Breve nota sobre o Governador José Carlos da Maia (1878-1921)

Tereza Sena apresenta no HM uma nota biográfica de José Carlos da Maia, Governador de Macau entre 1914 e 1916 e assassinado em Lisboa há 100 anos, no âmbito do episódio “Noite Sangrenta”. A historiadora está a preparar um livro sobre estes anos marcados pela implantação da República em Portugal e na China, sem esquecer a I Guerra Mundial. A autora disse que o livro “está muito avançado”, mas o projecto encontra-se , para já, suspenso, não podendo ser adiantada uma data para a sua conclusão

São de todos conhecidos o carácter idealista, a filiação maçónica e a prática carbonária, bem como a acção revolucionária que tornou Carlos da Maia num dos heróis da República, convicções essas que, uma vez à frente dos destinos de Macau, o fizeram apoiante da jovem República chinesa e, muito particularmente, de Sun Yat Sen (1866-1925), seu fundador e primeiro Presidente, como é testemunhado na por demais conhecida carta de agradecimento que este lhe endereçou em 23 de Junho de 1916. Motivada pelo facto de Maia ter recusado a extradição dos apoiantes de Sun Yat Sen fugidos para Macau após o afastamento deste da Presidência e a reviravolta de Yuan Shikai (1914-1966), atribuindo-lhes o estatuto de “refugiados políticos” e negando o de “criminosos” — por via do qual deveriam ser entregues, ao abrigo do estipulado no Tratado de 1887 —, poderá, na opinião de alguns autores, testemunhar uma relação bem mais activa e empenhada por parte do Governador português na causa revolucionária chinesa.

Da sua curta governação, que se estendeu efectivamente de 10 de Junho de 1914 a 5 de Setembro de 1916, sabe-se ter sido tão próspera e empreendedora que obteve grande apoio da comunidade chinesa, à qual deu pela primeira vez assento no Conselho de Governo, onde veremos então pontuar o primeiro grande magnata do jogo, Lou Lim Ioc (Lu Lianruo) (1884-1955). Mas também, que se preocupou com a segurança de Macau em tempo de guerra, onde inclusivamente criou o Batalhão de Voluntários de Macau, e com o fomento da colónia impulsionando diversas infraestruturas e empreendimentos que mudaram para sempre a vida da cidade. Entre estes, e entre outros, temos o início da construção da Avenida Almeida Ribeiro, ligando a Praia Grande ao Porto Interior, dando o pontapé de saída no tão almejada e sempre adiado projecto do porto de Macau, só concretizado na década seguinte. Foi também no seu mandato, e durante a chefia de José Vicente Jorge (1872-1848) — e sob a proposta deste —, que a Repartição do Expediente Sínico foi reformulada e regulamentada, tal como a respectiva Escola, o que tudo demonstra uma activa interacção com o meio, passem embora as tensões suscitadas aquando da tentativa de criação da Carta Orgânica de Macau, cujo primeiro projecto elaborou.

Contudo, graves divergências com a Metrópole, e nomeadamente com Afonso Costa (1871-1937), que, de Presidente do Executivo passara à pasta das Finanças no Ministério da União Sagrada, levaram-no a pedir a exoneração em 18 de Junho de 1916.

Recusada esta, Carlos da Maia anuncia a partida em 30 de Julho, e seguirá para Portugal — via Japão, Américas e com escala em Xangai onde Sun Yat Sen reorganizava as suas forças —, em 5 de Setembro de 1916, donde nunca regressará. Vai, oficialmente e devidamente autorizado, para conferenciar com o Ministro das Colónias — que era também o Presidente do Ministério —, deixando o Governo de Macau entregue a Manuel Ferreira da Rocha (1885-1951), que o assegurou até 21 de Junho de 1917, quando se constituiu um Conselho Governativo.

Na origem do descontentamento de Carlos da Maia parecem estar quer a ampliação dos poderes judiciais dos cônsules portugueses — nomeadamente no caso do escândalo dos passaportes portugueses passados a chineses em Xangai —, quer divergências quanto ao destino a dar aos dinheiros de Macau que, segundo reza a tradição, abundariam por essa época nos seus cofres. Não sendo autorizado a depositá-los nos bancos de Hong Kong para virem a suportar as obras do porto de Macau como pretendia, Maia vira-se até obrigado a remeter 100 contos de réis para Lisboa, a título de empréstimo, para socorrer outras colónias. Embora o recurso aos saldos positivos de Macau não fosse inédito, as finanças públicas portuguesas estariam então ainda mais exauridas do que habitualmente com as avultadas “despesas de guerra”.

O processo de exoneração de Carlos da Maia foi algo atribulado e reflecte a grande instabilidade governativa resultante da forte agitação e conflitualidade políticas que Portugal então vivia — que acabarão por o vitimar —, sem também deixar de espelhar rivalidades e visões antagónicas que perpassavam a vida político-administrativa de Macau, em sede parlamentar, e pela mão do tenente Francisco Gonçalves Velhinho Correia (1882-1943), eleito deputado por Macau em 1916, cuja candidatura Maia não patrocinara. Ressalvando-lhe embora a “honorabilidade pessoal”, colocará este correligionário de Afonso Costa sob escrutínio toda a actividade governativa de Carlos da Maia, que acusava de autoritário, prepotente, perdulário, questionando-lhe a falta de capacidade governativa e alguma permeabilidade aos chineses, ou, talvez melhor, falta de firmeza para com eles. Reproduzindo o discurso das forças conservadoras macaenses, que o apoiavam, elegerá para tema principal da sua interpelação os gastos com as obras do porto de Macau — cuja prossecução levava Maia a Portugal —, mas requeria também o acesso integral a uma série de processos existentes no Ministério envolvendo Carlos da Maia.

O Governador — que voltara a pedir e a ver recusada a demissão em Dezembro de 1916 — contará no parlamento com o apoio de Alexandre Botelho de Vasconcelos e Sá (1872-1929), de João Tamagnini Barbosa (1883-1948) e de Abílio Marçal, todos eles republicanos desiludidos que em breve adeririam à “República Nova” de Sidónio Paes (1872-1918).

Fosse ou não uma campanha orquestrada para derrubar Carlos da Maia, a que eventualmente Velhinho da Costa se prestaria também movido por razões pessoais — como o acusara Vasconcelos e Sá —, o certo é que, menos de um mês depois, em 12 de Junho de 1917, e no mesmo 3º governo de Afonso Costa, em exercício de 25 de Abril a 8 de Dezembro de 1917, é decretada a exoneração de Carlos da Maia. Viria ela, no entanto, a ser declarada sem efeito por Decreto de 9 de Fevereiro de 1918, já no tempo de Sidónio Paes. De facto, só se tornará definitiva com outro diploma, de 1 de Junho de 1918, depois de, na Metrópole, Maia já ter presidido à Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Lisboa, entre Janeiro e Março de 1918, e de ter sido nomeado Ministro da Marinha em 9 de Março. Não obstante ter deixado o cargo em 7 de Setembro do mesmo ano conseguiu nesse curto mandato introduzir reformas de vulto na organização do Ministério, logo se demitindo e pondo fim à sua efémera adesão activa ao Sidonismo, a que o levara a desilusão e a humilhação atrás descrita. E provavelmente também a influência do grupo que então o defendia, e onde também pontuava o histórico herói da Rotunda Machado Santos (1875-1921), seu companheiro, o que nunca lhes será perdoada pelas alas mais radicais, como a História virá a demonstrar.

No executivo de José Relvas (1858-1929) — aquele mesmo que da varanda da Câmara Municipal de Lisboa proclamara a implantação da República —, Maia teve uma igualmente brevíssima passagem, desta vez pelo Ministério das Colónias, entre 27 de Janeiro e 21 de Março de 1919. Não se esqueceu, mesmo assim, de uma série de indivíduos de Macau e da diáspora macaense, com destaque para os seus corpos militares, nomeadamente os Corpos de Voluntários de Macau e de Xangai, condecorando-os pelos feitos na conjuntura de beligerância pela qual se acabava de passar. Em 8 de Março de 1919 também fará atribuir a Comenda da Ordem de Sant´iago da Espada pelos “serviços prestados às letras e artes de Macau” a Camilo Pessanha, seu irmão maçónico e indivíduo por quem nutria especial estima e admiração e a quem muita apoiara no processo de doação de parte da sua colecção de arte chinesa a Portugal.

Pouco mais de dois anos depois Carlos da Maia encontrará a morte, sendo barbaramente assassinado ao lado de outros heróis da República como Machado de Santos, e do presidente do Ministério já demissionário, António Granjo (1881-1921), naquela que ficou para a História como a noite sangrenta de 19 de Outubro de 1921, em circunstâncias nunca convenientemente averiguadas.

Não o esqueceram, no entanto, os homens do Batalhão de Voluntários de Macau, por ele criado como se referiu, que, na passagem do 3º aniversário da sua morte, em 19 de Outubro de 1924, farão colocar uma lápide no seu jazigo na Rua 21 do Cemitério dos Prazeres em Lisboa, então erigido, juntando-se assim àqueles que, com tal homenagem, pretendiam acima de tudo fazer justiça à memória de Carlos da Maia, que ficaria para a História como um herói e romântico revolucionário.

Excerto de um livro em preparação

 

Tereza Sena

Investigadora Adjunta Sénior do Centro Xavier de Investigação para a Memória e Identidade, da Universidade de São José, Macau
Macau, 19 de Outubro de 2021

20 Out 2021

História | Carlos da Maia, o Governador que imaginou a San Ma Lou, morreu há 100 anos

Antes de Carlos da Maia a zona cristã da península de Macau não se misturava com a chinesa. Foi durante o seu mandato como Governador (1914-1916) que começou a construção da Avenida Almeida Ribeiro, entre outras obras importantes para o território, mas o seu Governo não esteve isento de críticas. Republicano convicto e maçom, acabaria assassinado em Lisboa a 19 de Outubro de 1921 naquela que ficaria para a história como a “Noite Sangrenta”

 

Faz hoje 100 anos que José Carlos da Maia, Governador de Macau entre 1914 e 1916, foi assassinado no episódio trágico da I República em Portugal que ficaria conhecido como a “Noite Sangrenta”. Mais do que um republicano convicto, com ligações à Maçonaria e ao pai da primeira República na China, Sun Yat-sen, José Carlos da Maia foi um governante que, em Macau, avançou com a construção de uma série de obras importantes para o território, uma delas a Avenida Almeida Ribeiro. A via estabeleceu, assim, a ligação entre a Praia Grande, onde funcionava o centro político e financeiro de Macau, e em que as elites portuguesa e macaense dominavam, com o Porto Interior, onde vivia a maior parte da comunidade chinesa.

Arnaldo Gonçalves, num artigo intitulado “A Primeira República, Macau e os Maçons”, escreve que este projecto de Carlos da Maia “uniu a cidade cristã e a cidade chinesa”, além de que o Governador “deixou, segundo vários repórteres, uma imagem de competência, rigor e dinâmica”.

Num texto publicado no HM em 2010, da autoria de Margarida Saraiva, e intitulado “Um Jovem Romântico, uma Nova Avenida e um Beco sem Saída”, o arquitecto Mário Duque falou da importância do projecto urbanístico, que foi concluído em 1918.

“Nesta avenida configurou-se o mesmo esquema urbanístico que muitas das cidades europeias adoptaram, não só por vias das profundas transformações que sofreram, para se adaptarem aos transportes mecânicos e a novos moldes da vida urbana. Neste contexto, conduziram-se os novos meios de locomoção aos centros das cidades, fazendo do local da “gare” a nova recepção da cidade e dotando esse local de hotéis ao novo estilo da vida, os “hotéis de gare” (que muitas vezes pertenciam à mesma empresa que explorava o meio de transporte).”

Mas o mandato de Carlos da Maia foi também importante pela introdução de uma série de novas obras, como recorda o jornalista e autor João Guedes no artigo “Atribulações de um republicano português na República da China (1914-16). Foi neste período que Macau e as ilhas ficaram ligadas pelo primeiro sistema de comunicações através da telegrafia sem fios, foi criada a inspecção de incêndios e implementada a construção de um sistema de escolas primárias. Na área da saúde foi construída a leprosaria na antiga ilha de D. João, além de ter passado a ser atribuído um subsídios aos três principais hospitais do território, Kiang Wu, S. Rafael e S. Januário.

As críticas

Mas a visão de José Carlos da Maia nem sempre foi fácil de implementar e não esteve isenta de críticas. João Guedes destaca, no mesmo artigo, que “a par dos sucessos que a história lhe reconhece, Carlos da Maia também conheceu o fracasso em dois pontos importantes do seu mandato”. Um deles foi “a tentativa de levar a cabo e concluir as obras de regularização do Porto Interior”, enquanto que o outro foi “a implementação uma Carta Orgânica de Macau”.

Num artigo publicado na Revista Cultura do Instituto Cultural, intitulado “João Tamagnini de Sousa Barbosa e a Primeira República Portuguesa”, o investigador Fernando Mendonça Fava, da Universidade de Coimbra, aborda as críticas que se ouviam na Câmara do Parlamento, em Portugal, em 1916, e de como o macaense Tamagnini Barbosa sempre defendeu Carlos da Maia.

“Ainda quanto à actividade parlamentar de Tamagnini Barbosa, foi notável a empenhada defesa que fez, na arena parlamentar, do comandante Carlos da Maia, governador de Macau de 1914 e 1916. Este, um dos heróis da República, por actos de bravura cometidos durante a Revolução de 5 de Outubro de 1910, era agora acusado de, enquanto no exercício do cargo de governador de Macau, ter feito uma gestão danosa dos negócios e interesses do território.”

As críticas versavam sobre “um conjunto vasto de assuntos respeitantes à administração de Carlos da Maia” e uma delas prendia-se com o facto de existir “um projecto de obras aprovado superiormente pelo Ministério das Colónias, no qual se recomendava a empreitada geral como método de execução mais rápido, mais económico e mais eficiente”. Alegadamente, “o governador Maia acabara por ignorar a recomendação e por fazer as referidas obras por administração directa, contra a indicação de opiniões mais autorizadas e com prejuízo para a Fazenda Nacional”.

No entanto, conforme recorda Fernando Mendonça Fava, a intervenção de Tamagnini Barbosa “esvaziou de sentido e conteúdo muitas dessas acusações”.

A veia republicana

O período em que José Carlos da Maia governou Macau ficou marcado por grandes tensões políticas. Do lado da metrópole caía a Monarquia e instaurava-se a República, a 5 de Outubro de 1910. No ano seguinte, seria também instaurada a República na China, atribuindo indirectamente o papel de abrigo a Macau com muitos refugiados chineses que queriam escapar ao novo regime. Carlos da Maia nunca se opôs a esta vaga de refugiados. Ao mesmo tempo vivia-se o período da I Guerra Mundial (1914-1918).

Nascido na cidade algarvia de Olhão, em 1878, José Carlos da Maia foi oficial da Marinha de Guerra Portuguesa. “Na panóplia dos militares republicanos, Carlos da Maia era sem dúvida o segundo dos seus mais prestigiados líderes, quase a par de Machado Santos”, descreve João Guedes.

Antes da sua partida para Macau, Carlos da Maia foi deputado à Assembleia Constituinte de 1911 e à Câmara de Deputados do Congresso da República. Já depois de deixar o cargo de Governador, Carlos da Maia foi presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Lisboa, de Janeiro a Março de 1918, e Ministro da Marinha durante três meses e meio em 1918.

Os primeiros anos da República portuguesa foram marcados por intensa instabilidade política, social e económica, não só devido à participação de Portugal na I Guerra, mas também por questões intrínsecas ao novo regime político.

Morte em Lisboa

A revolta radical conhecida como “Noite Sangrenta” levaria à morte não apenas Carlos da Maia mas também outros republicanos, como António Granjo, então primeiro-ministro demissionário, Machado Santos, considerado o “fundador” da República, o chefe de gabinete do ministro da Marinha, um ex-colaborador de Sidónio Pais e um motorista.

Num artigo sobre o centenário da efeméride, publicado no jornal Público, e intitulado “A Noite Sangrenta. Como há cem anos a República se suicidou”, David Pontes escreve que circulou nas ruas de Lisboa a chamada “camioneta-fantasma” que transportou o grupo de revoltosos comandados por Abel Olímpio, um cabo da Marinha, também conhecido como “O Dente de Ouro”, bem como soldados da GNR e outros voluntários.

A “camioneta-fantasma” chegou à casa de José Carlos da Maia e foi Abel Olímpio que terá usado o argumento de que Carlos da Maia “era responsável por marinheiros terem sido ‘deportados para África’ no período de Sidónio Pais”, lê-se no artigo. Levado na camioneta, Carlos da Maia seria assassinado pouco tempo depois.

Após a morte do marido, Berta Maia ainda tentou perceber as verdadeiras razões que conduziram ao assassinato, mas em vão. A viúva ainda perseguiu “a pista da conspiração monárquica”, mas, “aos poucos, o assunto foi sendo esquecido, mesmo quando, em 1926, novos dados indiciavam a existência de ‘mandantes políticos’”, descreve o historiador Luís Farinha ao Público.

O episódio da “Noite Sangrenta” foi uma revolta radical movida por interesses políticos e tensões governativas, que “matou a I República, por mais tentativas de reorganização à direita e à esquerda que se sucedessem; foi uma sombra sobre os últimos cinco anos da I República; a ideia de que o país é ingovernável”, concluiu Luís Farinha à mesma publicação.

19 Out 2021