Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA natividade de Jesus “Christmas is not a time nor a season, but a state of mind. To cherish peace and goodwill, to be plenteous in mercy, is to have the real spirit of Christmas.” Calvin Coolidge [dropcap]O[/dropcap] Natal já não é o que costumava ser pois perdeu o seu significado religioso em muitas partes do mundo ocidental e tornou-se o auge de uma época de gastos excessivos, de comer demasiado e de exultações sem controlo. O novo Natal espelha o seu antecessor pagão, que celebrava o solstício de inverno. O Natal é a festa preferida das crianças durante o ano, e para os adultos é um tempo para se entregarem às doces lembranças dos velhos tempos. Existem três versões da peça de teatro Natividade. Os fiéis de todas as idades estão familiarizados com a primeira. É regularmente esboçado, cada Natal, em sermões pregados no púlpito e pode ser encontrado e admirado nas grandes telas da Natividade criadas com amor por artistas cristãos ao longo dos séculos. Vê-se um velho barbudo andando ao lado de um burro seguido de uma jovem grávida. As torres de Belém são ligeiramente visíveis à distância. Na cidade cheia de gente, as pousadas estão lotadas, e José, depois de muito brigar, irar-se e procurar, pode descobrir apenas um modesto barracão no bairro para que Maria dê à luz o seu filho. O recém-nascido Jesus é colocado pela sua mãe na manjedoura entre uma vaca e um jumento. O velho José observa a cena com benevolente e desprendida admiração. Os pastores locais são alertados por um anjo e aprendem sobre a chegada ao mundo do Salvador dos judeus, e logo três reis se aproximam, vestidos com trajes gloriosos que foram conduzidos do longínquo Oriente, via Jerusalém, até Belém, por uma estrela misteriosa. No palácio real, perguntam onde o recém-nascido rei dos judeus pode ser visto, mas ninguém sabe e seguindo o conselho dos peritos convocados por Herodes, os reis são enviados a Belém e, com a ajuda da estrela que reaparece, encontram o estábulo, saúdam e adoram Jesus, e oferecem-lhe presentes reais. A cortina desce e é o fim do primeiro acto e como o conto de fadas de uma criança, o conto de Natal consiste numa mistura do encantador e do terrível. No segundo acto, geralmente não presente nos jogos da Natividade, a doçura e a alegria desaparecem de repente e o desastre paira no horizonte quando Herodes, sedento de sangue, entra na contenda. Percebendo que os reis o enganaram e escaparam do país, Herodes lança os seus cruéis soldados sobre os meninos de Belém e todos perecem, de recém-nascidos a crianças pequenas, excepto a criança que deixou Herodes tão ansioso. De repente, a cena muda novamente e José adormece e sonha com um anjo, que soa o alarme; o pai, mãe e filho devem fugir imediatamente. E vemos novamente o velho na estrada, acompanhado do seu fiel burro, mas desta vez carrega o bebé e a sua mãe. Evitando habilmente os guardas de fronteira de Herodes, escapam da Judeia e chegam ao porto seguro do Egipto, a terra do Nilo. No último acto, o cenário fica um pouco atolado. As fases finais do drama tornam-se nebulosas. É mostrada a circuncisão de Jesus e a sua apresentação no Templo de Jerusalém, mas não se sabe quando aconteceram em relação à fuga para o Egipto, e também não se especifica a razão e o tempo da mudança de Jesus para a pacífica Galileia e para uma infância feliz. A mente cristã não parece estar muito incomodada com estas questões. A sua perspectiva é compacta e o seu quadro cronológico é abreviado e para os fiéis comuns, todos os acontecimentos são espremidos entre o Natal e a Candelária. Segundo a liturgia da Igreja, Jesus nasceu no dia 25 de Dezembro. Os inocentes de Belém foram assassinados três dias depois. Jesus foi circuncisado a 1 de Janeiro. O Dia de Ano Novo ainda é designado como a festa da circuncisão, mas infelizmente nos missais católicos romanos, revistos depois do Concílio do Vaticano II, uma solenidade de Maria, Mãe de Deus, foi substituída pelo antigo latino rito “Circumcisio Domini” (a circuncisão do Senhor), e em consequência o Evangelho que diz “E ao fim de oito dias, quando foi circuncidado, foi chamado de Jesus” desapareceu do serviço diário. Jesus e Maria (e talvez José) visitaram o templo no dia 2 de Fevereiro e o episódio egípcio deve ter ocorrido entre o final de Dezembro e o início de Fevereiro, e a viagem à Galileia imediatamente a seguir. Tudo se torna limpo e arrumado, excepto na maior parte que poderá ser lenda ou ficção e com todo o respeito pela tradição cristã, alguns dos elementos essenciais do complexo de Natal, parecem estar a um milhão de quilómetros de distância do facto e da realidade e por exemplo, as possibilidades de que Jesus tenha nascido em 25 de Dezembro são de uma para trezentos e sessenta e cinco (ou trezentos e sessenta e seis em anos bissextos). Esta data foi inventada pela igreja ocidental no século IV, com o imperador Constantino como forma de substituir o festival pagão do “Sol Invicto”, e é primeiro atestado, para ser mais preciso, num calendário romano em 334. A maioria dos cristãos orientais celebra o nascimento ou manifestação de Jesus ao mundo na festa da Epifania (6 de Janeiro), enquanto de acordo com o Padre Clemente de Alexandria, da Igreja do segundo século, outras comunidades orientais comemoraram o evento em 21 de Abril ou 20 de Maio. A procura de esclarecimento, é de começar por eliminar as três características da representação tradicional do Natal que não têm antecedentes escritos no Novo Testamento. Por mais que se procure, nada se encontrará nos Evangelhos que sugira que José, repetidamente referido como o pai de Jesus, era um homem velho. Não se sabe nada sobre a sua idade, quando nasceu, ou mesmo quando morreu. A ideia de um José idoso deriva de um Evangelho apócrifo, o Proto-Evangelho de Tiago, o Irmão do Senhor e nele é descrito como um viúvo de anos avançados que teve filhos e filhas de um casamento anterior. Estes são então os membros da família de José e Maria, a quem o Novo Testamento designa como irmãos e irmãs de Jesus. Nem os Evangelhos contêm qualquer alusão às bestas amigas, ao boi e ao jumento, partilhando o estábulo com Jesus. A imagem destes animais é emprestada ao profeta Isaías: ” O boi conhece o seu possuidor, e o jumento a manjedoura do seu dono; mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende” (Isaías 1:3). A Igreja viu nesta passagem a prefiguração da posterior rejeição de Cristo pelo povo judeu. Finalmente, o Novo Testamento em nenhum lugar sugere que os visitantes orientais que seguiram a estrela até Belém fossem reis. O texto grego de Mateus designa-os não como governantes ou mesmo “sábios”, mas como “magos” ou mágicos. A elevação destes astrólogos orientais à dignidade real deve-se a outra associação artificial de um texto do Antigo Testamento com este episódio do Evangelho da Infância. Uma passagem tirada do Livro de Isaías diz: “E os gentios caminharão à tua luz, e os reis ao resplendor que te nasceu” (Isaías 60:3). É completado por outro versículo, mais adiante, no mesmo capítulo do mesmo livro: “A multidão de camelos te cobrirá, os dromedários de Midiã e Efá; todos virão de Sabá; ouro e incenso trarão, e publicarão os louvores do Senhor” (Isaías 60:6). Não está escrito em nenhum lugar que havia três reis. Esta figura é sem dúvida deduzida do número de dons listados em Mateus, “ouro, incenso e mirra” (Mateus 2:11), com a suposição de que um presente foi oferecido por cada visitante. Os outros dois quadros de Natal são inspirados no Novo Testamento. O primeiro, surgido da narrativa de Mateus, começa com a árvore genealógica de Jesus (Mateus 1:1-17) e é seguido pela intenção de José de se divorciar da Maria grávida (Mateus 1:18-19). O seu plano é alterado quando um anjo o tranquiliza num sonho em que a condição da sua noiva se deve à intervenção milagrosa do Espírito Santo (Mateus 1:20) e com efeito, o nascimento virgem é o cumprimento de uma profecia de Isaías (Mateus 1:22-23) pelo que José dá crédito a este sonho-revelação, casa com Maria e leva-a para a sua casa (Mateus 1:24-25). A chegada de Jesus a este mundo é marcada pela aparição de uma estrela a Oriente no horizonte que conduz os “magos” do Oriente a Jerusalém (Mateus 2:1-2) que vão ao palácio real para conhecer o paradeiro do rei recém-nascido dos judeus (Mateus 2:3). O estupefacto Herodes consulta os chefes dos sacerdotes judeus, que identificam Belém como o lugar de nascimento previsto do Messias esperado, em conformidade com uma profecia de Miqueias 5:2 (Mateus 2:4-6). Herodes então extrai dos “Magos” o tempo da primeira aparição da estrela e canonicamente exige que compartilhem com ele tudo o que aprenderem sobre a criança (Mateus 2:7-8). Assim, com a ajuda da estrela, os “Magos” encontram Jesus e prestam-lhe homenagem antes, de acordo com a instrução que recebem num sonho, regressam a casa sem voltar a Jerusalém (Mateus 2: 9-12). Mais uma vez José é instruído por um anjo, em mais um sonho, a levar prontamente Jesus para o Egipto a fim de escapar do massacre dos filhos de sexo masculino de Belém, decretado pelo ciumento e irado Herodes, em cumprimento da profecia sobre Raquel, a esposa do Patriarca Jacó, lamentando a perda dos seus filhos em Jeremias 31:15 (Mateus 2:13-18) e com a morte do rei, o mesmo anjo, num penúltimo sonho, ordena a José que volte à terra de Israel, realizando assim outra predição (Oseias 11:1), que anuncia que Deus chamará o seu Filho do Egipto (Mateus 2:19-21). No entanto, quando José descobre que Arquelau sucedeu a Herodes, seu pai, em Jerusalém, um grande sonho revê a instrução anterior e o orienta a residir na Galileia. Uma profecia não identificada, “Ele será chamado de Nazareno”, é citada para explicar a associação de Jesus com Nazaré (Mateus 2:22-23). Na terceira versão dos acontecimentos da Natividade, Lucas tem uma história substancialmente diferente para contar que encerra dois anúncios em que no primeiro, o sacerdote ancião Zacarias, residente na Judeia, é informado pelo anjo Gabriel que a sua esposa idosa e estéril, Isabel, dará à luz milagrosamente um filho, João Baptista (Lucas 1:5-25). Isto é seguido por outra mensagem do mesmo Gabriel a Maria, uma virgem noiva vivendo em Nazaré, que conceberá e dará à luz Jesus, e que não é mais difícil para Deus engravidá-la e mantê-la virgem do que permitir que a sua parenta Isabel dê à luz um filho na sua velhice (Lucas 1:26-38). Maria logo visita Isabel na Judeia e fica até ao nascimento de João Baptista (Lucas 1:39-80). Ela viaja de volta para Nazaré, retomando a estrada dentro de poucas semanas. O censo ordenado pelo imperador Augusto é dado como explicação da viagem de José e Maria a Belém, onde Jesus nasceu num abrigo para animais fora da cidade de David, onde os albergues da cidade estão cheios até à borda por multidões de pessoas que chegam para se registar (Lucas 2:1-7). A criança recém-nascida é saudada por pastores locais e por um coro celestial que canta glória a Deus (Lucas 2:8-20). Oito dias depois, em conformidade com a lei judaica, Jesus é circuncidado e, no quadragésimo dia seguinte ao seu nascimento, é levado ao templo e é realizada a cerimónia da redenção do primogénito, enquanto a sua mãe completa o ritual de purificação obrigatório, após o nascimento de uma descendência masculina. No santuário Jesus é reconhecido por dois velhos adoradores como o Messias dos judeus e o redentor dos gentios (Lucas 2:25-38). Após terem cumprido os seus deveres religiosos, José, Maria e a criança retornam imediatamente a Nazaré, sua cidade natal original (Lucas 2:39-40). Os discípulos Mateus e Lucas raramente fornecem a mesma informação na mesma ordem. Algumas vezes os temas não são diferentes em substância, mas na maioria das vezes os dois evangelistas oferecem dados totalmente independentes. A essência da boa nova anunciada pelos relatos da Natividade é que Deus enviou o seu Filho, nascido sobrenaturalmente de uma mãe virgem, para salvar o seu povo dos seus pecados e trazer paz a todos os homens favorecidos por Deus. Esta é a mensagem feliz que o mundo cristão identifica com o Natal e para isso é necessário aplicar uma leitura selectiva aos Evangelhos de Lucas e Mateus. A gloriosa tradição da Natividade da Igreja é construída sobre a doce e simples história de Lucas com anjos, pastores e vizinhos alegres. O feliz Natal que as pessoas desejam umas às outras é expurgado dos efeitos prejudiciais do drama de Mateus com a tortura psicológica de José diante do dilema do que fazer com Maria grávida e o medo, pânico e lágrimas causadas pelo édito de Herodes ameaçando com extinção prematura a vida nascente do Filho de Deus. Feliz Natal e Próspero Ano Novo 2020
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO homem chamado Jesus “Jesus wanted them to know that if they intended to live by the law, they couldn’t just pick and choose the parts they liked in order to feel good about themselves. They had to follow all the law or they might as well not follow any of it.” “Jesus Is: Find a New Way to Be Human” – Judah Smith and Bubba Watso Anónimo, Ecce Hommo, século XVI [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] tempo que vivemos – e que se prolonga na tradição católica surgida no século VIII, até ao dia de veneração dos “Reis Magos”, Belchior, Gaspar e Baltazar a 6 de Janeiro de 2018 – é considerado como a quadra natalícia, tornando interessante recuperar a autêntica pessoa do homenageado Jesus, que presumivelmente nasceu a 25 de Dezembro, o essencial da sua mensagem e o melhor do seu impacto histórico, porque apesar de não ter deixado nem uma só palavra escrita, nenhuma figura histórica exerceu uma influência maior ou igual na história da humanidade. Muitas vezes se tem apresentado Jesus como um personagem intemporal, uma alma pacata sem retiro, alegrias, desejos e paixões, como uma peça de museu, como um cordeiro manso que cumpria cabalmente com as suas obrigações, como alguém que nunca desfrutou da ousadia de um jovem, porque sempre encarnou os sonhos da velhice, quase um fetiche. A pessoa de Jesus é mais conhecida todos os dias graças à história, arqueologia e antropologia cultural e social que o colocam em determinada circunstância, numa sociedade de tradição oral que cultivava a memória. É de presumir que tenha aprendido o ofício do seu pai, carpinteiro, mas tudo indica que depressa tomou outro rumo, deixando a família, indo de encontro ao chamado do profeta João Baptista que desencadeou um movimento de conversão, tendo em vista uma rápida e definitiva vinda de Deus, facto que liga a vida de Jesus com a tradição profética do seu tempo. O seu relacionamento com João Baptista, seu primo, foi decisivo para a sua experiência religiosa. Tendo-se separado do seu primo, percorreu os caminhos da Galileia à procura de pessoas para anunciar a proximidade do “Reino dos Céus”. Fazendo a eliminação de todos os aspectos escatológicos e futuristas da sua pregação, alguns autores apresentaram erroneamente, Jesus como um sábio anti-sistema e contra-cultural. Todavia, não é um apocalíptico iluminado que vive debaixo da urgente e eminente catástrofe, como pretenderam demonstrar alguns outros autores. O judeu fiel que foi Jesus cumpriu as leis e radicalizou alguns dos seus aspectos embora, ao mesmo tempo, relativizasse alguns preceitos rituais, especificamente os que se referem ao Sábado, ao afirmar que “o homem é mais importante que o Sábado” e as normas da pureza. O amor ao próximo é a regra de todos os rituais (Marcos 12, 28-31). Sem escapar da sociedade, quem aceita as normas do “Reino de Deus” caminha sempre no fio da navalha. “Os últimos serão os primeiros”; “o filho do homem não veio para ser servido, mas para servir”. O dinheiro não é mais um sinal de bênção divina, como a teologia rabínica considerou, mas pelo contrário, será o maior impedimento para entrar no “Reino dos Céus”. Alguns autores defendem que os milagres narrados nos Evangelhos seriam fruto e invenção da imaginação popular, e outros ampliados e engrandecidos, o que não é de aceitar pelos cristãos, nos quais me incluo. É evidente que uma das características de Jesus, que ajuda a explicar a irresistível atracção que exerceu sobre os que o conheciam era o de curar e apaziguar o povo das suas maleitas físicas, psíquicas e sociais. “Uma grande multidão ao ouvir o que fazia, veio até ele “ (Marcos 3, 10). Muitos estudiosos interpretaram como um desafio para a ordem social estabelecida, a libertação de muitos dos seus concidadãos dos espíritos imundos que conseguia com o seu amor e a sua capacidade de acolhimento. Os estudos antropológicos, actualmente, sobre xamãs e curandeiros podem ajudar os mais duvidosos a entender a literatura sobre os milagres de Jesus. Ainda que, entre as multidões, o conceito do “Reino de Deus” criasse resistência, assim como a esperança, Jesus teve um enorme grupo de seguidores e crentes na Galileia e depois em Jerusalém. As multidões foram atraídas pela sua personalidade extraordinária e pela autoridade de tipo carismático das suas pregações. Entre todos os seguidores e fazendo eco da restauração das doze tribos de Israel mencionadas no Antigo Testamento, um dos elementos mais constantes da escatologia judaica, escolheu doze discípulos e mais tarde enviou-os a pregar por todo mundo a suas “Boas Novas”. A coerência da sua vida e a nobreza dos seus ensinamentos fazem todos os pesquisadores, crentes ou ateus, excluir a possibilidade de fraude. O cristão deve ser o promotor de uma cultura de caridade, igualdade e dignidade das pessoas. Todas as outras formas de entender Jesus, reforçadas pela cultura pop dos nossos dias, são envenenadas pela condição e expiração efémeras. Muitas dessas imagens de Jesus não são o resultado de estudos conscienciosos, mas de uma fábrica de sonhos como o cinema. Jesus faz parte do universo transbordante de filmes, revistas, vitrinas e exposições, meios com uma enorme capacidade de adaptar-se aos tempos. Quase todos tentam apresentá-lo como um personagem não convencional que veio transformar as condições de vida e mentalidades ao serviço do novo homem. O mundo dos nossos dias, que sente o fascínio com o mágico, teatral e o festivo, multiplica as imagens de Jesus, como de qualquer bem destinado ao consumo comercial e emocional. Para muitas pessoas, Jesus é um sistema estelar mais que o céu das celebridades mais famosas da história. Nesta cultura fragmentada e líquida, multiplicam-se as mestiçagens mais variadas que afectam também a imagem de Jesus, que muda a um ritmo vertiginoso para responder às procuras que chegam de diferentes locais geográficos e culturais. Existem grupos viciados às mudanças que forjam uma imagem de Jesus para diferentes situações e necessidades. Muitos estão preocupados com a estetização da mensagem de Jesus, como um produto da ética estética hipermoderna que tem pouco a ver com a mensagem de austeridade e pobreza do Nazareno. Trata-se da comercialização por grosso da figura de Jesus. O Jesus, familiar para milhares de pessoas, é um produto da hibridação estética, da moda e da mercadologia. O culto da expressão nova e subjectiva substituiu a revelação antológica. A quadra natalícia, para muitos, é um momento de tristeza porque lembra e faz viver mais intensamente as ausências presentes dos seus entes queridos. O homem que não assimila as ausências dos entes queridos que o tempo lavra será sempre um ser infantil, que está longe de ser uma criança. A ausência é um vazio que só pode preencher a memória. O Natal é um memorial, uma referência temporária que converte em “Kairós”, tempo significativo, o “Kronos”, tempo normal. Além de ser social e lúdico, o ser humano é ritual. Os presentes da quadra natalícia, originalmente, significam a gratuidade do presente que recebemos do céu. Algumas pessoas aborrecem-se pelo facto de outras desejarem felicidade, paz, amor e prosperidade. Mesmo que fosse o único dia do ano em que tal acontecesse, seria melhor do que nada. As crianças vivem esse tempo sem problemas ou falsos pensamentos. É infeliz o que não se permite manifestar, expressar-se à criança que tem dentro. Jesus provoca uma série de perguntas que o antropólogo não pode responder a partir da antropologia ou da história simples, embora ambas possam ver sinais de que, por trás dessa pessoa, há algo mais do que um homem simples. Tal está escondido por trás dessa fascinante humanidade? Para muitas marcas, multinacionais, e instituições, a estrela do Natal não é Jesus, mas as ídolos sociais que transmitem os seus interesses. Os cristãos confessam uma realidade que transcende a História. A teologia moderna diz que a fé é acreditar numa pessoa que se torna o modelo da vida em que os valores artísticos, sociais e filosóficos se fundem mais que uma moral. Tradicionalmente, a fé em Jesus-Homem-Deus estava ligada a uma categoria hereditária, uma herança familiar e comunitária; modernamente é mais o fruto de uma decisão pessoal, da fé individual. A fé em Jesus, segundo os cristãos, deve ser traduzida em um modo de vida. O cristão deve ser o promotor de uma cultura de caridade, justiça e solidariedade, de igualdade e dignidade das pessoas. Os que acreditam na mensagem original da quadra natalícia não se resignam a fugir e a deixar campo livre aos que querem esquecer a origem e o significado do tempo que vivemos. Iremos continuar a comemorar esta quadra do Natal, um memorial do nascimento de Jesus, sem esquecer que o mundo muda e que a maneira de actualizar eventos também deve ser alterada.