Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasE se… [dropcap]O[/dropcap]s dias começam a estar quentes e a pedirem algum ócio merecido, nem que seja para escapar das pequenas e médias tragédias que sempre nos oferecerá a vidinha. Os leitores sabem do que falo: longe de tudo e perto de nós, dedicados de alma e cérebro por uns minutos a questões tão essenciais para a humanidade como “qual será a temperatura ideal de uma imperial” ou, um pouco mais dramático, “que livro é que me apetece ler agora”. Aqui no bairro é certinho: os cidadãos seniores ganham vida e espaço e as suas alegres rabugices são partilhadas com todos, sem medo nem pudor. Nada é poupado, desde a política ao clássico “onde é que esta juventude irá parar?” e passando pelo melhor lugar onde comer uma lampreiazinha decente. Eu, que tal como o personagem e autor do livro a que roubei o nome desta coluna, me encontro (espero) no meio do caminho da minha vida, gosto de os ouvir. Sento-me perto da mesa em que estão e discretamente tento pescar o máximo de sabedoria e frases saborosas que deles saem. É um ofício delicioso, temperado ainda por cima com uma modesta ambição: um dia gostaria de ser como eles. E assim aconteceria sem sobressaltos, não fora o aparecimento súbito da menina Marina e da sua filosofia involuntária, que muitas vezes são semente para estas palavras. Como hoje, aliás. Enquanto atendia um cavalheiro que estava ao meu lado aproveitou para perguntar de forma displicente, um olho em mim e outro no abatanado prestes a sair: “O senhor Nuno já alguma vez pensou como seria se não tivéssemos a vida que temos e fossemos todos mais ricos e felizes?” Manhã de ócio definitivamente arruinada com esta questão. Por outro lado, crónica assegurada. O que mais me inquietou não foi sequer a presunção de que sendo mais ricos seríamos mais felizes – o que verdadeiramente me perturbou foi o “se”, a ideia da vida no condicional. Nunca compreendi este exercício, que me parece inútil, triste e perigoso. Mas é uma armadilha em que já vi muito boa gente cair. Viver a vida no condicional é um limbo que deveria ter sido considerado por Dante (sim, outra vez) como mais um círculo no seu Purgatório. Pensar o que poderia ter sido é uma espécie de ingratidão face ao que temos, mesmo quando o que temos não nos agrada. Numa teologia laica seria pecado mortal. Aquele amor que falhou, aquela carreira que não aconteceu, aquele romance que poderíamos ter publicado – pobres minutos, tão desperdiçados neste território de ninguém, que de útil e de belo têm tanto como os famosos prognósticos depois do jogo. Idealmente, passado, presente e futuro devem estar no mesmo lugar. E se esta formulação parece parente dos tempos preconizados por Santo Agostinho – “o presente do passado; o presente do presente; o presente do futuro” – então é porque é. O famoso carpe diem de Horácio volta a lembrar-nos a profunda tristeza de entregar as nossas almas ao “e se”. Agarrar o dia é aproveitar para pensarmos constantemente no que somos e como podemos fazer para sermos melhores para nós e para os outros, já que não sabemos o minuto seguinte (e não, não é um convite desabrido ao trólaró da vida). É tão escuro viver no condicional. Uma estrada sem saída, uma rua sem luz. Já nos chega o maior e mais indelével dos “ses” que é nascer. E esse, francamente, já se sabe como irá acabar.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasAs profecias de Horacio e de Duchamp 13/05/2017 [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]ntem estive atento às manobras de Trump, que, enquanto o ar lhe falta, procura o pipo. A direcção dos meus binóculos tem uma razão de ser: li uma profecia segundo o qual o desdenhoso americano lançava os cães contra a Coreia do Norte no dia 13 de Maio. Transcrevo: «O místico Horacio Villegas, que previu a vitória de Trump nas presidenciais, declarou que a terceira guerra mundial vai ser iniciada este ano. Uma guerra, onde serão envolvidos os EUA, a Rússia, a Coreia do Norte e a China, e que terá início em 13 de Maio de 2017 por iniciativa de Trump. Ele precisou que a guerra não iria durar muito e acabaria já em 13 Outubro de 2017, mas causará muitas destruições e mortes. A data de 13 de Maio não foi escolhida acidentalmente: é o centenário das Aparições de Fátima em Portugal. Por outro lado, o dia 13 de Outubro de 2017 marca a sexta e última aparição mariana de Fátima que, segundo a lenda, tinha declarado que “a guerra vai acabar e os soldados vão regressar para suas casas”. Há 100 anos, estas palavras foram interpretadas como uma profecia sobre o fim da Primeira Guerra Mundial. Hoje em dia, Horacio Villegas aplicou estas palavras para apoiar sua teoria. » Ora, eu acredito piamente em todos os Horácios, menos no poeta romano, dado que os poetas, como se sabe, mentem. Este é místico e nas acareações com o divino algo lhe será transmitido – é assim que eu penso. A profecia não se cumpriu. Porém em Portugal, no mesmo dia, completou-se um ternário: o Papa canonizou os pastores, o Benfica somou o tetra (e o 4 introduz aqui a quaternidade) e um cantor português ganhou a Eurovisão, com o singular nome de Salvador. Se eu acreditasse no pensamento mágico diria que isto anda tudo ligado e a configuração desenhar-se-ia assim: numa espécie de efeito borboleta a ida do Papa a Fátima despertou um novo ciclo de fé que levou o Criador a lançar um relance misericordioso sobre o tão nefasto globo tendo, num piscar de olhos, desviado os dedos sápidos de Trump do alcance de alguns botões mais nocivos que a peste, e dado oportunidade a que uma nova ressonância quaternária reintroduza no mundo a harmonia e a cura das almas, como o atesta o indubitável transe que ontem se deslocou de Fátima para o Marquês de Pombal. E a prova de que o Espírito Santo esteve entre nós é certificada pelo nome do cantor, muito mais do que uma coincidência, o qual nos devolveu a espontaneidade, a crença no impossível e a alegria primordial. Claro que tudo isto já fora anunciado pelos pastorinhos… e por Agostinho da Silva. E como nesta explicação saturada de sentido devolvi ao mundo alguma dignidade profética (dei-te um bigode, ó Horacio!) vou já abrir uma conta bancária para colher alguns contributos para uma (merecida) vida de folia. Logo, logo, informo-vos sobre o iban da conta. 15/05/2017 É curioso como nunca vi lavrada qualquer reflexão sobre a estranheza do mictório do Duchamp se chamar Fonte. As fontes emanam de dentro enquanto para o urinol confluem os fluxos, de fora. Os ready-made são um gesto cujo sentido último mostra de forma paródica que não existe uma essência da arte embora, paradoxalmente, Duchamp tenha designado o seu como Fonte. Mesmo que ironicamente o dadaísta não saiu da orbe do sagrado. Talvez o Bataille tivesse sido o homem ideal para nos falar desta ambivalência, pois afinal por detrás da negação do emérito xadrezista vislumbra-se uma aporia. Deus (que é ateu como eu) deu-lhe xeque-pastor. Em 1912 Duchamp, em companhia de Brancusi e de Fernand Léger, visitou o Salão da Locomoção Aérea e dissera aos amigos, «Acabou-se a pintura. Quem pode fazer melhor do que esta hélice?». E foi consequente com esta rendição quando, poucos anos depois, enviou a Fonte ao Salão dos Independentes, em Nova Iorque, mercê de cujo gesto a arte se tornou aquilo que livremente o artista decide que seja arte. O autor, a partir daí, converte em obra de arte qualquer objecto, bastando assiná-lo. Com graça e petulância diria depois Warhol: «Eu assino tudo, bilhetes de banco, tickets de metro, inclusive um recém-nascido em Nova Iorque, (nas nádegas suponho). Em tudo acrescento ‘Andy Warhol’ para que se converta numa obra de arte». Tem graça a imodéstia, mas não passa disso. O drama é que se acreditou. E da frivolidade engenhosa associada à frivolidade com que os media procuram novidades nasceram os Jeff Koons, os Paul McCarthy (o do dildo gigante na Place Vêndome em Paris, a que deu o soporífero nome de Árvore de Natal – e nada me move contra os dildos, acentue-se), as Joanas Vasconcelos, os Claes Oldenburg, as Sophie Calle deste mundo, que, numa concepção empobrecedora do que seja a arte (afinal, basta-lhes a sua assinatura, só comigo a coisa é mais trabalhosa), limitam a sua criatividade a uma reprodução mecânica dos jogos de deslocar e de multiplicar (cf. “galo de Barcelos” de Joana Vasconcelos que os coitados dos chineses têm de pagar). Contra este embuste, apetece lembrar que Eduardo Chillida e Jorge Oteiza, por exemplo, inventaram maravilhosos objectos que superaram na sua expressividade formal e ilimitada abertura perceptiva as linhas funcionais das hélices dos aviões (profecia, de que até o Duchamp se alheou não voltando à pintura mas produzindo posteriormente algumas peças extraordinárias – o problema está sempre nos epígonos), ou que, mesmo para a pintura, houve excelentes saídas e tão diversas como as de Matta, Tapiès e Soulages. Mas seja no domínio da crença como no da arte, a farsa emerge porque há sempre um profeta peremptório que nos obnubila a capacidade de pensar e de acreditarmos no valor da nossa experiência. Continuamos no geral a preferir a imitação à invenção, estigma de que temos de nos salvar. Salvadores à parte.