Ana Cristina Alves Via do MeioFilosofia Clássica com Características Chinesas Não é segredo para ninguém o grande apego que os chineses têm aos seus clássicos, os Quatro Livros (四書 Sì Shū) e os Cinco Clássicos (五經Wǔjīng), bem como alguns manuais de ensino com pendor filosófico, por exemplo, o Clássico Trimétrico (《三字經》Sānzìjīng), cuja influência chegou aos nossos dias, quando devidamente ultrapassados os excessos da era revolucionária dos primórdios do poder comunista. O mais interessante é que estes se estenderam não apenas à elite bem pensante como ao comum dos chineses através do pensamento proverbial, de aforismos (格言géyán), provérbios (語俗Súyǔ), cuja tradução literal é “dizeres comuns” ou “ditos coloquiais” , bem como de histórias proverbiais, condensadas em 4 caracteres, os Chéngyǔ (成語), que têm implícito no caractere chéng (成), a meu ver, o potencial desenvolvimento da história, tantas vezes real, para a qual remetem com uma finalidade moral indisfarçável. Comecemos por provérbios retirados ao Clássico das Mutações (易經Yì jīng), onde o princípio da Unidade (同心 Tóng Xīn) se assume como valor fundamental do pensamento chinês, procurando associar este modo proverbial de apresentar a filosofia, com alcance tão vasto quanto a comunidade chinesa o permite, aos cinco elementos (五行Wǔ Xíng) constantes na filosofia chinesa, a saber: a Terra (土 Tǔ), a Madeira (木Mù) (que corresponde ao Ar no Ocidente), o Fogo (火 Huǒ), a Água (水 Shuǐ) e o Metal (金 Jīn) para que não nos percamos no que se adivinha ser labirinto dos provérbios filosóficos. Ora estes elementos são os representantes do pensamento filosófico que será condensado ritmicamente em frases sugestivas e de fácil memorização para o povo e letrados de todos os tempos. Penso que não será difícil associar um ou mais elementos a cada uma das principais escolas filosóficas clássicas que têm como ponto de partida o Clássico das Mutações, pelo menos o Confucionismo e o Taoísmo dependem diretamente desta obra. O Clássico das Mutações inaugura com o Hexagrama do Criativo, composto por dois Trigramas de Céu (乾 Qián), que nos chama a atenção para a importância do Céu e dos seus decretos como condutor essencial dos destinos humanos, desde que as pessoas o saibam entender e, por isso, lemos o seguinte provérbio “Alegremo-nos com o Céu e seus Decretos para que não nos venhamos a arrepender” (樂天知命故不憂Lè Tiān zhī Mìng gù bù yōu). O Criativo é a força divina e inspiradora, a abertura que existe em cada um de nós, sendo representado por 3 linhas contínuas, masculinas. No que respeita às transformações, é o começo, é forte, e, do ponto de vista da relação familiar, é o pai. Ele é a energia que inicia a transformação no Céu, na Terra e no Homem. A sua cor é o branco, as propriedades: a atividade, a criatividade e a firmeza, expressando-se pela razão, força e durabilidade. Corresponde-lhe em termos de corpo natural a cabeça, sendo o seu animal o cavalo, ainda que também tenha o dragão como imagem, o correspondente natural é o gelo. O Céu é, portanto, o começo, a abertura, a primeira transformação, que se vai conjugar com a segunda transformação, a Terra, para originar os restantes seis trigramas. O Céu, pelo seu poder criativo, energia e durabilidade estabelece uma estreita relação com o Metal, sendo superior a este, como verificamos no seguinte provérbio, que reitera a unidade essencial: “Quando duas pessoas se unem a sua acutilância consegue dividir o metal” (二人同心◦其利斷金◦Èr rén tóngxīn, qí lì duàn jīn), diríamos nós num equivalente possível em Português que “a União faz a força”, sendo superior à pulsão bruta. E, como não podia deixar de ser, há um provérbio para os elementos do Fogo e da Água, figurados no sol e na lua e na constante mutação que estes pelas suas relações cósmicas proporcionam “o sol e a lua girando, o calor e o frio alternando” (日月运行◦一寒一暑◦) organizam e compõem o mundo em nosso redor. Se no Clássico das Mutações encontramos vários elementos expressos através do pensamento proverbial, já na filosofia confucionista domina o elemento da Terra e a Humanidade que lhe dá o seu máximo sentido, por isso os provérbios possuem quase todos um intuito ético-moral orientado para fins políticos. A melhor terra será aquela onde foi implementado um sistema benevolente dominado pelas principais virtudes confucionistas com a Benevolência (仁Rén) em lugar de destaque. Esta expressa e associa-se à Tolerância (恕 Shù) e respeito para com os outros, sendo célebre o seguinte aforismo atribuído a Confúcio (孔子, 551-479 a.C.) no Capítulo dos Analectos Senhor Wei Ling, 24: “Não faças aos outros o que não desejas para ti” (Yǐ suǒ bù yù, wù shī yú rén) (論語•衞靈公第十五——二十四). De facto, e se pensarmos bem a Benevolência tem uma tradução prática no relacionamento com os outros onde a captamos como uma forma de tolerância, como nos é dito neste texto que acompanha o aforismo: “Zi Gong perguntou, ‘Existe alguma palavra que uma pessoa possa seguir como princípio orientador de vida? ’Confúcio respondeu: ‘Sim. Será talvez a palavra “tolerância”. Não faças aos outros o que não desejas para ti próprio’ ”. Passando agora o segundo grande mestre da Escola Confucionista, Mâncio (孟子c.372/289 a.C) encontramos ditos e histórias proverbiais na obra homónima Mencius《孟子》. A este filósofo associo sobretudo os elementos Terra e Madeira. O autor, cuja influência se prolonga pela tradição, por exemplo no manual para o ensino elementar de pendor filosófico, O Clássico Trimétrico (《三字经》) , onde podemos ler logo na primeira frase do Clássico, que terá grande repercussão a partir dos tempos medievais, a adopção do princípio filosófico fundamental de Mâncio, transformado em provérbio para toda a posteridade chinesa: “A Natureza humana é boa” (人之初、性本善Rén zhī chū, xìng běn shàn). Nos múltiplos provérbios do texto de Mâncio sempre ligados a uma mundividência agrícola, nota-se a referência a crianças que não caem aos poços, porque a bondade inata das pessoas não o permite, já que mesmo os fora-da-lei, considerados maus, se prontificarão a socorrê-las em tais circunstâncias extremas, porque são afinal naturalmente bons, ou quando o deixam de ser, não é por culpa do Céu, mas sim das más práticas humanas, tal como sucede no Monte Niu (牛山 Niú Shān) , numa parábola em que as pessoas são como árvores, que vão sendo devastadas e roubadas ao monte, que acaba deserto e, portanto, totalmente abandonado e perdido, representando já a ausência do bem. Entre os ditos, gostaria de destacar uma história proverbial, muito ligada aos elementos Terra e Madeira, para figurar mais uma vez, como a acção humana pode degradar, interromper e aniquilar uma tendência inata para o bem, na qual o Céu dita o tempo certo, a fim de que os seres se desenvolvam, bem como às suas virtudes morais. É então pelo respeito à ordem natural que todos os viventes alcançarão a sua melhor realização. O Chéngyǔ (成語) é “Ajudando os Rebentos a Crescer” (揠苗助長 Yàmiáo-zhùzhǎng), que se encontra em Gongsun Chou, Primeira parte, Segundo Capítulo (《孟子•公孫丑上篇第二章). Aqui se conta a história de um homem do Estado de Song, que muito impaciente por os brotos de arroz demorarem a crescer, foi para o arrozal, ajudá-los a desenvolverem-se, resultado, matou-os, porque a acção humana sem respeito pelo tempo da natureza acaba por ter consequências trágicas. Para Mâncio este é um exemplo claro de que somos comandados por ordem superior, através de um Mandato Celestial (天命Tianmìng), que se expressa não só em cada um de nós, na nossa natureza inata, mas também através do povo, pelo que mais importante do que os governantes será a população, já que a suas acções e reacções espontâneas se ligam a essa ordem natural divina. É o que nós ocidentais chamaríamos, mutatis mutandis, “vox populi vox dei”, ou seja, para Mâncio o povo sabe e será sempre quem tem a última palavra porque se mantém espontaneamente imerso e ligado ao Céu. Continuando, na busca filosófica com características chinesas por via proverbial, encontramos uma outra filosofia, desta feita a taoista, onde também abundam os ditos e as histórias proverbiais, e não nos deixemos enganar pelo o facto de apenas se mencionar uma outra considerada mais exemplar no que respeita à ligação entre os princípios filosóficos e os elementos que melhor traduzem o pensar filosófico destas escolas. O elemento preferido pelo alegado fundador do Taoísmo, Laozi (老子) para expressar a sua filosofia é a Água, que é empregue como imagem metafórica para representar o bem supremo, na sequência de duas outras expressões proverbiais conhecidas por todos os chineses, com as quais inaugura o Clássico da Via e da Virtude (《道德經•第一》) :“O Tao/Dao que se pode indicar não é o verdadeiro Tao. O nome que pode ser dito, não é o verdadeiro nome” (道可道,非常道。名可名,非常名Dào kě dào, fēicháng dào. Míng kě míng, fēicháng míng). Seguindo esta lógica, compreendemos por que motivo nos surge o seguinte dito no Capítulo VIII (《道德經•第八》) “O Bem Supremo é como a água” (Shàng shàn rú shuǐ). Depois, pelo desenvolvimento do texto, somos esclarecidos relativamente à imagem, porque o filósofo recorre às características deste elemento que se adequam perfeitamente à expressão da bondade máxima de acordo com o seu modo de pensar, senão vejamos, a água nutre, beneficiando todos os seres, tem uma natureza flexível, não entra em conflito, penetrando em toda a parte, mesmo nos lugares que as pessoas desprezam A Água torna-se assim a imagem modelar do bem supremo mas também do agir do Santo Taoista (聖人 Shèng Rén), que é espontaneamente bom, sendo a sua maior força a aparente fraqueza e flexibilidade, sem se impor a ninguém, nem exercer a força ou o poder, consegue que tudo siga o seu rumo natural sem que nada fique por fazer. Gostaria ainda de referir a filosofia proverbial do segundo maior filósofo taoista, Zhuangzi (莊子,396-286 a.C) onde encontramos uma aliança entre os elementos da Água e da Madeira/Ar, com predominância para os seres do ar. O melhor exemplo do espaço onírico em que Zhuangzi se move é, sem dúvida, a história proverbial “Zhuangzhou sonha que é uma borboleta”(莊周夢蝶Zhuāngzhōu-mèngdié ) , que surge no livro homónimo nos Capítulos Interiores, Segundo Capítulo, intitulado “A Uniformidade de Todas as Coisas” (《莊子•内篇•齊物論第二》), no qual o filósofo conta que sonhou ter-se transformado numa borboleta para defender a sua tese principal que há uma uniformidade essencial entre todos os seres, estes diferem apenas no acidental, mas não no essencial e, por isso, recorrendo às práticas físicas e mentais correctas se podem transformar uns nos outros, porque o essencial está na raiz o Tao, que nos nutre a todos, viabilizando qualquer transformação.. Seguindo esta lógica, apresenta-se uma outra proverbial, com a qual se estreia a obra, pelo que atente-se à importância da mesma, retirada do primeiro capítulo, intitulado “Vagueando em Absoluta Liberdade”, dos Capítulos Interiores de Zhuangzi (《莊子•内篇•逍遙遊論第一》), a saber, “No Mar do Norte Há um Peixe” (北冥有魚 Běimíng -yǒuyú), que aqui se resume:. no Mar do Norte existia um peixe muito grande chamado kun (鲲) que se metamorfoseou num pássaro igualmente grande denominado peng (鹏), esta possibilidade de mudar de elemento, da Água para a Madeira/Ar e de peixe para pássaro foi-lhe oferecida pela uniformidade básica dos seres, quer dizer, por estarmos todos dependentes da mesma raiz, o Tao, no entanto quanto maior for a metamorfose mais nos aproximamos do princípio divino e maiores maravilhas poderemos operar, mais filosóficos nos tornamos. Mas para tal é preciso criar as condições e a postura existencial correta, se não o fizermos, nasceremos e morremos peixinhos, nunca alcançaremos o nível de enorme peixe das profundezas oceânicas, nem tão pouco seremos capazes de nos transformar em enormes pássaros que percorrem o mundo vagueando a seu bel-prazer ou em total liberdade. Concluindo, observa-se nesta filosofia proverbial clássica chinesa, retirada do Clássico das Mutações e das escolas confucionista e taoista um pendor acentuado para o estabelecimento da relação com os elementos do mundo natural circundante, especialmente com os Cinco Elementos básicos, o pensador nunca está sozinho, encontra-se atento ao meio que o rodeia, expressando através de ditos, muitas vezes associados a pequenas histórias proverbiais, princípios filosóficos abstractos que assim ganham corpo, podendo mais facilmente ser transmitidos a toda a coletividade que os recebe com imenso agrado devido ao ritmo e cor naturais com que são ilustrados os fundamentos teóricos destas filosofias. Bibliografia Abreu Graça de, António (Trad e Org). 2013. Laozi. Tao Te Ching. O Livro da Via e da Virtude. Lisboa: Vega. Alves, Ana Cristina. 2005. A Sabedoria Chinesa. Casa das Letras. 《論語》1994. Analects of Confucius. 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Citação do excerto do capítulo VIII do Clássico da Via e da Virtude: 《上善如水˙水善利萬物˙而不争˙處衆人之所惡˙》 O excerto de Zhuangzi, retirado do Segundo Capítulo, dos Capítulos Interiores: 《昔者莊周夢為蝴蝶栩栩然蝴蝶也,自喻適志與!不知周也。俄然覺,則蘧蘧然周也。不知周之夢為蝴蝶與,蝴蝶之夢為周?週與蝴蝶,則必有分矣。此之謂物化。 》 O excerto de Zhuangzi, retirado da abertura do Primeiro Capítulo, dos Capítulos Interiores: “北冥有魚,其名為鯤,鯤之大,不知其幾千里也;化而為鳥,其名為鵬,鵬之背,不知其幾千里也。恕而飛,其翼若垂天之雲。是鳥也,海運則徒於南冥者,天池也。”
Ana Cristina Alves Via do MeioA Ciência com características chinesas e a Grande Unidade Falar sobre a cultura e a civilização dos outros requer precauções ou pelo menos a consciencialização de que tudo pode suceder, desde a incompreensão, passando por uma abordagem superficial até à sintonia, como nos alerta David Wong no seu trabalho “Filosofia Comparada: Chinesa e Ocidental”, relativo à filosofia numa perspetiva comparatista, publicado no âmbito de uma colectânea realizada pela sinologia brasileira, organizada por Matheus Oliva da Costa (2022), intitulada Textos Seleccionados de Filosofia Chinesa 1, onde Wong defende que mais importante do que a comensurabilidade ou incomensurabilidade metodológica, epistemológica, ética e metafísica é a tentativa de ir ao encontro do outro, à procura, mais do que das semelhanças, do respeito pela manifestação filosófica diferente, o que só é possível se em lugar de nos colocarmos numa posição avaliadora tentarmos entrar no mesmo comprimento de onda, buscando “ imagens de mundo baseadas em sintonia versus imagens de mundo que cortam a conexão entre entendimento e sintonia” (Wong, 2022:400). Para tal será necessário cultivar a abertura de espírito ou largueza de vistas, donde provirá um exercício criativo híbrido que poderá trazer resultados surpreendentes, com todas as partes envolvidas na comparação a crescerem e a reunirem-se na aprendizagem de novos caminhos intelectuais. Um dos filósofos e historiadores da filosofia que mais procurou aproximar a filosofia chinesa da ocidental foi, consoante o registo fonético, Fung Yu-lan ou Feng Youlan (馮友蘭/冯友兰,1895 -1990) e começou por fazê-lo numa posição de grande humildade, concentrando-se numa abordagem à ciência ocidental, defendeu que a ciência na China, praticamente inexistente, de acordo com os parâmetros ocidentais, muito tinha de aprender com o Ocidente. Na sua expressão, “aprender com o estrangeiro (estudar com o Ocidente (…) 以夷為師(向西方學)” (Feng Youlan, Apud Alves, 2022: 61). Na verdade, como bem notou Lisa Raphals (2022) em “Ciência e Filosofia Chinesa”, num trabalho inserido na colectânea já referida o esforço de Feng Youlan é de tentar desenvolver o espírito científico à maneira ocidental na China da época, já que o filósofo defendia em “Por que a China não tem ciência” (1922) que “o que mantém a China atrasada é que ela não possui ciência” (Feng Youlan, Apud Raphals, 2022: 341). Para compreender a perspectiva do filósofo temos de o situar no seu próprio tempo. Hoje não faria qualquer sentido uma posição deste tipo, já que os chineses ao longo de todo o século XX partiram rumo ao Ocidente e aprenderam bem a lição da ciência ocidental, do espírito científico em actuação nos seus vários domínios, os parâmetros e, sobretudo, a aprendizagem com a experiência, bem como a quantificação dos dados, a testagem, verificação e confirmação dos resultados. E a verdade é que nada impediu os cientistas chineses de se encontrarem ao mesmo nível dos seus congéneres nos campos da matemática, física, química, astronomia e astrofísica e todas as outras ciências ditas ocidentais, nem mesmo como argumentavam certos sinólogos de renome, por exemplo Bodde (1991) em Chinese Thought, Science and Society: The Intellectual and Social Background of Science and Technology in Pre-Modern China, ao repetir o que muitos sinólogos pensavam, a saber, que a língua chinesa, certas concepções filosóficas conservadoras e organicistas, bem o autoritarismo imperial tinham afastado os chineses do pensamento científico à maneira ocidental. Voltando ao texto de Lisa Raphals sobre a ciência e filosofia chinesas, a autora termina com uma questão interessante à qual não responde, a saber, se a filosofia chinesa poderia contribuir para a constituição de uma ciência chinesa. (Raphals, 2022: 361). Pela minha parte, respondo sem hesitações que sim. Aliás é, de facto a união entre filosofia e ciência o que torna possível no País do Meio a referência a uma ciência com características chinesas. E não é preciso irmos muito longe, basta pensarmos na Medicina Tradicional Chinesa. O que a caracteriza e distingue da Medicina (Tradicional) Ocidental é precisamente o seu ponto de partida ser filosófico. Ora isto foi o que Feng Youlan, condicionado pelas circunstâncias, teve dificuldade em reconhecer, quer dizer, o estatuto extremamente original e único da ciência chinesa. Ele estava preocupado com o alegado atraso do seu país em termos científico-tecnológicos face aos avanços da ciência e tecnologias ocidentais e não via vantagens numa postura filosófica que considerava livresca e conservadora. Diz-nos o filósofo em 《中國現代哲學史》(História da Filosofia Chinesa Contemporânea), o essencial para que a ciência e a filosofia ganhem é justamente ambas deixarem de assentar em tanta teoria e leitura de clássicos, como tem sucedido ao longo da tradição chinesa, e usufruam da possibilidade da aprendizagem pela experiência. O professor Feng Youlan, da linha neoconfucionista, defende, em termos filosóficos, a necessidade de se pensar numa Grande Unidade (大全 Dà Quán) entre os reinos da experiência e da razão, sendo que os princípios racionais (理 li) não se colocam num mundo à parte, à maneira platónica, mas estão incrustados na própria experiência. Pelo que o seu apelo é que na filosofia não se afaste o corpo, a sensibilidade e as vivências da racionalidade que as animam. As duas dimensões, a da verdade, à qual pertence a razão, e a da actualidade, o mundo, apenas se distinguem por comodidade analítica, sendo este todo, animado por um princípio vital, que viabiliza o estudo das essências por método indutivo e lógica experimental, porque nada existe fora da realidade imanente. No entanto, do ponto de vista filosófico, muito ficou a ganhar a filosofia de Feng Youlan com esta “viragem experimental”, já que, por um lado, veio recuperar o espírito ecológico que animou os seus primórdios da filosofia chinesa, por outro, aproximou-se do Ocidente, permitindo a criação de uma filosofia comparada, como se pode ler nas Actas do Oitavo Congresso Internacional de Filosofia de 1934: “Estamos agora interessados na mútua interpretação do Oriente e do Ocidente mais do que no seu mútuo criticismo. Eles são vistos como ilustrando a mesma tendência humana de progresso e expressões do mesmo princípio da natureza humana. Desta forma, o Oriente e o Ocidente não estão apenas ligados, mas estão unidos” (Feng Youlan apud Baskin, 1984: 737). Quando à recuperação do espírito ecológico e holístico, eles irão caracterizar o grande princípio da nova humanidade, que é saber fundir-se na Grande Unidade “自同於大全” (Feng, 2006: 211), totalmente imersa no Céu e na Terra, que na obra são identificados com o Criativo (乾 Qián) e o Receptivo (坤Kūn)), ou seja, os dois primeiros hexagramas do Clássico das Mutações (《易經》). No entanto, o filósofo não estende esta grande unidade filosófica à ciência, porque considera que esse foi um dos motivos que levou ao atraso na China do desenvolvimento da ciência à maneira ocidental. Hoje percebemos quão redutor e limitativa pode ser apenas uma abordagem especializada e quantitativa dos dados científicos e até consideramos que o Ocidente tem muito a ganhar e aprender se não distanciar as suas ciências das perspectivas filosóficas e de abordagens holísticas e organicistas, essencialmente qualitativas, seguindo os passos da ciência com características chinesas, na qual o espírito filosófico reina mantendo a unidade entre os domínios. Voltando ao Clássico das Mutações, o Hexagrama 45 é Reunir-se (萃卦 Cuì Guà), na classificação seguida por Richard Wilhelm, que segue a linha neoconfucionista, a mesma de Feng Youlan. Este hexagrama é constituído, na base, pela Terra receptiva (坤 Kun) e, no topo, pelo Lago alegre (兑duì). Afirma-se no Juízo do hexagrama que o reunir-se traz sucesso, seja quando o governante se aproxima do templo, seja por se buscar sabedoria e pelo melhor método de a alcançar, através da perseverança ou via oferendas. Mas o mais importante chega-nos, a meu ver, através da imagem, onde lemos: “Sobre a Terra, o Lago: A imagem do reunir-se. Assim, a pessoa superior renova as suas armas De modo a responder ao imprevisto” (象曰: 澤上於地,萃,君子以除戎器,戒不虞。) Concluindo, apenas unindo o que estava desligado se podem alcançar excelentes resultados, como a água reunida num lago acima da terra para criar vida e alegria através e em torno dela, ou a ciência reunida à filosofia para a criação de uma ciência com características chinesas. Bibliografia Alves, Ana Cristina. 2022. Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental. Coord. Carmen Amado Mendes. Coimbra: Almedina, Centro Científico e Cultural de Macau, I.P. Baskin, Wade (ed). 1984. “Yu-lan Fung”. Classics in Chinese Philosophy. New Jersey: Helix Books. 馮友蘭 (Fung Yu-lan/ Feng Youlan).2006.《中國現代哲學史》香港:中華書局有限公司. Raphals, Lisa. 2022. “Ciência e Filosofia Chinesa”. Textos Selecionados de Filosofia Chinesa 1. Organização de Matheus Oliva da Costa. Pelotas: Editora UfPel. Wilhelm, Richard (Trad.). 1989. I Ching or the book of changes. London: Arkana, Penguin Books. Wong, David. 2022. “Filosofia Comparada: Chinesa e Ocidental”. Textos Selecionados de Filosofia Chinesa 1. Organização de Matheus Oliva da Costa. Pelotas: Editora UfPel. 張中鐸(編) (Zhang Zhongduo)《易经提要白話解》台南市:大孚,民84.