Anabela Canas Artes, Letras e Ideias CartografiasNovas dos icebergs – 1 Ou não. Aquele momento insinuou-se numa poética em cinzas. A poesia que surge em claros cinzentos não é nova e se bem que luminosa, melancólica. Por outro lado, há as pequenas coisas e em cada uma, uma ligação a algo maior. Links. Azuis acinzentados. Uma cor variável muito pouco saturada. O gelo marinho ou as neves, em camadas com uma subtil química diferente. O momento começou assim, mas terminou na densa complementar laranja. Os cinzentos de um drama frio, longe da ribalta, num planeta a aquecer e depois os tons potencialmente quentes do planeta vermelho, frio, frio. A ver o futuro. Em cinzentos. Uma falha enorme, uma linha cortante e progressiva a desenhar a cartografia da desolação na plataforma de gelo de Brunt. Um lugar paradigmático de vazio na Antártida. No silêncio dos brancos nas imagens adivinha-se o som de um estalar quase tectónico e igualmente brutal. Uma rotura que se vai delineando em quilómetros de um desenho imparável, que por estes dias, não se sabe quando, deixa de ser apenas uma linha de fissura irreversível no mapa gelado. E desprende-se do colo gelado materno um novo iceberg, ou talvez dois. Irmãos. Órfãos que iniciam, então, a deriva. Ou a rota previsível do suicídio. Do tamanho de duas cidades de Nova Iorque. Ainda mais do que o necessário para os Martinis gigantes dos deuses que nos contemplam, irónicos. São fotografias da NASA. Mas não as dos deuses. Todos os dias a subliminar apetência à elaboração de mapas, á revisão de planos cartesianos a dimensionar a distância, referências ou camadas de verdade espacial nas coisas sólidas e por inerência nas que são impalpáveis. – Encontramo-nos em Marte. Acedi como sempre ao tom incontornavelmente definitivo e misterioso, do enigma em que não se conhece cota ou afastamento e portanto de geometria impossível. E à recusa subjacente em definir pistas ou desenhar linhas no mapa imaginário. O único à mão. E que, como todos, é formado por camadas de diferentes estratos. Não geológicos, mas de verdades sobrepostas e com uma desfocagem inerente àquilo em que umas, como camadas de transparência, diferem das outras, na multiplicidade de contornos e na variação das linhas que demarcam fronteiras. A história, a política, as religiões e as lutas territoriais, a flutuação dos povos, a sucessão de camadas no tempo, a desfocar a leitura de um mapa. Das fronteiras que variam em função de guerras e também de sentidos. E as histórias que se contam, olhares, contos e pontos que se acrescentam. Ou a terra ela própria a criar uma narrativa de registos visuais. Ler as camadas, Também. Como épocas na história da estética. Um planeta no céu é sempre o ponto de encontro do olhar. Cruzado em cima e lá longe. Não sei se dizia isso quando o disse. A ideia era descobrir no enigma dos dias, a viagem a fazer. E o mapa, de momento, caído como sem vida nas mãos, desdobrado, a desvanecer-se em silêncio e a diluir-se em tonalidades difusas, de pouco mais que invisibilidade. Vejo o seu olhar atento à espera do meu caminho imprevisto. Dos erros. E sinto-me espiada enquanto enceto caminho. Procuro. Talvez guiada pelo óxido de ferro. Aquela cor quente seca e em corrosão como as palavras que não se entendem, as dúvidas. Viajo à beira dos desertos. Do Arizona. A vastidão a secura e o desabitado que é. O vento. A cor. A terra. Um canal de irrigação serpenteia e desenho uma linha de viabilidade na terra desértica do estado. Quando o homem quer, tudo. Lembro de novo a fractura crescente no mapa do gelo. Olho pela janela e no cinzento quase total do dia, a custo algumas cores tímidas e persistentes se afirmam em voz baixa. Aquela terra árida e seca, mas fértil. Somente a precisar de ser regada, acalentada. E os monumentos que a erosão esculpe e que inspiram uma sensação de irmandade que nos repreende de tanto reagirmos ao desgaste da memória. Da dor. Ali, o desgaste construiu. Chamar-lhe nação Navajo, ainda, é uma triste demagogia. Mas ninguém. A paisagem é deslumbrante, desértica e esculpida com minúcia arquitectónica. Monument Valley. Formações rochosas como grandes catedrais, erguidas pela própria terra em homenagem a si. Arenitos. Camadas que são registo da sedimentação, que ecoa a depósitos em rios e mares. Conchas e fósseis e areias de quartzo e feldspato e micas de reflexo luminoso vítreo, aglutinadas por um cimento natural que preserva a memória das eras. A dizer tempos sobrepostos. Perfis. História. No planalto do Colorado, na linha de fronteira entre Utah, Arizona e Novo México. Os quatro cantos. Com os grandes montes rochosos de uma coloração rosada. Dos óxidos de ferro. Os mesmos que em Marte. Daí que possa ter-me perdido no caminho, atraída ilusoriamente pelo mapa de cor. Mas óxido de ferro parece ser a mesma coisa em qualquer ponto do universo. Hematite. Ou, às vezes ferrugem. Uma coisa bonita mas que estraga, voraz. E dali, daquelas sílabas, como voltando de uma viagem, fomos sentar-nos no sofá da sala, como duas páginas de insónia, cúmplices. Encostámos a cabeça, a ver. Num monitor Marte e no outro os desertos do Arizona. Num filme de John Ford. Os mesmos laivos rosados e ferrosos de terras diferentes e sonhos parcialmente idênticos. A verdade é o que vive no interior da nossa cabeça. Mesmo encostada a outra. E no fundo é indiferente se contemplamos a abóbada esférica e estrelada do planetário, nos confins da infância, a paisagem desértica que nos seca os lábios, ou um paradigma além nuvens, porvir para sempre. Separado por duas atmosferas e gravidades e muito espaço-tempo sideral. No meio de uma tempestade global de areia que envolve o planeta numa nuvem perene e avermelhada, ocultando crateras, cavidades abissais e outros registos cartográficos. É indiferente tudo, menos estar. No veludo puído e alaranjado rosa, do sofá, com todas as descolorações e colorações de muito viver o peso dos corpos sentados ao fim do dia. Encostados. Nas suas verdades estrangeiras. Penso: de todas as ficções, qual é a verdade viva. Dentro. Em que o espaço se abre, de uma forma ou de outra ao olhar e nas suas múltiplas imagens desertas. Marte e essa solidão concreta. Que cenário fabuloso, silencioso, estranhamente familiar, e que solidão verdadeira. Como somente aquela em que se acredita. O paradigma da ausência total. Do humano, dos objectos, da memória, dos vestígios. Marte, os desertos do Arizona e outros desertos. Depois penso nos nomes dos brinquedos a percorrerem Marte. O rover Perceverance e o helicóptero Ingenuity. Olho para o lado e pergunto-lhe se não é lindo…
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesO inquebrantável iceberg [dropcap]E[/dropcap]xiste uma canção popular cantonesa, muito famosa, intitulada “Quebrar o Iceberg”, mas a letra fala sobretudo da possibilidade de derreter o gelo com amor, sem indicar um método específico para destruir o iceberg. Se um navio de 1.000 toneladas conseguisse quebrar um iceberg, o Titanic não teria afundado. Os icebergs flutuam na água e apenas10% do seu volume emerge à superfície. É impossível quebrar estas gigantescas massas de gelo de forma abrupta, no entanto há neste mundo quem o tente fazer. Na antiga China, as relações entre os governantes e o povo era comparada à dos navios com o oceano. Os navios têm de ser sustentados pela água para se manterem à superfície e poderem navegar. Se os marinheiros não tiverem um bom conhecimento das correntes, a embarcação afunda. Numa perspectiva científica actual, se a água gelar, pode recorrer-se aos barcos quebra-gelo para resolver o problema; mas quando se forma um iceberg, não há forma de quebrar esta montanha gelada. Um quebra gelo que tentasse investir contra um iceberg teria a sua sorte traçada. O tempo começa a arrefecer em Outubro, mas os icebergs políticos e económicos já apareceram em Hong Kong e em Macau. Dia 1 de Outubro, em Hong Kong, houve manifestações e confrontos nas ruas de Causeway Bay. As medidas de combate à epidemia e a lei de segurança nacional não foram capazes de acabar com o desagrado da população. A polícia foi novamente chamada para manter a ordem. O ambiente de festa dos festivais de Outono foi desta vez perturbado pelos conflitos entre a polícia e os manifestantes, que pudemos ver em directo nos ecrãs das televisões. Depois de várias detenções, as ruas voltaram a ficar pacíficas. Mas terá o problema ficado resolvido? Depois de ter assistido à forma desabrida com que Carrie Lam proferiu o seu discurso, fiquei bastante preocupado por ela. Quebrar o gelo não quer dizer necessariamente quebrar o iceberg, mas sim fazer tudo o que está ao nosso alcance para o derreter. Em vez de elogiar os agentes pela determinação e bravura com que puseram fim aos motins, teria sido preferível criar uma Comissão de Inquérito independente para avaliar de forma justa a actuação dos agentes e não imolá-los numa colisão contra o iceberg. O iceberg político em Hong Kong não dá mostras de vir a derreter nos anos mais próximos, porque houve quem se lembrasse de colocar o navio “Hong Kong”, com 7 milhões de pessoas a bordo, num universo gelado. A coragem política demonstrada não deixa de ser impressionante, mas é totalmente desprovida de sensatez. Por enquanto, fica a dúvida se iremos assistir à destruição do iceberg ou do navio, mas acredito que em breve o saberemos. Em Macau, o Lago Nam Van não consegue albergar um iceberg político. O ar gelado transportado pelo iceberg económico, que surgiu no início deste ano e que por cá continua instalado, fez baixar a temperatura de Macau para níveis nunca antes vistos. Durante a “Semana Dourada” na China continental, que teve início a 1 de Outubro, o número de turistas continentais que visitaram Macau caiu em mais de 80 por cento, em comparação com o ano anterior. Os esforços do Governo para trazer turistas para o centro da cidade revelaram-se inúteis, e a afluência nos Casinos caiu a pique. Para enfrentar o iceberg económico trazido pela epidemia, o Governo da RAEM propôs-se utilizar mais 20 mil milhões de patacas das reservas fiscais, para fazer face às despesas dos últimos dois meses de 2020. É previsível que a economia doméstica não vá melhorar a curto prazo, nem que o iceberg económico vá derreter tão depressa. Vinte anos após o regresso de Macau à soberania chinesa, e com os esforços de grupos de peritos, de académicos e de consultores das maiores organizações, a diversificação moderada da economia acabou por não passar de um projecto de investigação caríssimo. Na situação actual, sitiado pelo iceberg, Macau tem de confiar no Chefe do Executivo para encontrar uma boa estratégia que lhe permita libertar-se do gelo.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesO inquebrantável iceberg [dropcap]E[/dropcap]xiste uma canção popular cantonesa, muito famosa, intitulada “Quebrar o Iceberg”, mas a letra fala sobretudo da possibilidade de derreter o gelo com amor, sem indicar um método específico para destruir o iceberg. Se um navio de 1.000 toneladas conseguisse quebrar um iceberg, o Titanic não teria afundado. Os icebergs flutuam na água e apenas10% do seu volume emerge à superfície. É impossível quebrar estas gigantescas massas de gelo de forma abrupta, no entanto há neste mundo quem o tente fazer. Na antiga China, as relações entre os governantes e o povo era comparada à dos navios com o oceano. Os navios têm de ser sustentados pela água para se manterem à superfície e poderem navegar. Se os marinheiros não tiverem um bom conhecimento das correntes, a embarcação afunda. Numa perspectiva científica actual, se a água gelar, pode recorrer-se aos barcos quebra-gelo para resolver o problema; mas quando se forma um iceberg, não há forma de quebrar esta montanha gelada. Um quebra gelo que tentasse investir contra um iceberg teria a sua sorte traçada. O tempo começa a arrefecer em Outubro, mas os icebergs políticos e económicos já apareceram em Hong Kong e em Macau. Dia 1 de Outubro, em Hong Kong, houve manifestações e confrontos nas ruas de Causeway Bay. As medidas de combate à epidemia e a lei de segurança nacional não foram capazes de acabar com o desagrado da população. A polícia foi novamente chamada para manter a ordem. O ambiente de festa dos festivais de Outono foi desta vez perturbado pelos conflitos entre a polícia e os manifestantes, que pudemos ver em directo nos ecrãs das televisões. Depois de várias detenções, as ruas voltaram a ficar pacíficas. Mas terá o problema ficado resolvido? Depois de ter assistido à forma desabrida com que Carrie Lam proferiu o seu discurso, fiquei bastante preocupado por ela. Quebrar o gelo não quer dizer necessariamente quebrar o iceberg, mas sim fazer tudo o que está ao nosso alcance para o derreter. Em vez de elogiar os agentes pela determinação e bravura com que puseram fim aos motins, teria sido preferível criar uma Comissão de Inquérito independente para avaliar de forma justa a actuação dos agentes e não imolá-los numa colisão contra o iceberg. O iceberg político em Hong Kong não dá mostras de vir a derreter nos anos mais próximos, porque houve quem se lembrasse de colocar o navio “Hong Kong”, com 7 milhões de pessoas a bordo, num universo gelado. A coragem política demonstrada não deixa de ser impressionante, mas é totalmente desprovida de sensatez. Por enquanto, fica a dúvida se iremos assistir à destruição do iceberg ou do navio, mas acredito que em breve o saberemos. Em Macau, o Lago Nam Van não consegue albergar um iceberg político. O ar gelado transportado pelo iceberg económico, que surgiu no início deste ano e que por cá continua instalado, fez baixar a temperatura de Macau para níveis nunca antes vistos. Durante a “Semana Dourada” na China continental, que teve início a 1 de Outubro, o número de turistas continentais que visitaram Macau caiu em mais de 80 por cento, em comparação com o ano anterior. Os esforços do Governo para trazer turistas para o centro da cidade revelaram-se inúteis, e a afluência nos Casinos caiu a pique. Para enfrentar o iceberg económico trazido pela epidemia, o Governo da RAEM propôs-se utilizar mais 20 mil milhões de patacas das reservas fiscais, para fazer face às despesas dos últimos dois meses de 2020. É previsível que a economia doméstica não vá melhorar a curto prazo, nem que o iceberg económico vá derreter tão depressa. Vinte anos após o regresso de Macau à soberania chinesa, e com os esforços de grupos de peritos, de académicos e de consultores das maiores organizações, a diversificação moderada da economia acabou por não passar de um projecto de investigação caríssimo. Na situação actual, sitiado pelo iceberg, Macau tem de confiar no Chefe do Executivo para encontrar uma boa estratégia que lhe permita libertar-se do gelo.