O ego satisfeitinho

[dropcap]V[/dropcap]i o Into the Wild, filme de 2007, com 33 anos. O meu filho tinha então 5 anos. Eu estava a morar numa casa que tive nos Olivais e estava embarcado naquilo que Kierkegaard definiria como “o estádio estético da vida”. Lembro-me de que o filme, escrito e realizado por Sean Penn, causou um desconforto variável na plateia do cinema e deu azo a múltiplas conversas de café, sobretudo entre as pessoas da minha geração que haviam de algum modo colocado a família no centro da constelação das suas vidas.

É óbvio que para sujeitos acabados de embarcar no transatlântico da vida adulta, o quesefodismo da personagem principal de Into the Wild surge como o contraponto do modo de vida em que se encontram, e um contraponto tão inconfessavelmente apelativo como assustador. É bom constituir uma família. Mas é difícil. Nem toda a gente tem competências e disposição para os sacrifícios que exige, para a dedicação que exige. E o Into the Wild não é só um enormíssimo pontapé na boca da confortável média-burguesia a que a maior parte das famílias almejam chegar; é também um chega-para-lá que se estende a todas as relações humanas. É a procura da solidão como forma de completar e assim pacificar o ego. É a natureza enquanto espelho de uma harmonia perdida a que só por meio de um despojamento radical poderemos regressar. É uma espécie de budismo ocidentalizado, uma corruptela funcional.

A mim e talvez por ter estudado filosofia, o Into the Wild sempre me cheirou a esturro, pelo menos a nível existencial. O quesefodismo é um grande apelo, sobretudo para quem se instalou na rotina de tal modo que o paroxismo da emoção é o futebol ao fim-de-semana ou um disco novo dos U2. Deixar tudo para trás, comprar uma autocaravana e dormir uma semana em cada sítio, espalhando o amor e a energia positiva por onde quer que se passe, ir ao encontro das pessoas e, por momentos apenas que sejam, iluminar-lhes no rosto a possibilidade de uma vida diferente, à margem das convenções sociais, que valora a natureza na sua perenidade e harmonia e despreza as múltiplas hierarquias do ter à volta das quais as sociedades humanas aprenderam a se conformar. Hippies, new age freaks, amigos do djambé, etc. Been there.

É muito fácil apaixonarmo-nos pela distância, para citar novamente Kierkegaard. É a causa palestiniana, os cartões postais para as crianças de África comerem umas malgas de arroz ou frequentarem a escola, o banco alimentar contra a fome, os pirilampos mágicos, etc. Não se infira qualquer crítica à importância destas causas ou destes programas. É a lógica anónima da relação que está em causa, uma lógica a que subjaz uma acção sem compromisso. É esta a lógica do filme até perto do final. A de passar pela vida das pessoas ao modo do toca-e-foge, criando consequências, mas recusando qualquer ligação. O protagonista configura-se, ao olhar alheio de quem está ancorado a um determinado estilo de vida, como um arauto da liberdade, uma espécie de bom selvagem peregrino disposto a fazer o bem por onde passa. O problema é que a relação que o protagonista tem com as personagens das vidas por onde passa não é diferente daquela que alimentamos no modo cartão-postal para a Etiópia: alivia-nos a consciência pensar que estamos do lado certo desde que não tenhamos que ter qualquer relação com o problema em causa que não seja a de passar um cheque ou fazer uma transferência. Ao contrário do que se comummente interpreta, o mandamento bíblico de “amar o próximo” não equivale a tornar, por decreto, todos os homens e mulheres próximos, porque isso seria precisamente torná-los anónimos e incapazes de assim criar qualquer tensão relacional.

Amar o próximo é mesmo amar aquele que conhecemos, aquele que não é à partida amável, aquele de mão estendida com quem nos cruzamos a caminho do trabalho ou no regresso a casa. Tudo o resto, como bem viu o dinamarquês, é paixão pela distância, preocupação cujo fundamento é o ego e não o outro. E, no fundo, o filme em grande parte é isso.

20 Dez 2019