António Cabrita Artes, Letras e Ideias Diários de PrósperoDa ira identitária I “Canta, ó musa, a cólera funesta do pélida Aquiles!”: o primeiro verso da Ilíada. O primeiro verso da nossa matriz tece uma consideração sobre a ira. É surpreendente, não? E pode a ira converter-se em vingança? Em Moby Dick, a dor e o eco da cólera no capitão Ahab desbordam numa ira obessiva contra a ofensa irreparável (no caso, a amputação da perna). Muita da violência cega que reveste o furor identitário que hoje nos invade, à boleia do “politicamente correcto”, camufla dois factores: uma propensão para o vitimismo (acompanhada do complementar “remorso do homem branco”), e a auto-flageladora percepção emocional (nem sempre consciente) com que essas comunidades minoritárias (na Europa) sentem haver sido historicamente submetidas a uma ofensa irreparável. Elucidemos com o equívoco da Lusofonia. Escrevi em Para que servem os elevadores e outras indagações literárias (o título chegou-me de nessa altura viver num 9º andar e do elevador estar o mais das vezes avariado): «Em Portugal fala-se em Lusofonia como um efeito hipnótico que levaria logo a uma bacalhauzada entre os falantes de português. Para Moçambique é um termo controverso, associado ao neo-colonialismo. E de facto é preciso perguntar que sentido faz falar em Lusofonia num país em que só dez por cento dos seus habitantes é que tem o português como língua mãe. Mesmo que o português seja a língua oficial, os códigos e as performances da língua aqui são distintas, verificando-se um crescendo de contaminações das línguas nativas e do inglês na textura do português, assim como a presença de deslizes semânticos que introduzem variações quer de significado, quer sintácticas, que tornam a sua tradução uma história de diferimento e não um rastro contínuo. A Lusofonia é uma cortina de fumo para que as embaixadas possam desligar-se da realidade e não falar entre si de coisas concretas, urgentes e necessárias. Com o álibi dessa suposta base identitária faz-se de conta que está tudo bem para não se investir em nenhum tipo de comprometimento sério (…) a Lusofonia lembra-me a deselegância de martirizar uma noiva, na véspera do casamento, falando-lhe obsessivamente do antigo namorado que ela faz tudo para esquecer. O imaginário lusófono é como o sentimento da queda no Paraíso bíblico: há um misto de culpa, de rejeição e de tremenda atracção pela Eva. O aparente decoro da Eva não nos deve deixar impotentes e convém voltar a fecundá-la, com a diferença de que agora pode ser ela a tomar as rédeas do jogo, tendo o papel activo na função. É preciso aceitar a troca das posições no leito para que a coisa volte a animar. Enquanto não se entender esta coisa primária, a Lusofonia não passa da simulação das erecções de um anão ao espelho. Eduardo Lourenço já disse tudo sobre esta matéria no seu devido tempo, mas como os políticos portugueses não têm mais nada a oferecer senão retórica agarram-se à miragem» É pior: Portugal deixou em Moçambique para cima de 90% de analfabetos. Foram os moçambicanos quem, na ânsia de dar um cimento comum a um mosaico com mais de duas dezenas de línguas, ensinou 50 % dos seus concidadãos a ler e a falarem português. Não sei se há um modo suave, delicado, para explicar que uma herança de 90% de analfabetos possa constituir uma ofensa irreparável cometida pelo colonialismo português. Esta situação provocou dois efeitos simétricos: um orgulho moçambicano que roça o patetismo e se mescla numa enviesada fobia ao outro (sobretudo o português) e uma vontade regressiva de voltar às origens, às “tradições”, patentes na ilusão identitária. Por outro lado, em termos globais, não se pesou este aspecto, que frisei noutro livro: «Para Baudrillard, que era um espírito apocalíptico, “vivemos num período pós‑orgiaco” e numa evidente saturação de todas as nossas categorias e signos culturais. Julgo que ele terá confundido os sintomas com os efeitos. No fundo, sintetiza numa fórmula de aparato o que antes dele escrevera Cioran: “Um povo está prestes a morrer quando já não tem força para inventar outros deuses, outros mitos, outros absurdos; os seus ídolos empalidecem e desaparecem e busca outros, noutra parte, sentindo‑se só diante de monstros desconhecidos. Também isto é a decadência.” A gravidade acentua-se com as representações que se projectam globalmente desta ideia, que os media e as redes sociais espalham como metástases. Não se tem presente como para os países novos, saídos há décadas do jugo colonial, talvez seja deprimente viver um reapossar da terra e dos seus direitos sobre a modelização do futuro num estado do mundo que se define como pós‑orgíaca. Então o que lhes coube da festa? E como lidar com uma necessidade vital de desenvolvimento num momento em que a ideia de progresso é encarada como um mito nefasto? Que ironia violenta. a de aceder à soberania quando este estatuto começa a fantasmar‑se? Não se medem bem a angústia e o cinismo que dimanam dessas ideias politicamente correctas, que se globalizaram, e que os media e as redes sociais difundem. Não creio que este clima esteja alheado da incubação da violência, pois, para nos servirmos da descrição que Kafka fez de Odradek, os cidadãos destes países sentem‑se “uma existência sem proveniência, uma destinação ignorada, uma vida sem sentido”. A fuga para a frente a este sentimento oscila entre o retorno a um patológico “integrismo” étnico – de que o afrocentrismo é uma face – e a tradução em violência de uma angústia impactante». Daí a vontade de reparação, a incompreensão de que o presente não traduza um afã reparador. À legibilidade ou não de um sentido histórico para tais acções, ponderado e discutido, sobrepõe-se nessas comunidades o sentimento da urgência no resgate, duma redistribuição do saque – faça-se a cobrança! E o cobrador pode ser aquele personagem de um conto do Rubem Fonseca, que apanhou à má fila uma metralhadora na favela e desce do morro aos bairros dos grã-finos, “cobrando” à esquerda e à direita.