António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasO jogo das energias 11/06/2020 [dropcap]L[/dropcap]eio em Agamben: «Se a criação fosse apenas potência-de-, que não pode senão resvalar cegamente para o acto, a arte decairia para a execução (…) Contrariando um equívoco disseminado, maestria não é perfeição formal, mas, exatamente ao contrário, é conservação da potência no acto, salvação da imperfeição na forma perfeita.», e só posso concordar. O que fatalmente me leva àquela sequência maravilhosa em O Barbeiro dos irmãos Cohen, na qual Ed Crane/ Billy Bob Thornton (o mais taciturno e melancólico barbeiro de que há memória), leva a filha do amigo com quem todas as noites bebe o seu digestivo ao conservatório duma cidade vizinha, para uma audição relacionada com a vaga de um pianista numa orquestra. Há muito que ouvia todas as noites a miúda martelar no piano e achava-a um prodígio. O maestro recebe-os e vai com ela para a auditório enquanto Ed Crane fica à espera. Passado meia hora, o maestro vem “devolvê-la” e amavelmente despede-se sem mais uma palavra. O barbeiro é que insiste numa justificação para o malogro. E então diz-lhe o maestro: “Não há nada de errado com ela, toca tudo com grande habilidade, as notas todas que estão na pauta e no tempo devido… será uma óptima dactilógrafa”. Na recente variação em torno do mito do Fausto que Maria João Cantinho cunhou no seu romance As Asas de Saturno, há uma discussão entre o jovem compositor Florimundo e o seu dilecto intérprete e amigo, Pedro, o jovem pianista que se suicidará, e nessa acesa troca de ideias o compositor refere que “sempre perseguiu a perfeição mas nunca o mal…” O problema é talvez ambos estejam inextricavelmente ligados e que o que mais importa na arte seja abrir um novo poro na respiração, o jogo das energias, em vez da obsessão de exaurir as formas na sua abstracta auto-suficiência. 13/06/2020 Vou finalmente editar, em setembro, um ensaio que fiz sobre o Bocage, para prefácio de uma edição que se malogrou. Nele falo de outro projecto na gaveta, uma das miragens que me anima. É assim: «Na sinopse que uma vez esbocei para uma fantasiada biografia de Bocage, quando este deserta de Damão e está desaparecido uns tempos, antes de reaparecer em Macau, o poeta desembarcava no Japão, numa flotilha holandesa. E o capitão, já vezeiro nestas paragens e um amante da arte da vida, leva-o a Edo (como antes se chamava a Tóquio), aonde o apresenta a duas maravilhas: a Yoshiwara, o “palácio” das cortesãs, e a Hokusai. A inteligência, a cultura e a delicadeza das gueixas cativam-no mas o que para ele constitui uma revelação abissal é o espírito absolutamente materialista do artista japonês. Por materialista entenda-se um homem até permeável a superstições momentâneas e capaz de fazer do tema dos “fantasmas” um género, mas de personalidade incapaz de sucumbir, estruturalmente, à credulidade e aos mitos – o homem para quem o plano da imanência e da reflexão estriam o empírico. Diga-se que neste livro hipotético, que hiberna, o Bocage era cruzado com três outros espíritos seus contemporâneos, o William Blake, o Goya e o Hokusai. Os criadores aqui convocados têm em comum com Bocage (e igualmente com Pessoa) aquilo que Kenneth White anotou para o japonês: “É preciso tempo para que uma tal obra encontre a sua constelação. Juntemos a isto o facto de que se tem sempre tendência a pensar em termos de categorias, de procedimentos, de identidades. Ora, ninguém melhor que Hokusai ilustra o princípio segundo o qual, em arte, o que conta não é uma identidade mas o jogo das energias” (sublinhado meu). Através do especial atrito que experimentou cada um destes criadores com a sua sociedade e época, e situando-o numa “constelação”, eu intentaria perceber melhor a inserção e os problemas de Bocage com o tempo que lhe coube viver, e medir, face à comparação com os outros, a extensão da sua originalidade. Um, Blake, representava o tipo de homem que inventa os seus próprios mitos e exulta a sua sexualidade, chocando os costumes, outro, a tragédia duma dessintonia com a sua época, ou a consciência da mudez com que os abismos interiores devoram no homem a sua facúndia social e a alacridade dos sentidos; Hokusai era o encontro com alguém com os pés fincados na terra e que abraça as rugosidades do real, as suas minudências. Os outros dois seriam ainda homens do seu século, embora (como Bocage) já virados para a propulsão romântica, Hokusai seria o encontro que lhe enxugaria a cabeça de alucinações, colocando-o face aos sortilégios de um “realismo” que não tinha par em Portugal, impraticável mesmo. Não esqueçamos que, se o mestre da Manga japonesa, ficou orfão como Bocage muito cedo, foi adoptado aos 4 anos por Nakajina Ise, um fabricante de espelhos para a corte do shogun. Porque esse me parece o percurso de Bocage: o sadino perfaz a parábola que partiu duma sôfrega entronização nos mitos (a credulidade do jovem Bocage lembra-nos a gravura de Hokuasi onde se figura A Aranha que Incuba os Crânios) para desembocar numa inversão das perspectivas e num despojamento em relação a todas as gorduras da crença dos fundamentos do que a partir do século XIX se chamaria a ideologia. O homem que regressa do Oriente é já um homem em redução fenomenológica, que despiu o olhar do que queria ver e que passou a ver apenas o que lá está, quase um céptico, apesar de jovem. Usando de novo um título de uma gravura de Hokusai, Bocage deixou de ser O Guerreiro que Engoliu uma Vaga, para ser um surfista. Calcule-se o choque, a iluminação de Bocage, ao ser-lhe mostrado o manuscrito de Kinoe-no-Komatsu e deparar com uma mulher a ser desfrutada sexualmente por um polvo: no livro que abandonei.”