O que deve mover Macau?

Hong Kong celebrou o 27.º aniversário do Regresso à Soberania Chinesa a 1 de Julho, enquanto o Index Hang Seng continua a situar-se entre os 17.000 e os 18.000 pontos. Em resposta às perguntas dos jornalistas, o Chefe do Executivo de Hong Kong, John Lee Ka-chiu, declarou claramente que não vai proceder, durante o resto do seu mandato, à consulta constitucional em relação ao duplo sufrágio universal (para a eleição do Chefe do Executivo e para a eleição do Conselho Legislativo) tal como especificado na Lei Básica de Hong Kong, e que apenas se vai focar na revitalização da economia da cidade.

A economia de Hong Kong tem de recuperar e evitar tornar-se na “ruína financeira da Ásia”’. E quanto a Macau, como está a sua situação financeira?

Depois do Regresso de Macau à Soberania Chinesa, o Canídromo Yat Yuen encerrou e o Jockey Club passou à História. O desenvolvimento da diversificação adequada das indústrias “1+4” ainda não entrou em vigor e, por todo o lado, as lojas da cidade estão constantemente a ser vendidas ou alugadas. Mesmo que os casinos não ofereçam lanches, isso não vai aliviar as dificuldades sentidas pelas micro, pequenas e médias empresas ao terem de lidar com o impacto da “Circulação de Veículos de Macau na Província de Guangdong” e com a comercialização de produtos baratos na área da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau.

A receita bruta do jogo de Macau apurada em Junho foi de 17,7 mil milhões de patacas, o valor mais baixo do corrente ano. Com a inauguração da ponte Shenzhen-Zhongshan, o projecto para a circulação no espaço de uma hora na Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau foi basicamente cumprido. No quadro do desenvolvimento integrado a nível nacional, terá Macau vantagens próprias que possam atrair o investimento e trazerem novas oportunidades de crescimento? Depois do “Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau” ter sido rebaptizado com um nome chinês, que planos e estratégias tem em mente o Governo da RAEM para atrair o investimento?

A apresentação da candidatura às eleições dos membros da Comissão Eleitoral do Chefe do Executivo (CECE), encerrou no passado dia 2, assinalando oficialmente a contagem decrescente para as eleições ao sexto mandato do Chefe do Executivo. Já que as eleições deste ano para os membros da CECE foram adiadas dois meses, a Eleição do Chefe do Executivo está agendada para o próximo mês de Outubro. Ou seja, depois de estar em vigor o sexto mandato do Chefe do Executivo, sobrarão apenas dois meses para a nova equipa governativa se preparar devidamente para as tarefas futuras. Se o actual Chefe do Executivo Ho Iat Seng for reeleito, não se adivinham grandes problemas em Macau. Com base na experiência, a menos que surjam alterações inesperadas, a prática de reeleger o Chefe do Executivo em funções permanece inalterada.

Quando Ho Iat Seng tomou posse do cargo de Chefe do Executivo de Macau, teve de lidar com três anos de pandemia. A sua estratégia para fazer face a esta situação esteve alinhada com o Governo Central e os seus bons resultados foram reconhecidos. Mas como foi assinalado quando Ho Iat Seng foi eleito Chefe do Executivo de Macau, a capacidade da sua equipa administrativa era o mais preocupante. O Gabinete Geral do Comité Central do Partido Comunista da China publicou recentemente o “Esboço do Plano de Construção de Lideranças Partidárias e Governamentais em todo o País (2024-2028)”, onde se pode ler, “Para construir uma equipa de liderança sólida, foquemo-nos na escolha das pessoas certas, optimizemos a estrutura etária da equipa, aperfeiçoemos a composição profissional dos seus membros e tenhamos em conta as suas experiências e currículos.” Estes pontos chave devem também servir de referência para o sexto mandato do Chefe do Executivo

Nos últimos anos, tornou-se hábito criar narrativas favoráveis a Macau. Vários convidados populares do programa Phone-in da rádio TDM, com pontos de vista únicos desapareceram sem deixar rasto, ao mesmo tempo que alguns semanários deixaram de ser publicados e certos colunistas deixaram de escrever. À primeira vista, a sociedade de Macau é próspera, mas na realidade tem muitos problemas. Por isso, aquilo porque Macau deve lutar é, certamente, por encontrar líderes que possam conduzir os cidadãos no caminho certo.

5 Jul 2024

Estudo | “Macau governada pelas suas gentes”, um conceito que é um projecto de Pequim

No estudo “Macau people ruling Macau – Gambling governance and ethnicity in postcolonial China”, a antropóloga Sheyla Zandonai defende que o conceito “Macau governada pelas suas gentes” constitui um “projecto nacional dominado pela China” e que tenta, sobretudo, aumentar o sentimento de pertença ao país junto dos chineses de Macau, ainda que isso provoque algumas tensões. É também uma forma de quebrar com o passado colonial

 

[dropcap]H[/dropcap]á muito que o slogan político “Macau governada pelas suas gentes” povoa discursos oficiais, não apenas dos dirigentes da RAEM como dos próprios políticos chineses. Este conceito foi analisado pela antropóloga Sheyla Zandonai no estudo intitulado “Macau People Ruling Macau – Gambling Governance and Ethnicity in Postcolonial China”, e que incorpora o livro “Slogans – Subjection, Subversion and the Politics of Neoliberalism, editado em Novembro passado.

As conclusões da investigadora revelam que este conceito, inscrito na Lei Básica constitui, acima de tudo, um programa político do Governo Central e visa aumentar o sentimento de pertença dos chineses de Macau à mãe pátria. Trata-se de “um conceito que está sujeito a diferentes interpretações e representações”, constituindo “uma fórmula que tem um efeito e que opera tanto na legitimação da agenda política chinesa como no modo da sua implementação”.

Ao HM, a investigadora adiantou que “o grande objectivo é o de voltar a incorporar a cidade, no contexto de devolver a soberania de Macau à China, ainda que o território sempre tenha tido portugueses e chineses”.
Além de querer aumentar o sentido de pertença à China, o slogan visa também quebrar amarras com um passado marcado por décadas de Administração portuguesa.

Conforme se lê no estudo, o conceito “é usado como uma estratégia para aumentar a confiança na transformação do presente e futuro da RAEM como parte da Grande China, diminuindo o passado colonial, agitado e, aparentemente, indesejado”.

Ainda que muitos dos actuais governantes tenham estudado a língua de Camões ou frequentado cursos em Portugal, há uma tentativa de esquecer o passado.

“A ideia de que Macau é governada pelas suas gentes indica que há uma situação de ruptura, de que há algum passado ou história que não são satisfatórios e que é preciso contá-los de outra maneira”, explicou Sheyla Zandonai.

“Apesar de a China colocar isso [o slogan] como um marco, ao colocá-lo como princípio mostra que houve alguma coisa que não se quer recordar dessa maneira. Há uma referência óbvia ao facto de Macau ter sido governada por poderes estrangeiros, com outros valores.”

Para Sheyla Zandonai, há duas vertentes na análise ao conceito. “Uma lida com a equação da autonomia do território e da segurança nacional, ao levantar considerações sobre o equilíbrio político e as formas de questionamento da etnia que estão articuladas. A segunda ambivalência está ligada à extensão dos direitos de governação das pessoas de Macau e à sua coexistência com uma forte indústria do jogo, a principal actividade económica.”

Esta investigação é de 2007, mas, mais de dez anos volvidos, a académica considera que é cada vez mais visível na sociedade um aumento da ligação do território à China.

“Um dos aspectos fortes do slogan é que ele é um bocado vago, então uma pessoa escuta aquilo e interpreta da maneira que convém, ou que faz sentido para ela, dentro da sua própria experiência pessoal ou colectiva. Os dados que utilizo para este trabalho não são muito recentes, porque o livro demorou um pouco para sair, mas há uma tendência maior para que Macau se torne cada vez mais chinês”, contou ao HM.

Para a investigadora, esse sentimento de pertença “era um bocado latente, mas agora é mais óbvio”. “Esse princípio [de ‘Macau governada pelas suas gentes’] nasce de um contexto de um projecto político da China [de aumentar esse sentido de pertença]. É uma maneira que se encontra de se desenvencilhar de um certo passado, de um elemento colonial, de negar isso e reorientar, de reescrever a história de Macau com a presença chinesa que tem um maior controlo das decisões que são aqui tomadas”, acrescentou.

Mudanças pós-1999

“Macau governada pelas suas gentes” é um slogan político como tantos outros que foram criados na história, inclusivamente no período do Maoísmo, aponta a autora no seu trabalho. Estes conceitos são usados “como ferramenta para mobilizar as massas ou determinados sectores da população”. No caso de Macau, o facto deste slogan estar na Lei Básica acaba por ajudar na sua consciencialização por parte dos residentes.

“Há uma tomada de consciência progressiva de que este trabalho cabe agora à população [governar o território]. Isto surge do facto da Lei Básica ter sido escrita dessa maneira, sobretudo no que diz respeito aos principais cargos políticos. A população incorpora isso, que os cargos são ocupados por chineses. É uma definição pela etnia e que cria a nova política em Macau, cimentada num elemento étnico.”

Neste sentido, o estudo de Sheyla Zandonai estabelece uma comparação com os anos pré-1999, contendo depoimentos de macaenses sobre o período que se viveu na Função Pública. Estes falam de uma saída em grande número de portugueses e da falta de formação e experiência dos trabalhadores que por cá ficaram.
O slogan “Macau governada pelas suas gentes” determina, assim, uma mudança na percepção das pessoas face ao próprio sistema político, ainda que, para Sheyla Zandonai, não tenha existido essa mudança na elite política, pois esta não chegou a formar-se.

“Isso não aconteceu, a não ser com os elementos que participaram no período de transição e depois se mantiveram no poder, como Edmund Ho, que vem de uma família que já tinha um envolvimento político muito forte. Não há a formação de uma classe política propriamente dita, há a formação de uma burocracia.”

Desta forma, “os chineses de Macau que trabalhavam na Administração passam a assumir cargos de decisão política, que eram de portugueses ou macaenses, mas nem todos. Muitos deles tinham sido recentemente formados para a vida política”.

Tensões sócio-culturais

No estudo, lê-se que o slogan “não foi criado para responder a uma situação de crise económica ou como uma reacção para uma reestruturação económica urgente e de reformas, mas mais no sentido de uma necessidade de normalização política”. Assim, é um “recurso ambivalente e institucionalizado para os chineses residentes de Macau”, evocando “valores neoliberais que estão na base de medidas sociais e políticas que privilegiam os chineses em detrimento de outras populações locais”.

Esta segmentação da sociedade é referida no estudo, mas Sheyla Zandonai frisa que está em causa a mesma etnia, que se divide entre chineses com bilhete de identidade de residente ou com blue card, conceitos meramente “burocráticos”.

“É uma experiência em que o chinês de Macau se opõe ao chinês da China. Há outro tipo de reposicionamento cultural, onde há uma vontade, muitas vezes por parte dos chineses de Macau, de fazer parte desse grande projecto chinês, mas, na realidade, acabam por se deparar com outros chineses que não partilham da mesma cultura.”

Gera-se então uma tensão, que nasce da existência de diferenças sociais, culturais e educacionais entre um cidadão da China que vem trabalhar e viver para Macau e o residente da RAEM, que cresceu num outro tipo de sociedade.

“Apesar de haver a ideia de ‘Macau governada pelas suas gentes’, o residente local sabe que isso tem um limite, porque acima de tudo é um projecto nacional, e quem o determina é a China. Esta tensão existe e surge na experiência quotidiana. Muitas vezes esse projecto não é satisfatório para o residente chinês”, conclui a investigadora.

Esta segmentação social é descrita ao nível da “classe, linguagem e origens étnicas”, uma vez que “os habitantes não chineses, independentemente de terem uma boa ou má educação ou especialização, continuam a desempenhar funções e actividades profissionais específicas, muitas vezes relacionadas com a sua capacidade de mobilizar redes de contactos pessoais ou capitalização de ferramentas linguísticas”.

A autora dá os exemplos dos portugueses que trabalham em áreas como os meios de comunicação social em língua portuguesa ou na advocacia, pelo facto da língua oficial ainda ser o português. Enquanto isso, “os filipinos desempenham sobretudo trabalhos domésticos, onde o seu domínio do inglês é uma mais valia”.

12 Fev 2019