Ignorâncias

Insone, passei à sala e agarrei num molho de livros para começar a fazer a minha busca de poemas de todo o mundo sobre o vento, pensando num programa de rádio que planejo fazer com o Fernando Alves (um fascinado pelo vento, como eu). Um dos livros que me veio à mão foi «O Prolífico e o Devorador», do Auden, traduzido pelo Helder Moura Pereira para a &etc. Um livro de aforismos e anotações breves que Auden deixou inacabado. No primeiro aforismo lê-se:

«O homem não só cria o mundo à sua própria imagem como os vários tipos de homem criam vários tipos de mundo. Cf. Blake: “O ignorante não vê a mesma árvore que o homem sábio”».

Neste momento, de falência cognitiva tão acentuado, esta evidência seria considerada ofensiva. Depois, ao que parece, deixou de haver ignorantes. Disse-me um aluno (fincando a inutilidade da minha presença como professor): basta abrir a net e informamo-nos sobre tudo e todos.

No que só deu razão a Platão que antevia na escrita o perigo e a loucura de se idolatrar as sombras. Daí estar justificado que, com tanta sabedoria à mão de semear, o meu aluno se dispense, numa caprichosa constância, de “consultá-la!”.

Eu, ao contrário dele – que mantém a ignorância “sob controle e ao alcance dos seus megabytes” (invejo-lhe a crença na “transparência” dos meios) -, considero a vida e a sabedoria como enigmas e à minha ignorância uma benção. É o que me motiva a procurá-la, ciente, de que há, inclusive, muitos tipos de elucidação não verbais.

Quando percebo que ignoro qualquer tema, âmbito, a existência de um autor e determinada área, sinto que se avizinha o reencantamento e atiro-me às águas desconhecidas na ânsia de alcançar, mesmo a nado, esse novo arquipélago. Nunca me senti diminuído por desconhecer algo: é uma alegria reconhecer o que ignoro, dado que isso abre o espaço.

Nunca tomei é o conhecimento como adquirido, tenho sempre de o conquistar, de o digerir.

O que o meu aluno não sabe (lembro Blake, “O ignorante não vê a mesma árvore que o homem sábio”; admitindo que seja eu, noutros níveis, o patego da relação) é que o saber não está na informação, e não resulta da soma dos seus itens, e antes se situa no modo como lemos a “experiência”. Sendo esta, tão somente, o que “acontece” quando a informação deixa de transitar à nossa frente, fora de nós, com os seus brilhos efémeros, e se interioriza, inscrevendo-se subcutaneamente no nosso corpo, levando-nos a mudar a vida e o olhar em conformidade com o nosso comprometimento no seu rasto. Avatar que o meu aluno ainda não está disposto a assumir porque, como é novo, acha que tem ainda mil hipóteses à sua frente e não tem que se vincular com nada.

Ora, como alvitrava o Pound, no ABC of Reading, e eu tomo por certo: «Os homens não compreendem os livros até que tenham vivido uma porção considerável da sua vida. De todo o modo, nenhum homem compreende um livro profundo enquanto não tiver visto e vivido ao menos uma grande parte do seu conteúdo.»

Talvez se ele observasse o rosto de Auden percebesse: o tempo é um arado e os mil sulcos na face do poeta confluem para um mesmo resultado, é imparável o modo como o humano se aproxima da morte e aos caminhos que se bifurcam convêm estar sustentados em valores para não resultarem em miragens mas em riqueza expressiva.

Resulta daqui que na relação com o conhecimento escavar seja o que é exigível, nem que seja para que se levantem poços de ar – percepções concretas. Mas se até o acto de observar, em si mesmo, leva tempo, o que ele não quer “desbaratar”, abstraído de que temos de perder para ganhar…

Ilustra-o o belga Jacques Darras, num poema, Nommer Namur, em que alude aos dois rios da sua infância que circundam a cidade), e de que traduzo um excerto (Darras é um poeta de poemas longos):
«(…)/ Como restabelecer a circulação num rio confiscado por um hino?/ Deixem-me explicar./ Afago-o vai para um longo tempo./ Acarinho-o há um vasto tempo infinito./ Isto poderia durar meses, bastantes, anos, uma vida inteira./ Acaricio o rio no sentido das suas pernas para conseguir que o sangue reaprenda o sentido da água, a jusante./ Para que ninguém se engane, isto nada tem que ver com a ecologia, é preferível que se considere a medicina./ Uma medicina enamorada./ Uma medicina poeticamente enamorada./Que consistiria em curar os rios ou às cidades com a voz./ Ou reciprocamente./ Com o matiz que pretende fazer passar todo um rio como o Mosa pela sua própria voz de uma vez só, o que suporia um gargarejo gargantuesco./ Enfático./ Não confundir ênfase com empatia./ Não, eu curo-me e curo-nos com os rios, nessa liquidez fluvial./ Queria que nos encontrássemos na palavra, na fluidez./ Essa transparência fluida que é como a respiração da água prévia à desembocadura./ E para o qual os rios do Norte parecem possuir desde sempre uma enorme facilidade./ Na sua moderação pouco torrencial./ Igual a si mesma./ Na sua uniformidade falsamente plácida./ Não busco tanto o epos antigo caricativo com os militares e com as castas de soldados demasiado tempo afastados das mulheres./ Não busco o conhecimento profundo de Gilgamesch./ Busco o jogo alargado da insinuação amorosa através da voz.»

Uma voz. Manter no fio de uma voz a insinuação amorosa que pode exalar do afecto e juntar-se à admiração – esse são princípio de proporcionalidade – na liga que importa, que não é a do futebol mas a da vida que decola do seu ponto de irrelevância.

27 Mai 2021

E tudo o vento levou

[dropcap]O[/dropcap] fim da Segunda Grande Guerra e a queda do muro de Berlim pareciam anunciar uma era de paz e prosperidade global. Embora a guerra da Jugoslávia e as atrocidades cometidas nos Balcãs avivassem a memória recente nos quais a esperança era ténue e frágil, era uma situação de excepção e não a regra. O mundo ocidental parecia ter chegado ao fim de uma longa e penosa caminhada, ao longo da qual tinha largado a canga do imperialismo colonial e a apetência bélica. A própria União Europeia, titubeando aqui e ali mas basicamente certa da necessidade de transformar a Europa multicelular numa potência global capaz de se sentar à mesa com os adultos, era a prova de que se podia fazer algo do sangue derramado no passado que não fosse mais sangue.

Fast Forward até 2020: o Brexit é uma realidade inelutável, os nacionalismos grassam um pouco por todo o lado e tirando uma ou outra excepção, é nítida a falência dos partidos que construíram a Europa. O zeitgeist da época é profundamente anticientífico, as livrarias transformaram-se em bricabraques onde se vendem toda a sorte de compêndios esotéricos, guias de dietas e manuais de auto-ajuda e pululam as teorias da conspiração. A própria ciência tem de adoptar – de forma absolutamente contranatural – uma postura de permissividade face às múltiplas tontices infundadas que se vão sucedendo. Na maior parte dos países as terapias alternativas estão enquadradas legislativamente e configuram muitas vezes uma possibilidade complementar de tratamento no sistema de saúde pública, embora haja zero evidências da sua eficácia terapêutica.

As pessoas estão aparentemente fartas da civilização. Querem regressar a um estado de “harmonia com a natureza”. Fazem uma selecção do conhecimento disponível e privilegiam apenas aquele que se conforma com a sua visão do mundo. Recusam tudo o resto, rotulando-o de excesso civilizacional cujo propósito é afastar-nos da origem a que pertencemos. O tédio da civilização não é novo. Baudelaire escreve sobre a difícil relação do homem com a cidade moderna. O movimento New Age dos anos setenta constitui-se por via da recusa de tudo quanto era símbolo da supremacia americana. A humanidade burguesa comporta em si um adolescente irado e cheio de certezas negativas que nunca mais cresce e sai de casa.

O fenómeno das redes sociais acaba por ser o megafone de que toda a esta gente meio perdida precisava. Um tipo num arrabalde de Berlin percebe que espalhados por todo o planeta existem pessoas que, como ele, acreditam nos efeitos maléficos das vacinas. “Pessoas despertas”, como cada um dos maluquinhos conspirativos se auto-intitula. Todos aqueles que aceitam os fundamentos científicos que nos permitiram basicamente duplicar a esperança de vida no Séc. XX são “o gado”, a massa informe a caminhar autista para o matadouro do controlo que “eles”, os poderosos, instituíram. Estas pessoas, como é óbvio, não trabalham com lógica. A enciclopédia delas é o youtube. O critério de verdade é a conformidade com o que passaram a pensar. E tudo piora quando têm filhos e resolvem submetê-los a uma infância de acordo com as suas crenças.

Sou absolutamente a favor da liberdade de cada um pensar, escolher e agir de acordo com a sua consciência dentro de um quadro leis equilibradas e justas. Daí se impõe que não se possa proibir um cidadão de optar por resolver o seu divórcio mal digerido com o professor Karamba e não com um psicólogo. Mas não proibir não é o mesmo que incentivar. E o que o Estado tem feito, nomeadamente com o enquadramento legal das terapias alternativas e com a promoção académica das mesmas, é muito mais do que permitir. É conferir uma aura de legitimidade a saberes que se escusam a passar pelo crivo do método científico. É dar a medalha a quem atalhou a corrida.

12 Jun 2020

A recompensa da ignorância

[dropcap style≠’circkle’]N[/dropcap]ão! Nada disto faz sentido! Não faz sentido que continuemos à espera que as coisas se resolvam com medidas políticas ou que exista justiça quando existe tanta gente tão fácil de manipular. Não faz sentido acreditar que alguma vez as coisas vão mudar e que não vão ser sempre os mesmos a ser privilegiados. Não faz sentido acreditar num qualquer qualquer estado de graça onde teremos todos os mesmos direitos e onde ninguém irá sair prejudicado. Não, isso não existe. Não faz sentido pensar que o real valor de cada um será alguma vez reconhecido em vez de serem reconhecidos os amigos ou os oriundos de famílias influentes ou de grupos de poder dominantes. Nada disto faz sentido porque é assim que o mundo é.

Não! Nada disto faz sentido! O estado de graça não existe. O que existe é um continuado exercício do mal no qual se prejudicam muito rapidamente as minorias. O que existe é apenas um tenebroso recolhimento onde permanecemos sem respirar e onde nos fechamos em concha. Onde deixamos de dizer, pensar, ser. O que existe é sermos constantemente empurrados para não falar, não exprimir opinião, não ter vida porque qualquer uma dessa coisas nos prejudica e mesmo assim iremos sempre acabar a mendigar para comer. O que existe é que vão sempre ser os mesmos a ocupar os lugares mais favorecidos, não porque tenham mais qualificações ou mais qualidade para o fazer mas sim porque é assim que o mundo é.

Não! Nada disto faz sentido! É vergar e obedecer. Não questionar a autoridade. A ignorância é recompensada. O venerar falsos ídolos é recompensado. E qualquer luz disfarçada que possamos querer acreditar, neste ou naquele comentário político, não é mais que uma luz falsa, não é mais que uma ilusão. Toda e qualquer luz em que queiramos acreditar será imediatamente usurpada do seu brilho, da sua esperança, pelas elites, pelos demagogos, pelos oportunistas. Toda e qualquer luz será retirada de um e dada a outro que por mérito próprio nenhum a absorverá apenas porque se chama assim ou assado ou tem este ou aquele amigo ou obedece e se porta bem. Não faz sentido acreditar em mérito ou mesmo lutar, trabalhar, fazer melhor, porque tudo isso de nada vale e a tudo isso se renuncia em favor de pessoas menos qualificadas mas com maior poder de intrujar.

Não! Nada disto faz sentido! Não faz sentido acreditar nos direitos humanos, na igualdade das mulheres, no respeito racial. Não! É mesmo uma ilusão! Não faz sentido dedicar toda uma vida a um lugar que nunca reconhece o real valor do trabalho que se faz. Não faz sentido ficar nesse lugar quando fora dele se é reconhecido e acariciado. Não faz sentido que se tenha que renunciar a uma melhor qualidade de vida apenas por amor a esse lugar. Não! Nada disto faz sentido e não vale a pena chorar porque é assim que o mundo é.

Não! Não! Não! Se esse lugar é tão burro que continua a dar tudo a uns e nada a outros o melhor é tomar coragem e tomar a decisão correcta e, como numa separação amorosa, pedir o divórcio. Se esse lugar não reconhece, não dá o devido valor, então é tempo de partir. Se esse lugar não merece quem mais trabalha para a sua evolução, ou para o desenvolvimento de uma área da sua sociedade, então é tempo de o abandonar. Se esse lugar não está interessado em evolução e não está interessado em ser melhor, e se está apenas interessado em proteger os mesmos que sempre protegeu, então não há nada mais para fazer que abdicar da esperança, partir, manter a sanidade mental, porque nesse lugar não importa nada. Nesse lugar o que importa é como é que cada um se chama, assim ou assado, ou se tem este ou aquele amigo, ou se pertence a este ou aquele grupo de poder e é assim que o mundo é. E isto é verdade tanto aqui, deste lado, como aí, do vosso lado, amigos americanos.

Sim! Não faz sentido! Mas era esperado ou pelo menos eu esperava. Assim o previ há 18 meses atrás. Simplesmente óbvio para mim que Baudrillard e a híper realidade se reviam do fenómeno Trump e na teoria do reality TV, e que o asno iria ganhar sobre qualquer outro e é por isso que ainda faz menos sentido. Um predador sexual, mentiroso, aldrabão, racista, misógino, apoiado pelo KKK derruba com qualquer ideia da América como ideia de infinito sucesso individual e de liberdades colectivas. Um homem que nem a universidade terminou, que passou a vida toda a viver à conta do dinheiro do pai, que apresentou bancarrota inúmeras vezes, que tem inúmeros crimes fiscais, empréstimos dúbios, negociatas ilegais, que tem uma acusação de violação a uma menor e mais um número enorme de outras alegações de crimes sexuais e de racismo, chega a presidente e destrói com qualquer possível ideia de equilíbrio e de um futuro melhor e com qualquer ideia de esperança de balanço político e justiça social. É assim. Não faz sentido mas é assim que o mundo é.

Não faz sentido mas a América, que cai vulgarmente no mais grosso nacionalismo, expressou-se em massa de modo naïf pelo candidato que lhe vai retirar direitos. E não irá chocar se a economia voltar a um estado de recessão. É absolutamente fantástico como as pessoas são tão facilmente atraiçoadas por uma questão de empatia. O homem que vai destruir com tudo o que foi conseguido durante as últimas três décadas em direitos sociais e nos últimos oito anos em direitos de saúde e melhorias financeiras ganha, porque na burrice dos americanos, gera mais empatia com a sua malcriadez e porque se resolveu considerar que a sua oponente era a candidata do establishment.

Não faz sentido ser-se tão burro. Trump quer dizer establishment seus burros. Ou o que é que acham que um gajo com hotéis e casinos é? Os vossos direitos estão agora em perigo seus tontos, e isto é tanto verdade que basta apenas saber ler as suas declarações. A América que cai sempre na usurpação do nome do continente como se não houvessem outros países, que confunde continuadamente Estados Unidos com América. Sim essa mesma América que se considera a líder do free world e o país mais importante  do mundo e etc. e tal entregou o seu destino a um wannabe déspota que apresentou como política a fabricação de caminhos ínvios que apenas o beneficiam a ele próprio e aos que continuadamente praticam a mesma arte da intrujice onde tudo vai ser “great, you’ll see, so great, the best.” De repente até parece que estamos numa qualquer continuação do “They Live” do John Carpenter e onde apenas alguns têm o poder de ver os extraterrestres que estão no poder a dominar-nos.

Sim, não faz sentido que o candidato que acha que a China esteve bem no modo como limpou Tiananmen da revolta estudantil, que idolatra Saddam Hussein, Putin, Kim Jong Un e que acha que os países europeus têm que pagar para serem defendidos militarmente tenha ganho – embora que também isto seja uma mentira porque ele vai é aumentar a posição militar no mundo ou não fosse ele republicano. Sim não faz sentido que tenha sido a mesma pessoa que vai destruir com todos os acordos comerciais e que ao fazê-lo irá entregar o mundo de mão beijada à China. Boa sorte na vossa falência minha querida América. Tenho pena que tenhas escolhido o suicídio. A China, neste momento, estará secretamente a celebrar o facto de se ir tornar no país mais rico do mundo muito mais cedo do que o esperado. A Rússia por seu lado celebra ter eleito o seu primeiro presidente dos Estados Unidos. Muitos parabéns a todos.

E muito obrigado América, acabas de fazer com que todos as outras pessoas do mundo se sintam imensamente espertas. Quanto a mim estou oficialmente do lado da resistência e estou ao dispor se alguma cidadã americana se quiser corresponder comigo com vista a casamento. Tenho passaporte europeu, residência permanente de Macau, visto de longa duração na China e sou carinhoso, bom companheiro, não sou um bad hombre e até acho interessante se a senhora for um pouquinho nasty.

10 Nov 2016