O desenvolvimento de uma exclamação

[dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário. Podemos tratar-nos por tu? Não? Compreendo…Perdoai, então. E perdoai por tudo: pela insolência e atrevimento, claro, mas também pelo logro. Prometi pedradas em livros de versos, a ver a mossa que lhes faria, calhando em acertar-lhes, mas aponto já para outros alvos, pousando o olho lírico noutras gaiolas, outras janelas.

«Um Bailarino na Batalha», de Hélia Correia, não parece um poema, mas é-o, em certa medida. Percorro definições de poesia que o atestem, que isto da teoria literária pouco diferente será da água benta, cada qual toma de quanta quer e como lhe convém. Benzo-me, com uns salpicos abençoados por Valèry, para dizer ao que venho. Se bem não faz, também não prejudica: «A poesia é o desenvolvimento de uma exclamação». E por aqui se comprova o lirismo de Hélia Correia, ainda que numa novela que não descuida todas as categorias da narrativa: os vários tempos e ritmos a atravessar a temporalidade ficcional que manipula, por sua vez, os cordéis da acção, as personagens, o espaço e o narrador a um canto, afadigado, gerindo pontos de vista. Tudo isto ao serviço de uma inquietação aguda, de uma exclamação crescente: espécie de ponto luminoso que se acende, brilha até à sua intensidade máxima, quase cegando, e que depois se apaga. A luz fere, desaparece, fugaz, mas o golpe de luz permitiu ver, mesmo por breves instantes, uma imagem que persiste como emoção exclamativa, um brado que se ouve, apesar de embutido na garganta. Meu tão certo secretário, já que cá viestes, dando-vos a esta maçada, permiti-me continuar, que as metáforas são como as cerejas…

Assim se pode distribuir a literatura: De um lado, temos as narrativas, espécie de ampla paisagem por onde se caminha; o leitor pára, cuida de pormenores, e ora os olhos se alongam lá para dos horizontes, ora se demoram na minúcia de um formigueiro, mesmo ali, ao cair do pé. O leitor deixa-se ficar no cenário da ficção, vê o nascer do sol, vislumbra o ocaso ao fundo; depois anoitece, e tudo se queda de seguida num repouso sossegado. Por outro lado, há também a poesia, que se mede por diferentes bitolas: aí, o leitor permanece como numa noite de tempestade: fica à janela, só olhando, que o tempo não convida a caminhadas. Tudo escuro, lá fora. Mas, de repente, cai um relâmpago. E então, num eis, toda a floresta se acha iluminada: bela e tenebrosa, como nunca se vira. O leitor já nem consegue mais dormir e, no dia seguinte, de manhã, olhando pela mesma janela, sabe que a floresta do dia anterior, vista à luz breve do relâmpago, sequer se aproxima daquelas árvores desfiladas, que sempre avistara no conforto da vida: assim é um poema. Depois, para lá da poesia e da prosa, ou enlaçando-as, até, há os livros de Hélia Correia: um constante caminhar na tempestade. O leitor anda à chuva, molha-se, por evidência, e a cada momento um relâmpago lhe mostra outra paisagem na paisagem, muito mais dura, exclamação breve, vislumbre assombroso à luz do relâmpago.

«Bailarino na Batalha» é a graciosidade de um esgar, de um movimento que se liberta (o movimento do cavalo na batalha, não do combatente), terrível, mas belo, um movimento não previsível que se levanta em dolorosa elegância, na improbabilidade dos escombros. Este simbólico cavalo (literal e metafórico) não aparece na novela, só no poema final, belíssimo, que lhe serve de epílogo (sim, há um poema, neste texto, mas nem só por isso o podemos considerar, no seu todo, um poema também). Só um poema poderia resumir, como conclusão, o relâmpago de perplexidade e espanto, que ilumina o mundo, o nosso mundo, na novela:

[…]
Oh, os cavalos do Mediterrâneo,
leves como vapor,
filhos das águas
dourados como o mar
quando entardece.
Inalcançáveis criaturas mesmo
quando delas fazem montadas,
mesmo quando as conduzem
para a linha do abate
[…]

Da guerra, só acedemos aos estilhaços, somente ao eco daquilo que foi, aos resíduos, às sobras do que para trás se abandonou; uma memória física que se carrega aos ombros, na dura travessia deste deserto, também simultaneamente metafórica e literal, encetada por uma mole desgarrada de migrantes. Toda a novela, em capítulos curtos, alguns curtíssimos, como breves poemas em prosa, se socorre de um tom alegórico para expor uma reflexão profunda sobre o mito da terra prometida: essa Europa-miragem, que com uma mão acena, pungente, e com outra repele, altiva. Assim começa o livro, uma página em branco, só com um parágrafo, talvez um poema:

Aquilo que voa nem espessura tem para projectar sombra. Passa e apenas entristece um pouco a já cinzenta areia. É a memória. A lívida memória, descolada dos cérebros, tão fina, tão doente, que não pode tocar-se, que, ao mínimo contacto, cairá, desfeita em pó. E o seu nome mudará para esquecimento. E o esquecimento tudo esquecerá.

Um bando de migrantes juntos, mas desgarrados e sem pertença, foge da guerra rumo ao mar. Pretendem chegar à Europa. Estão famintos, desolados, mantendo só os mínimos resquícios de humanidade e traços vagos, soltos da sua civilização não nomeada, mas reconhecível, pelos modos de trajar, códigos de honra, uma clivagem entre os homens e as mulheres, de cara tapada pelos farrapos sobrantes, revelando um estatuto de submissão e inferioridade que se vai refigurando ao longo do livro. Não se trata de sobreviventes, são antes morrentes. A palavra não existe, mas ajustar-se-ia bem ao tom de todo o texto, que mostra o que as palavras não saberiam dizer.

Um velho cego, um homem sem braço, desprezado do grupo, por traidor, uma criança visionária, uma mulher-fera, uma velha e mortos, muitos mortos, que vão largando o corpo pelos caminhos, são algumas personagens-símbolo deste povo cercado, sitiado, a reinventar-se nos escombros.

Mais do que uma reflexão, «Um Bailarino na Batalha» é um livro que faz sentir a feridas profundas do confronto mundo ocidental/médio oriente. A urgência reflexiva, terrível, da novela funda-se, afinal, na força da linguagem, das imagens, que se vão sobrepondo com um vigor doloroso: desde a travessia do deserto, à transformação do rio em lodo quase inerte, ao conforto de um bosque, com frutos e animais, que logo se esgotam, até se alcançar o fim da jornada, quando ainda a meio do percurso se estava: o limite é, afinal, a cidade em nove círculos que lhes veda a progressão adiante, até ao mar, porque — adverte-se–a Europa não os quer:

«Porque é que te pões tu à nossa frente? Tem dono este caminho?»

«Ora, os caminhos têm sempre dono», disse o homem. «Tudo tem dono. Tu também tens homem. O teu homem? Escondeu-se atrás de ti?» Estendeu a mão para a agarrar e ela furtou-se. O homem desistiu. Aquele não era o jogo que ele jogava.

«Existem nove círculos na cidade», repetiu ele. «O de fora pertence aos miseráveis, o do centro aos magníficos. Pode apenas passar-se de um círculo para o círculo imediato para fazer as limpezas e a comida. Ninguém sobe das caves e dos túneis, ninguém vê algo que não deva ver. Da cidade não se entra, não se sai. Ela é perfeita. Levou séculos a afinar. Imaginaram que seriam recebidos?»

«Nós não queremos a tua cidade», disse Awa. «Queremos a Europa. Queremos chegar ao mar, pegar num barco e partir para a Europa.»

O homem riu: «A Europa não vos quer. Sabes que mais? Nós somos a Europa. Nós somos a primeira instância da Europa. Estamos aqui para impedirmos o avanço.»

Uma novela belíssima, que não só termina num poema, como é um poema: o tal relâmpago que mostra o mundo em torno e mostra-no-lo como não o conhecíamos ainda.

Hélia Correia, Um Bailarino na Batalha, Lisboa, Relógio d’Água, 2018
11 Mar 2019

O Corpo Nu esse lugar incivilizado onde cresce a febre

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]élia Correia escreveu “ADOECER”, uma tragédia contemporânea que fala da insanidade e da dor dos amantes irredutíveis, e da arte, esse lugar da exceção, da insanidade da radicalidade da vida arrancada para fora da convenção perante o mundo também ele doente, pesa embora o amparo da vida comum esperada, quase higiénica, civilizada, onde afinal a doença também cresce, sempre mas mais modesta, menos catártica, mais aceitável, comedida.

“ADOECER” esteve em cena entre os dias 15 e 18 na Sala de Ensaio do CCB com encenação e dramaturgia assinada pelo Miguel Jesus, numa coprodução  do teatro “ O BANDO  com o Centro Cultural de Belém.

O tom geral é do ausência de luz, os corpos a habitar o flagelo dos nervos sensíveis, nessa realidade telúrica da recusa da convenção que escava fundo o caminho do abismo no fio cortante das emoções com sangue dentro.

A maquinaria expositiva coloca em cena a figura do narrador, que comenta e conduz a narrativa que nos fala da radicalidade da sua relação amorosa de Elizabeth Siddal, modelo, pintora e poetisa, com o pintor e poeta Dante Gabriel Rossetti, vivida na segunda metade do séc. XIX, alicerçada com a figura do coral. Encena a prestação exemplar da heroína trágica, a mulher que assume e escolhe a derrota como fim, coadjuvada pelo protagonista, o pintor, na demanda iniciática do mito de Pigmalião, não já na forma do simulacro da estátua que se torna viva com o favor dos deuses do escultor cipriota, mas no da relação entre modelo e representação, mestre e iniciada, em que a arte ocupa a totalidade da vida.

Vive-se a ruína da conformidade mimética entre modelo e representação. O corpo táctil é o objecto artístico na sua eficácia do desejo, da dimensão erótica-sexual  transgressiva dos modelos socialmente aceites como padrão da relação amorosa. O abismo da morte é pré-anunciado, e a maquinaria cénica e interpretativa consume esse anúncio e fim adivinhado.

Aristóteles , no que nos chegou da sua “Poética”, diz-nos que a “ tragédia é a imitação de uma ação elevada, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes, que serve da ação e não da narração e que, por meio da compaixão e do temor, provoca a purificação de tais paixões”.

O texto e a dramaturgia, bem como trabalho corporal dos actores, segue com exemplaridade esta definição proposta e até hoje aceite. A encenação é criativa e eficiente, nos desempenhos tem particular destaque a protagonista Catarina Câmera, com um diapasão expressivo da mais interior contenção à explosão catártica, num encontro conseguido entre o movimento coreografado da dança contemporânea com expressão e carga emocional que remete para o teatro de texto. De igual modo o trabalho físico do actor Miguel Moreira, na fronteira do hiper acting, é um esforço assinalável assim como o desempenho a todos os títulos superlativo da narradora Sara Castro.

O contexto da narrativa é o núcleo mítico do movimento pré-rafaelita inglês. O texto de Hélia Correia tem como eixo de partida a pintura “Ophelia” (1852) de John Everett Millais. Por aqui percorrem sombras de Shakespeare, da Beatriz de Dante Alighieri, na construção do texto que tem como figura central Elizabeth Eleanor Sidda/Lizzie, a modelo do quadro “Ophelia”.

Importa uma nota final sobre os músicos actores em palco, e música gravada, uma partitura que vai do clássico ao rock gótico, sem esforço, servindo sempre com eficácia a proposta estética e dramatúrgica.

Onde entra o cinema? É uma pergunta que pode ser feita dado ser esse o foco do que aqui escrevo. No trabalho de luz e sombra a matéria primeira do cinema, na contaminação com o cinema expressionista e ao cinema “noir”.  Numa cena do coro, um actor mimetiza os movimentos de Boris karloff no monstro Frankenstein ( 1931) ,  ou ao cinema de Jean Cocteau, de “ The Blood of a Poet” (1930), “Beauty and The Beast” (1946). Que o cinema contamina todas as artes e a vida, não é revelação nova.

No “ ADOECER” de Hélia Correia e nesta encenação e dramaturgia do Miguel Jesus, o corpo nu é o lugar do incivilizado, que ameaça e é ameaçado pelo corpo social estabelecido na sua radical afirmação.  Inflama-se a si mesmo e coloca-se em estado febril da doença. Ousa deslocar o lugar do vício e da virtude, torna-se ameaça, uma quase impossibilidade nestes nossos quotidianos ordenados, limpos sempre que possível de bactérias e vírus que possam ameaçar o bom comportamento social. No entanto a vida hospitalar também não se aconselha, os hospitais são territórios contaminados, é imperioso fugir a todo o custo. A Doença é dupla, tem lugar na sociedade com cartografia emocional com legitimação assegurada em guichés de bons comportamentos e na radicalidade dos nervos contaminados por sangue desobediente.  É neste paradoxo que se caminha, e a função da tragédia, como Aristóteles nos disse,  “é provocar a purificação de tais paixões” .  A mais recente criação do teatro “ O bando” , fala-nos disso, com excelente mestria artística.

A partir do romance de Hélia Correia

Miguel Jesus dramaturgia e encenação

Rui Francisco cenografia

Jorge Salgueiro música

Clara Bento e Sara Rodrigues figurinos e adereços

João Neca assistência de encenação

João Cachulo/ Contrapeso desenho de luz

Raquel Belchior produção

Nisa Eliziário assistência de produção

Com Catarina Câmara, Miguel Moreira, Sara De Castro e convidados especiais Antónia Terrinha/ Juliana Pinho, Bibi Gomes/ Raul Atalaia, Carolina Bettencourt /Rita Brito, Nélson Boggio/ Guilherme Noronha, Nuno Nunes, Paulo Campos dos Reis/ João Neca, Ricardo Soares/ Miguel Jesus e Rui M Silva

músicos Carlos Lourenço, Eurico Cardoso e Nélson Ferreira (ao vivo) e Bizarra Locomotiva (gravado)

Coprodução | Teatro O Bando | Centro Cultural de Belém

25 Set 2017