onde podemos usar a violência numa obra de arte sem que a arte deixe de ser arte? A pergunta vai um pouco mais longe, pois de modo geral a aceitação da violência na arte advém da aceitação do realismo. A premissa de que temos de filmar o real, temos de filmar aquilo que se passa, aquilo que acontece. A arte não pode fazer como a avestruz e evitar ver a realidade. Assim, quando a violência filmada ou escrita advém de uma realidade ela é aceite pela arte. E do mesmo modo que o humano tem franjas, limites radicais de ser humano, como é o caso deste Jack, também a realidade tem as suas franjas. Um serial killer é uma dessas franjas. Assim como o são os traficantes de órgãos humanos, de armas e de drogas. São realidades que estão nas franjas da realidade e, por isso mesmo, ignoradas pela arte. Se a arte se atrever a tocar nessas franjas, imediatamente é transformada em entretenimento barato ou kitsch. Isto pode advir de várias razões, uma delas é que os senhores das academias, quer de áudio-visuais, quer literárias são pessoas com vidas completamente além destas realidades, eles não vivem nestas zonas do humano. Por conseguinte, o seu olhar acerca disso será sempre a menos e a mais. A menos, porque não sabem nada do que acontece, a mais porque tendem a mistificar. Mas outras razões haverá, seguramente. Seja como for, o filme levanta a desconfortável pergunta acerca do que legitima ou não a relação entre violência e arte. Quanto ao outro modo de ver o filme, pelo seu lado metafórico, a identificação torna-se evidente, pois o protagonista representa cada um de nós cada vez mais fechados em nós mesmos, nas nossas necessidades, nos nossos caprichos, nas nossas preocupações e prazeres. Cada um de nós não levanta o olhos do monitor, seja ele do portátil, do ipad ou do iphone para atentar no outro. Os mais jovens chegam a estar lado a lado a conversar através do telemóvel. Mas não é uma crítica às tecnologias, mas a este nosso contínuo afastamento uns dos outros. Já só falamos do outro para dizer mal. Isto aparece no filme, na argumentação de Jack, por outras palavras. A vida humana está às moscas. A falta de empatia de Jack pelos outros representa a nossa crescente falta de empatia uns pelos outros. Numa cena do filme, a única em que mostra Jack próximo de uma relação com outro ser humano, e antes de assassinar essa mulher, ele incentiva-a a pedir ajuda, a grita por socorro, e ele mesmo grita na janela em busca de socorro, mostrando claramente que ninguém quer saber de ninguém, ninguém está disposto a sair de sua casa, de seu quarto para vir ajudar outrem. Várias são as palavras escritas em cartazes que Jack vai deitando fora ao longo do filme, à imagem do teledisco de Bob Dylan “Subterranean Homesick Blues”, que indicam o egoísmo da nossa sociedade actual. Não são apenas palavras que o acusam, mas que nos acusam a nós. Que o modo metafórico seja aquele que Lars von Trier quer que vejamos parece evidente, não só pela estrutura narrativa, que é ela mesma uma metáfora, uma alegoria, um poema, mas também pelo seu fim moralista. Assim, aquele que no fim cai no mais profundo abismo de fogo do Inferno somos todos nós, aqui e agora. Não porque matámos alguém, mas porque matámos ou estamos a matar o humano que somos.