João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasComo um garfo Povo, Lisboa, 18 Março [dropcap]”Á[/dropcap]gua, água a toda a volta / e as pranchas a encolher; / Água, água a toda a volta, / E nem gota para beber. // O oceano apodrecia: / Meu Deus, meu Deus e que isto se haja podido passar! /Viam-se ali rastejar seres de lama com patas/ Por sobre a lama do mar!» A noite abriu-se com A Balada do Velho Marinheiro, épico setecentista de Samuel Taylor Coleridge, lido de enfiada pelos marujos Jaime [Rocha], [José] Anjos, Luís & Luís [Carmelo Gouveia Monteiro], com apoio de amurada do violino de Francisco Ramos. Navegou-se a versão de Alberto Pimenta, recriando pela voz as paisagens negras, as tempestades interiores, as fantasias de horror que resultam da morte descuidada de um albatroz. Sonharei com mil metáforas, vicejando no charco do tédio, enquanto a nave-cemitério desliza. Mymosa, Lisboa, 19 Março Apesar do ruído de fundo, a conversa com o Levi [Condinho] possui condão musical. Aparte a agenda do que se vai tocando, nas salas-praças como nos becos recônditos, discorre ainda com qualquer coisa de cidade. Um lugar erguido sobre espantosa memória. Andamos às voltas com «Pequeno Roteiro Cego», a antologia que o Miguel Martins e o António Cabrita lhe dedicaram, e por isso mesmo o assunto dificilmente seria outro que as múltiplas vidas, a minimal repetitiva ou a atonal, a aleatória ou apenas clássica. «vamos procurar as árvores dessas ruas e escrever nelas o nosso encantamento/ para que o mundo saiba que a redenção dos astros/ passou pelos nossos lábios numa noite em que assaltámos/ as portas de Deus». Ao que parece, foi a música que fez trocar o seminário pelo mundo. Mas por onde anda Deus, afinal? Horta Seca, Lisboa, 20 Março Por milhentas razões, uma deles o bafio de grémio ajuntando duas profissões que não possuem os mesmos interesses, fui resistindo. Até hoje. Recebi o cartão que diz ser o sócio 2733 (rasurado) da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros. Que auspício devo ler nesta gota de azeite tombando no alguidar? Jardim da Parada, Lisboa, 21 Março Carregamos caixotes, quase só poesia, para a barraca de madeira ainda com nódoas de queijo, talvez de enchidos ou mel, quem sabe. Desta, na Feira da Poesia da Casa Fernando Pessoa, não nos calhou em sorte a número 13. De tanto ouvir que a poesia está na moda, talvez comece a acreditar. Tomo nota das homenagens com que o país se engalana para saudar Sophia ou Sena, mais aquela que este. Vejo os fins de tarde nos cafés da cidade a encherem-se com leitores em voz alta. Nas sessões do Povo, há quem exija acaloradamente momentos open mic para aproximar os lábios do microfone. Depois, os festivais, os concursos, os simpósios, as polémicas. A questão emerge sempre a mesma: que sobrará desta espuma? O esforço de feira serve apenas para manter ténue ligação à terra, para que um ou outro leitor incauto possa ter os livritos à mão de semear. Mymosa, Lisboa, 22 Março Certas amizades entretecem-se em agitada tranquilidade. Pode cada um dispor na mesa a sua inquietação, a dúvida, o que resta do sofrido ou alegrado, a esperança e uma visão, ânsias, um texto ou afazer, gestos, por vezes até a crepitação de um deus fugidio. E memórias, sobretudo se assumirem o fulgor das de Agostinho Jardim Gonçalves, o viajante frenético. Certos encontros são, só por si, rota e destino. Villa Portela, Leiria, 23 Março A vista do vale pedia mais tempo de fruição. Abusámos, pelo que a descida às mãos do João [Nazário] atropelou minutos e paisagens e despenteou os tiles dos nomes que os tinham. Acorríamos, no âmbito da «Ronda Poética», à primeira sessão pública em torno de «anastática/para Alberto Pimenta», antologia que ganha intensidade por força das circunstâncias. Manuel Rodrigues aconteceu fazer-se grande leitor de Pimenta, que há muito fascinou Edgar [Pêra] que, na sequência do documentário que lhe dedicou, vai de escolher os poemas onde o Manuel mais se entregava ao diálogo com Alberto. Do triângulo nasceu o volume, com insuspeita unidade e abrindo para uma voz que merece outras a(tenções (não sendo gralha, o parêntesis). A linguagem, a palavra surge aqui na vez da carne da realidade, personagem principal neste coro de vozes, tantas vezes mudas, mumificadas, postas em pedra. Estamos em perda, bem o confirma qualquer diálogo com as tradições, com os mortos, com os mais vivos de nós. A palavra tem que desfazer-se navalha que rasgue sentidos. E isso faz o Manuel com a mais banal, a mais gasta pelo uso, que colocada cirurgicamente no poema nos obriga ao torção, a procurar novo rumo, a rodopiar para fora de todos os centros. A pontuação atípica respira uma asmática de esforço. Muitos parêntesis se abrem para nenhum fecho visível. Assinalando pontos de encontro de origens distintas, confluências, esquinas. Como pétalas de uma rosa que resiste. «abre-se a janela/corre uma aura romântica/ através da cortina bicolor e/se fecha logo ( mas já entrou/ abre-se para que saia e/ penetra outra com pó/ moderno ( os germes/ vêm sempre já com nomes/ e uma equipa de especiais/ que lá fora provam o ar/ e o respiram para conclusões/talvez teóricas talvez piores/ que as anteriores/». E depois há Pymenta, aquele que jamais conclui, como bem revela o imperdível, «O Homem-Pykante – diálogos com Pimenta». Afirma Manuel, fechando poema que tudo implica: «estás no meio e sabes que vais morrer ’/ por entre qualquer infinito/ cada ponto é eixo sendo seu central/ livre ou perdido ou orientado/ caindo sempre por dentro/ veículos de lenta transformação/ transporte mudanças e transacções/ na constante mesma certeza/ do inesperado eminente incógnita/ concomitante/ ao corpo trazido/ à potência do delírio …/para além dos seus limites/ ninguém mais vivo há que tu ’/ e sabes que vais a meio» Arquivo, Leiria, 23 Março Somos reincidentes, na triplicidade, mas com pretexto mais óbvio de lançamento. Mas agora caiu oficial, a «Ficha Tripla», tanto mais que a foto do Sal [Nunkachov] (algures na página) foi tirada aqui no palco, já querido, da Arquivo. Que acontece de distinto quando nos juntamos para dizer? O Anjos leu menos do que o habitual, pendurado que estava nas cordas da guitarra. Sem que com isso contasse, devolvemos-lhe versos de raspão. O António faz soar como ninguém o seu Trakl. Fugi dos meus versos (onde andam eles?) para me perder no José Manuel Simões. As noites acontecidas e prestes a acontecer exigiam-no. «Do chão onde ontem a enterrei/ a noite irrompe como um garfo,/noite de hoje que eu não conheço/ e todavia já/ noite velha que sei de cor.// Como um gesto premeditado,/ nasce assim devagar,/ tão nacional e tão leve,/ tão primaveril pelas esquinas,/ tão cheia de gatos nos telhados,/ tão sem sono por ela adiante,/ pequena noite habitual e casta/ ligada ao dia por minúsculos grãos de café,/ cores, vidros e frágeis cordões de fumo,/ mas no entanto e sempre/ tão principalmente noite». Arquivo, Leiria, 24 Março Antes de outra de «cores, vidros e frágeis cordões de fumo» e luminosas gargalhadas, com a incansável Susana [Neves], a cansada Suzana [Nobre], o anfitrião João e o atento Sal, também para esconjurar as negras notícias, «No Precipício Era o Verbo» desdobraram-se em palco, com uma novíssima segunda parte dedicada a Sophia. As cordas endiabradas do Carlos [Barretto] soaram a chão movediço para as vozes inspiradas dos funambulistas habituais. Uma das peças foi dedicada à Patrícia Baltazar, que, em «Catapulta» (Ed. Do Lado Esquerdo), desenhou o momento com esta navalha: «Não vai doer. É bater de frente com a morte. Olhar a silhueta das asas de um anjo». Saravá, Patrícia.