José Navarro de Andrade h | Artes, Letras e IdeiasFogo preso [dropcap]N[/dropcap]ão há dinheiro mais bem gasto do que em foguetes e tabaco. Este aforismo hedonista, tão ancestral quanto os apetites de Gilgamesh, dispendeu-o um fogueteiro com quem jantava. Parte interessado certamente, mas talvez por isso omnisciente ao invés do que resmunga o hamster do senso-comum, esfalfado a correr no rolo sem sair do lugar. Sem levar a mal, o artesão preferia que o intitulassem de pirotécnico. Fogueteiros haviam sido o pai e antes dele o avô, ambos sofrendo a glória de terem batido as botas no ofício. O avô numa banal explosão; descuidou-se um instante a misturar ingredientes e agora estás vivo, agora estás morto; o barracão em lascas pelos ares e os pinheiros à volta todos chamuscados. Sobejaram tão poucas parcelas do velho que ficaria o caixão à tara se não lhe metessem uns pedregulhos. Já o pai teve combustão mais lenta. Foram dar com ele de borco numa tina de água ao fundo quintal, provando que não lhe falharam o instinto e as pernas para fugir após o rebentamento. Clinicamente morreu afogado e não das queimaduras ou de baque cardíaco com o susto. E tem medo? Não é medo é respeito. Já não havia rojões, comemos fêveras assadas, rijas que nem cornos. Não fosse a prudência do homem e o jantar teria sido um desconsolo. Contratado para iluminar as festas de Vila Nova de Cerveira dali a pouco projectaria a sua arte atmosférica por cima da toalha negra do rio Minho. De baterias e balonas expandir-se-iam serpentes, girândolas, alternados e trauliteiros, invadindo furiosamente a noite de som e cor. O último morteiro seria de arrancar pedra. À orla de lá do rio vinham os galegos bisbilhotar. Queriam festa de borla? Levassem com as canas. Sempre podia uma ou outra furar uma cabeça, com sorte furar um olho. Passou-se isto há 25 anos, ainda 40% da actual população do globo não era nascida, antes das Europas que voltaram a ligar terras que para os suevos eram uma. Recuando 10 anos, ou seja até ao Pleistoceno, na Bienal de artes de Cerveira de 84 outros fogos mais rasteiros e daninhos por lá se atearem. O certame pusera a tónica na performance, modalidade então em alta, mas, como amiúde sucede com as vanguardas, julgando rasgar os caminhos do futuro afinal esvaía uma época. “Corpos críticos e políticos que questionam a relação social, política e ideológica do corpo no mundo” no passo em que se repensava “a própria arte e as suas limitações;” enfim, o costume desde Lascaux, se assim se quiser olhar para as artes. Mas houve momentos. Uma performer credenciada cobriu a nudez integral de pigmento azul e espojou-se em delíquios sexuais com um espadarte intacto e fresco que há-de ter custado uma nota preta no mercado de Matosinhos. Honre-se-lhe a coragem e o risco que acabaram por ter consequências. Não procederam estas da afronta ao pudor burguês e à denúncia da sua hipocrisia, mas dos ferozes pruridos que a tintas de má qualidade lhe provocou e a precipitaram nas urgências de dermatologia do S. João. Noutro vi-me desgraçadamente implicado. O artista centrou-se numa roda de gente. Nas minhas mãos depôs um pequeno petardo que lançaria uma bola de fogo: “aponta para mim e dispara quando fizer sinal.” De tanga – a temperatura estava amena, não se constiparia – empreendeu uma dança com tochas e labaredas, toda conceito quase nada habilidade. A dado ponto acenou-me. Apontei e hesitei. Insistiu de má cara, a minha vacilação quebrava-lhe o ritmo. Atirei. Tão curto era o trajecto que o projéctil não descreveu elipse e cravou-se em chamas no ombro dele. Os circunstantes não reagiram logo – transitar da intenção para a ignição podia ser que fizesse parte. Lá acabou também ele por ir ter de charola ao S. João. Caso estivesse de banco a mesma equipa é de crer que diagnosticaria esta forma de expressão artística como um caso de saúde pública. Execrado pela comunidade como sabotador fui degredado de Cerveira. Mas ele é que mandou disparar! Ora essa, parvalhão! A arte são alegorias, quando muito metáforas ou metonímias, não há desculpa para o dano.